Pretendo fazer uma resenha crítica da parte
intitulada As dificuldades do socialismo,
da obra Capítulos sobre o socialismo,
de autoria do John Stuart Mill. Como metodologia, vou atentar primeiro para os
fatos negativos em relação ao socialismo/comunismo. Logo após, apresentarei os
contrapontos. Tentarei dispor as posições de Mill de forma a equilibra-las
neste texto, como numa balança: desfavoráveis de um lado, favoráveis de outro. Tendo
o mesmo “peso”, se anulam. A balança imaginária ficará equilibrada. Farei
observações na tentativa de ampliar a compreensão, sem interferir no equilíbrio
proposto.
John Stuart Mill viveu num tempo de agitação de
ideias em relação a economia e ao “tamanho” do Estado. Podemos compreendê-lo
como um liberal, favorável a uma economia de mercado. Entretanto, percebia a
situação desfavorável em que viviam os trabalhadores. Compreendeu que havia um
problema na distribuição do capital. No capitalismo, a distribuição das suas
benesses não ocorria de uma forma justa. Mas não aceitava as ideias
revolucionários dos comunistas, pois o perigo da violência e do caos superava
as expectativas de sucesso a curto prazo. Desejava uma economia socializada e
solidária a ser construída com o passar do tempo sem a necessidade da eliminação
do mercado.
Primeiro prato da
balança.
Seja socialismo ou comunismo, há uma
dificuldade importante: sua implantação. Esta dificuldade está vinculada ao
costume das pessoas em relação a propriedade. Ninguém quererá facilmente,
deixar o que é seu em nome de uma ideia, de uma proposta que ainda não existe
de fato, que sequer foi testada. Portanto, tanto pior será a reação quanto mais
rápida for a implantação. O pior cenário é a implantação por uma revolução. Uma revolução levará a utilização da
violência. Passar da propriedade privada dos meios de produção à propriedade
coletiva, pode ser algo traumático. Segundo John Stuart Mill: “A primeira (forma de socialismo a ser
implantada lentamente) tem também a vantagem de poder ser implantada
progressivamente e demonstrar as suas habilidades mediante experimentação. Pode
ser experimentada inicialmente numa população selecionada e estendida a outras
na medida em que o permitam sua educação e sua cultura. (...) (01)
Não menos importante, é a dificuldade em
encontrar, num ambiente comunista ou socialista, indivíduos dispostos a gerir
os negócios. Afinal, o dirigente assumiria enorme responsabilidade, entretanto,
teria uma remuneração por seus esforços muito similar ou igual aos demais
trabalhadores. A moralidade atual, embasada na competição e no mérito, impede
que os mais qualificados se apresentem como voluntários para a gerência das
associações coletivas. A gratificação de ganho maior para maior
responsabilidade, produtividade ou qualificação está ausente no socialismo. Os
interesses pessoais não estariam contemplados e, portanto, não haveria
motivação suficiente para maior empenho individual. A educação familiar,
escolar ou social (capitalistas) não são favoráveis ao desenvolvimento de
valores altruístas.
Mesmo que alguém se proponha a gerenciar a
produção num espaço socialista, seria bastante difícil tomar as decisões. Estas
ocorreriam de forma lenta e sofrível. O poder desta pessoa estaria limitado à
votação da decisão por uma assembleia de pessoas de poderes iguais. Buscar o
consenso entre pessoas em pé de igualdade, é muito difícil. Requer tempo,
paciência e experiência. Afirma Mill: “(...).
Evidentemente, sua autoridade seria resultado de eleição pela comunidade, pela
qual sua função pode a qualquer momento ser retirada deles; o que tornaria
necessária para eles, mesmo que não determinado pela constituição da
comunidade, a obtenção de consenso geral dessa comunidade antes de proceder a qualquer
alteração do modo estabelecido de conduzir o empreendimento. A dificuldade de
persuadir um corpo numeroso a mudar o modo costumeiro de trabalhar, mudança que
frequentemente perturba bastante, e o fato de o risco ser muito mais claro em
suas mentes do que as vantagens, ensejariam uma grande tendência a manter as coisas
como sempre foram. ” (02). São tantas as dificuldades que seria muito mais
vantajoso ao trabalhador, rejeitar as posições de comando. As administrações
privadas têm, nesse sentido, muito mais facilidades e vantagens sobre as
administrações coletivas.
O fato de cada trabalhar ganhar o mesmo ou ter contraprestação
similar aos demais, não é algo justo e causará bastante desconforto. Pessoas
mais fortes receberão o mesmo quinhão que os mais fracos (que produziram menos).
O mesmo acontecerá com o profissional mais qualificado e o menos qualificado. A
igualdade não é menos complexa. Numa comunidade, exigir trabalhos iguais para
trabalhadores desiguais é problema sério. Segundo o autor: (...) Mas, além disso, ainda é um padrão muito
imperfeito de justiça exigir a mesma quantidade de trabalho de todos. As
pessoas têm capacidades desiguais para o trabalho, tanto mentais como físicos,
e o que pode ser tarefa leve para um é uma carga insuportável para o outro.
