terça-feira, 30 de maio de 2023

A prisão tecnológica

 



 

A prisão é confortável. Espaçosa. Porém, garante que eu não tenha contato físico com ninguém. É iluminada por duas janelas amplas, cristalinas, que dão uma boa visão do que acontece lá fora. Por elas vejo o mundo. Os sons do exterior vêm por duas aberturas altas, junto ao teto. Uma na parede esquerda, outra na direita. Tais aberturas são bem eficientes. Ouve-se nitidamente tudo que ocorre no exterior. Para poder falar com quem está lá fora, há uma outra abertura. Fica entre as janelas, a um metro e quarenta do chão, creio (nunca medi). Então é possível a comunicação oral. Este sistema de aberturas permite tanto ver o ambiente externo, quando ouvir e falar com as pessoas.

 

Qual crime eu cometi para estar ali? Nem lembro mais. Desde sempre estou neste lugar. De fato, este é o meu verdadeiro lugar de fala.  Provavelmente cometi algo terrível, tamanha a punição.

 

A solidão aqui dentro é garantida. Apesar de ver as pessoas, não posso percebê-las realmente. Elas estão sempre fora e eu dentro, óbvio. Por mais que possa ouvi-las, o mesmo fenômeno acontece. Chega até mim apenas uma espécie de reflexo da voz natural de quem fala. A minha própria voz é adulterada ao passar pelo sistema por onde me comunico. Por isso este cárcere é tão cruel. Posso ouvir e ver... sem ver e ouvir de fato.

 

A cela é diretamente voltada para a rua.  Não é separada do povo, que passeia por ali em frente sem impedimentos. As pessoas estão tão acostumadas que falam comigo como fosse normal esta situação. É bem verdade que também eu estou perfeitamente adaptado. Tão acostumado que estabelecer novas rotinas é quase impossível.

 

Falo com uns, cumprimento outros. Com alguns até fiz amizade. No geral, não me sinto tão só... apesar da solidão relativa. Dá para compreender? Daqui de dentro interajo com todos que passam. Há até professores que dão aula para mim. Daquele jeito estranho, do lado de fora tentando enfiar conhecimento pelas aberturas. Até dá certo, pois aprendo bem as coisas que ensinam. E se não aprendo, basta decorar e fazer de conta. Como estou encarcerado, ninguém pode aferir o que penso e faço de fato aqui dentro. É verdade que me vingo de todos, pois faço o que quero sem que os de fora percebam.  Eles nada podem fazer contra mim aqui dentro!

 

Quando estou com fome, aperto uma campainha. Então, uma portinha se abre numa das paredes e a comida surge. Eu posso reclamar do que é servido. Reclamo para qualquer pessoa que vejo pelas duas grandes janelas. As vezes dá certo e mudam o cardápio.

 

Aqui tem um detalhe interessante. Se quero eu mesmo fazer o alimento, ou tocar as pessoas, há como interagir com o exterior. Como nos jogos virtuais, posso manipular braços e mãos externas. Como se fossem minhas. Creio que, de fato, braços e mãos se movem do lado de fora, mas eu só tenho acesso aos simuladores. As grandes janelas para ajudarem na simulação, viram grandes telas. Por elas vejo as coisas acontecerem como se fossem reais.

 

Dá até para simular encontros amorosos.  Sério! Posso ver pelas telas o que “faço” e as legendas descrevem os sentimentos da outra pessoa. Como se o contato fosse real.  Não tem problema. A privacidade é total. Aqui dentro faço o que quero e ninguém tem acesso.  É, de fato, uma prisão altamente tecnológica.

 

Apesar de confortável e segura, a vida aqui dentro é bem angustiante. Afinal, tenho tudo sem de fato ter algo. Entendem? Ora, posso falar, ver e simular o que quero. Só não posso ter contato real. Entretanto, aqui no interior é tudo confortável e seguro. E, como viram, não há o impedimento total do que é externo. Aqui a expressão “contato real” já não faz tanto sentido. Ora, tenho acesso ao mundo de fora, apesar das evidentes limitações. Tenho prazeres ali dentro, assim como frustrações. Estou tão adaptado aqui dentro, que o “lá fora” já nem faz tanta falta assim.

 

Até tenho uma namorada. Através das simulações, quase acredito estar realmente tocando-a (se de fato ela existe). Estou apaixonado. Ela até reclama que eu estou longe dela, inalcançável. Ora, isso não há como resolver.