(...) (03). Sabendo desta dificuldade, os egoístas e preguiçosos, tenderão
a tirar proveito disso; trabalhando menos que os outros na esperança de sua
retribuição ser igual.
Fica evidente que, para uma convivência
saudável na coletividade, é exigido alto grau de consciência da importância dos
valores morais que permitam o agir em prol do grupo. A educação assume,
portanto, um papel de relevância nesse sentido. O problema está na questão de
como serão ensinados os filhos, pois é uma questão muito valorizada pelos pais.
Caso alguns destes não desejem o tipo de educação oferecido pela comunidade,
não terão outra escolha. Não é fácil aceitar a maioria quando somos
discordantes dela. O problema da liberdade individual não fica resolvido. Nas
palavras de Mill: “Está aqui uma das mais
frutíferas causas de discórdia em qualquer associação. Todos que tivessem
opinião ou preferência formada com relação à educação que desejariam para seus
próprios filhos, teriam de se valer de sua chance de obtê-la com base na
influência que pudessem exercer sobre a decisão conjunta da comunidade” (4). Usar
de influência nada mais é que uma corrupção do ideal socialista. Seria uma
forma de prevalecer o interesse privado sobre o coletivo, além de corromper a
autoridade encarregada.
A preocupação em agir de acordo com os
interesses coletivos, não é algo que possa ser aceito facilmente. Ora, a
liberdade privada e os interesses familiares são invadidos pelos interesses da
coletividade. Não será possível mais agir como indivíduo. As ações pessoais
serão limitadas pelas ações permitidas pela maioria. A renúncia pessoal em nome
do social é um problema enorme, um empecilho que não pode ser menosprezado. É o
predomínio da autoridade pública em detrimento da consciência individual. Literalmente,
o autor afirma: (...). Em todas as
sociedades, o constrangimento da individualidade pela maioria já é um mal
grande e crescente; ele seria ainda maior sob o comunismo, a menos que ofereça
aos indivíduos o poder de estabelecer limites a ele pela opção de pertencer a
uma comunidade de pessoas com mentalidade semelhante à sua. ” (05)
Até este momento, mostramos apenas o prato da
balança em relação ao aspecto negativo do socialismo ou do comunismo; apontados
pelo filósofo Mill. Agora, vamos trabalhar o outro prato da balança. Acrescentando
os aspectos positivos, pretendemos igualar os “pesos” de ambos os lados,
equilibrando a balança. Continuaremos utilizando, por óbvio, o mesmo autor na mesma obra.
Segundo prato da
balança
Mill afirma que a implantação abrupta do
comunismo acarretará o fracasso da tentativa. Entretanto, será possível tal
implantação se ela fosse cautelosa. No socialismo, através de experiências sucessivas
em pequenas escalas, a população perceberá a viabilidade e as vantagens de tal
sistema. Também, os gestores das associações e cooperativas, com seus erros e
acertos, aprenderão a melhor forma de trazer à realidade as ideias socialistas.
Portanto, é inegável que a implantação do modelo socialista é viável e
vantajosa, mas não pode se realizar rapidamente sob pena de haver caos e
derramamento de sangue. A progressiva democratização da gestão dos meios de
produção, irá desenvolver a consciência dos trabalhadores. O desenvolvimento de
uma consciência social, de uma visão coletiva, é fundamental, e isso não
acontece de forma rápida. É preciso boa caminhada para aprender a viver a
liberdade socialista, principalmente para pessoas acostumadas à sujeição
oriunda da competição capitalista.
No ambiente atual da competição e dos ganhos
individuais, o trabalhador só se esforça e se qualifica na medida e proporção
das vantagens pessoais que percebe. A esperança de mais ganhos e ascensão
profissional é impulso muito forte para a produção crescente deste trabalhador.
Mas, há outros valores possíveis, como a honra ou a percepção que o trabalho de
cada um é bom para a comunidade, que os frutos do trabalho são para si, mas
também para os demais. Tais valores, são em muito superiores aos interesses egoístas.
Há motivos eticamente superiores ao ganho individual. A educação habitual não
enfoca os valores mais elevados. Uma mudança educacional é muito importante. É
imperioso dar mais importância aos interesses coletivos, ao que é bom para a
comunidade. Aos poucos, lentamente, é possível ensinar que o trabalho coletivo
é muito mais importante e produtivo que o trabalho somente para crescimento
individual. Quando trabalhamos para a melhoria das condições de todos, e
inclusive para nós próprios, o impulso pessoal será muito mais efetivo. Fica
claro que, assim motivado, o trabalhador assumirá qualquer das funções nas
cooperativas, até as de gerência. E isso por motivos mais nobres que os ganhos
pessoais. Nessas cooperativas, os proletários têm voz e se submetem, por
consequência, às suas próprias determinações (a hierarquia é abrandada). O
ambiente é democrático e produtivo. De certa forma, todos comandam e são
comandados.
A democracia na gerência das cooperativas e
associações, tem seu preço. As decisões precisam ser deliberadas e votadas, o
que as torna mais complexas. Mas, não necessariamente a complexidade é ruim.