 

A prisão de alta tecnologia permite muita coisa, mas me mantém em cárcere. Inúmeras vezes penso ser melhor estar aqui dentro mesmo. Ora, estou seguro, indestrutível, aquecido e alimentado. E lá fora, o que há? Sofrimento, desencantos, desentendimentos e frustrações. Disso eu estou afastado. Aqui dentro estou bem e faço o que quero.

 

O que é mesmo a liberdade? Aqui dentro sou cem por cento livre. Faço o que quero, penso o que quero e discordo de inúmeras coisas sem sofrer represálias. Afinal, quem está preso? As pessoas lá fora que sofrem tanto? Ou eu, aqui dentro, fazendo o que quero e quando quero? Quem são mesmo os livres? Dentro da prisão sou realmente o que quero ser. Somente aqui posso ser verdadeiro.

 

Inúmeras vezes quero sair da prisão. Então percebo ser impossível. Posso tentar sair através dos meus pensamentos... colocando-os em poesias, textos, enfim, em coisas que com o simulador coloco no lado de fora. Ou ainda quando grito pelo local onde sai a voz... mas não é eu mesmo, é apenas eco de mim no exterior! Minhas coisas chegam lá fora de maneira terceirizada, manipulada, não sou eu mesmo. Fico triste, com raiva até. Então fico quietinho aqui dentro mesmo, no meu catre, sem me manifestar externamente.  Nesses dias tristes a solidão é insuportável.

 

Numa noite tranquila tive um sonho estranho. Nesse sonho eu saio da prisão. Posso olhar diretamente o lado de fora. Vejo tudo nitidamente, com um esplendor nunca percebido. Fico encantado! O lado de fora é maravilhoso, tão real, tão nítido e tão sonoro! Realmente, algo encantador. Mas do encanto à uma história de terror, levou um segundo.

 

O terror aconteceu quando resolvi olhar para a minha prisão, para vê-la de fora para dentro. Para perceber como as pessoas a viam. Então o susto!

 

Quando olho para trás, para ver o prédio em que estou preso, vi um corpo humano dormindo tranquilo. O corpo é igual ao meu! É o meu! Compreendi tudo quando forcei e abri as pálpebras dos olhos adormecidos daquele corpo. Levantei-as para ver o interior! Vi o que tinha lá dentro! É a minha prisão! Dentro do corpo! Olhei com mais cuidado e percebi que aqueles olhos são olhos para quem os vê de fora. Por dentro são as grandes janelas por onde o prisioneiro, dentro daquele corpo, pode ver o que ocorre do lado de fora. A prisão está vazia, disse no sonho. Onde está o prisioneiro, então? A amedrontado refleti: O prisioneiro sou eu mesmo? As telas são os olhos, e os orifícios laterais por onde ouço os sons do mundo externo, os ouvidos? E o lugar por onde grito para as pessoas ouvirem, a boca? Então, nunca aconteceu nenhum crime para eu ser um prisioneiro? Eu nasci dentro daquele corpo? Então eu sou a mente, a alma daquele corpo? Eu sou a consciência daquele indivíduo, como um motorista que dirige seu carro? Melhor ainda, eu sou o indivíduo preso naquele corpo?

 

Naquela manhã acordei gritando! Suava! Que pesadelo! Ainda bem que foi um sonho terrível. Então acalmei-me. Voltei para a calma do meu cárcere. Melhor a calma daquela prisão estranha. Mas, e se todos vivem presos? Ufa! Agora sei que foi apenas um pesadelo. Tudo voltou a normalidade. Melhor ser normal do que pensar demais!

 


terça-feira, 23 de maio de 2023

Mr. Bean e Senhor Léo Lins: farinha do mesmo saco?

 


Recebi pela manhã de um amigo virtual, num contexto de provocação intelectual, um artigo que retrata a fala de um comediante famoso. Este comediante não aceita as limitações do politicamente correto. O artigo refere-se ao comediante inglês Rowan Sebastian Atkinson (ou o Mr. Bean da tão conhecida série cômica).

 

Observemos o título da referida entrevista: Mr. Bean detona o politicamente correto: 'Toda piada tem uma vítima'. Segundo a entrevista publicada em 21/06/2022 pelo site UOL, assinada por Luciano Guaraldo, o comediante se insurge contra o politicamente correto. Como diz o título, ele acredita que sempre haverá uma vítima na arena da comédia, alguém será ridcularizado. No restante do texto, o piadista esclarece que tanto faz se a vítima é membro da realeza britânica ou uma pessoa humilde. Quanto mais uma sociedade permite a piada, tanto mais esta sociedade é livre, insinua o artigo.  Este é o pensamento do Rowan (Mr Bean).

 

E porque recebi provocativamente esta reportagem do ano passado? A pessoa que enviou queria comprovar que não era só ela que defendia a ilegalidade/imoralidade da justiça (Tribunal de Justiça de São Paulo), quando retirou do You Tube o “show” do Léo Lins.

 

Ora, nem precisava enviar o artigo para confirmar que muitas pessoas pensam como o meu “amigo”!

 

Qual a justificativa para o banimento do “show”? Coisa pouca. Apenas a pessoa fazia “piadas” sobre a escravidão, idosos, minorias, autistas, crianças com hidrocefalia e demais pessoas deficientes.

 

O cidadão Léo sentindo-se vitimado, recorre aos tribunais afirmando haver censura. Provavelmente, não quererá que os julgadores façam piada disso. Afinal, julgar e rir não combina. Salvo se o julgador for um comediante e a vítima não puder se defender imediatamente, claro.

 

Apesar dos parágrafos anteriores, não quero criticar diretamente o Mr. Bean ou o Senhor Léo. Claro que eles são o pano de fundo do que escrevo. O que pretendo mesmo é refletir sobre a piada violenta/discriminatória. Para isso vou usar a conceituação do humorista inglês. Vou usá-la somente porque ele teve a coragem de dizer claramente o que entende por piada. Ao falar sobre conceito dela, ele usa expressões duras como vítimar, ofender e ridicularizar. Defende que estes elementos são essenciais para fazer a “graça”. Para não deixar dúvidas sobre a sua “democrática” visão, defende vitimar, ofender e ridicularizar não só a nobreza, mas até os mais humildes. Simples assim.

 

Já o comediante brasileiro não teve tal coragem, e apenas pediu liberdade de expressão.

 

Posso concluir, portanto, que para ambos os piadistas, podem ser vítimas tranquilamente os que sofrem limitações, os frágeis, os humildes, os escravizados e os maltrapilhos. Afinal, a piada escolhe qualquer pessoa! A piada é “cega”, não vê suas vítimas!

 

Claro, nesta visão “democrática”, também podem ser ridicularizados os ricos e os poderosos. Como se as consequências fossem as mesmas quando as vítimas são os hipossuficientes e os poderosos! Mas, quem se importa com isso? Com certeza não aqueles que pagam para assistir estes “shows”.

 

Não podemos esquecer que escrevo para responder à provocação de quem me enviou a reportagem!

 

Vamos analizar as palavras corajosas e reveladoras pronunciadas pelo inglês: vítimar e ofender (como parte do ato de fazer piada). Será que ele estava consciente do que disse? Eu creio que sim. Vamos entendê-las.

 

Vitimar se refere a causar dano a um sujeito passivo. É uma ação destrutiva, onde quem a sofre não consegue reagir a ponto de evitar totalmente a dor da violência. Acrescente-se que, no caso da piada, o sujeito passivo é ainda inocente! Nada fez contra seu algoz.

 

Seguindo o palavreado do nobre comediante estrangeiro: ofender. Parece que ele quis dizer que a piada precisa causar algum tipo de dano, agredir de alguma forma a vítima. Então, a piada seria uma forma de ferir o agredido sem responsabilização do agressor.

 

Concluo que, segundo esta definição de piada, ela seria uma ação covarde.

 

Ainda bem que o brasileiro não disse tudo isso. Apenas acredita sem expressar verbalmente. Apesar deste silêncio, percebo a concordância conceitual entre ambos os piadistas, pois o brasileiro aje em consonância com o conceito do seu colega inglês. Penso, portanto, que é possível compará-los/igualá-los ideologicamente.

 

Observemos o que diz a defesa do Léo. Qualquer limite à piada é uma censura. É preciso, urge portanto, liberar totalmente as falas engraçadas. Uma espécie de Habeas Corpus preventivo. Um luxo!

 

Eu decodifico esta defesa desta forma: liberar significa proteger o piadista e garantir a total exposição da pessoa que será agredida em praça pública.

 

Gostaria que a pessoa que enviou a reportagem para mim, após ler seriamente este escrito, tivesse a coragem do inglês e dissesse: Eu quero poder agredir e vitimar qualquer pessoa sem ser agredido ou vitimado. Eu quero, enquanto piadista, ficar acima da lei e das pessoas que vou agredir. Isso sim é que é liberdade!

 

Fico no aguardo da coragem.