Percebamos que numa cooperativa socialista, todos os membros estão motivados
por uma moral coletiva, e todos entendem do trabalho. Portanto, colocarão na
gerência o melhor deles. Seus votos serão de qualidade nas decisões, pois todos
são especialistas no assunto, e têm a convicção que são bem gerenciados, afinal,
estes especialistas escolheram a sua gerência. Diz Mill: “Contra isso (a dificuldade das votações), deve se colocar que a escolha
feita por pessoas que têm interesse direto no sucesso do empreendimento,
conhecimento prático e oportunidade de julgamento pode-se supor que em média
resulte em gerentes mais capazes do que os azares do nascimento que hoje
determinam quem será o proprietário do capital” (...) (06). Outro fator
para querer ser gestor, será o desprazer de não sê-lo e ser comandado por
alguém menos preparado. E mais: “mas, em
compensação, deve-se afirmar que sob o comunismo o sentimento geral da
comunidade, composta de companheiros sob cujos olhos cada pessoa trabalha,
seria certamente favorável ao trabalho bom e duro, e desfavorável à preguiça,
ao descaso e ao desperdício” (07) Esse espaço cooperativo levará às pessoas
a encontrarem a liberdade e a independência, isso de forma responsável em
relação aos companheiros; sem violência ou coação. Isto é o mais perto que
podemos chegar de uma justiça social.
Pessoas diferentes recebendo igual
contraprestação à sua dedicação. Pessoas fracas sendo exigidas como se fossem
fortes. Essas questões dadas ao bom gestor, são logo equacionadas. Caso mantenhamos
nossa atual mentalidade, ou seja, sermos propensos a trabalharmos somente em
proveito próprio, o ideal de uma justiça distributiva na cooperativa
socialista, é inviável. Mas, nas palavras de Mill: “Estes inconvenientes pouco seriam sentidos, pelo menos durante algum tempo,
em comunidades compostas de pessoas escolhidas, sinceramente desejosas do
sucesso da empresa; mas planos para a regeneração da sociedade têm de
considerar os seres humanos médios, e não apenas aqueles, mas o grande resíduo
das pessoas muito abaixo da média em virtudes pessoais e sociais”. (08) A
medida que os trabalhadores forem exercitando um alto padrão ético e
intelectual, possíveis injustiças serão minimizadas. O fato de não existir uma
justiça cem por cento eficaz, não inviabiliza a visão socialista. Também
importa salientar, que a todos pertencem os meios de produção e a divisão do
trabalho. Que o produto deste trabalho, será um ato público conforme regras
anteriormente estabelecidas (e aceitas) pela comunidade. Algum desequilíbrio
será resolvido ou mantido pela própria comunidade.
Mill salienta, sempre que possível, a
importância da experiência de uma ética social, ou seja, dos valores sociais. A
educação é um dos principais instrumentos. Mas, quem decide quais valores a
serem ensinados? E os discordantes? Uma dica já foi dada no parágrafo anterior.
As regras são discutias e previamente elencadas. Cada pessoa falará livremente
de suas discordâncias. Portanto, cidadãos iguais discorreriam sobre seus ideais.
Mesmo sendo impossível a unanimidade, o consenso (mesmo não absoluto) traria a
concórdia e aceitação crítica. O diálogo livre entre iguais, convence da
importância de um acordo a ser seguido. Em uma comunidade bem constituída,
todos são ganhadores com o sucesso das outras pessoas; o mesmo vale para a
discussão sobre a educação.
A prevalência do social sobre o individual, de
fato, interfere nas vidas privadas. Então é possível dizer que o espaço
individual se dissolve no coletivo? Evidentemente que não. Mill é um filósofo
muito preocupado com a liberdade. A consciência individual aparece e brilha nas
discussões sobre o espaço público e no espaço público. O sujeito crítico,
livre, num ambiente de iguais, portanto, democrático, expõe sua visão
particular e a submete às demais visões. Cada indivíduo não se deixa invadir,
mas se convence do que é melhor para todos. Aceita livremente o que foi
decidido, pois sabe que ninguém tem má fé e todos querem o bem da comunidade. Mill
reconhece que, no socialismo ou no comunismo, não há uma concórdia celestial e
plena. A realidade é sempre perturbada, pois as individualidades não se perdem.
Evidentemente que estas discórdias não são as mesmas das sociedades
capitalistas. Elas continuam a existir; mesmo que sejam em função da reputação,
reconhecimento ou poder pessoal. Nunca deixaremos de ser humanos e, por
consequência, sujeitos conflitantes. É saudável que haja posições conflitantes,
pois, o conflito é da natureza da democracia, mas principalmente, da natureza
humana. As pessoas nunca deixarão de pensarem por elas mesmas.
01) Capítulos sobre o socialismo. John Stuart
Mill. 1ª edição, São Paulo, Editora Fundação
Abramo. 2001. Página 91
02) Idem. Página 96.
03) Idem. Página 100
04) Idem. Página 102
05) Idem. Página 103.
06) Idem. Página 96
07) Idem. Página 98.
08) Idem. Página 101