sábado, 23 de fevereiro de 2019

O Estado, a confiança e os três “is”





   
      Quando falamos em confiança no Estado, necessariamente surge nas mentes as palavras esperança, crença e reputação. Confiar significa esperar que as consequências das ações sejam sempre similares, quando ocorrerem nas mesmas circunstâncias. É a “fé” em que quem julga os acontecimentos, os julgará de forma sempre previsível, pois há normas que regulam. Para que haja confiança, quem julga tem boa reputação. Sua história o antecede. Faltando estes elementos, não é possível ter confiança. Numa sociedade feita por pessoas sem confiança, valeria o dito hobbesiano: o homem é o lobo do homem.
     
      O Estado se apresenta (ou deveria se apresentar) como uma instituição em que se pode confiar. Ele é a instituição máxima que resolve os conflitos, que dá as condições para a harmonia social. A confiança harmoniza a sociedade. A sensação é que o Estado é onipresente, corrigindo os desvios, reconduzindo os desviantes à normalidade legal. A existência dos poderes públicos, só se justifica porque se pautam pelo desejo de garantir a segurança, a confiança e a estabilidade social.
     
      Numa sociedade, quanto mais rápido os valores tradicionais mudam, quanto mais a crise da moralidade entre as pessoas se agudiza, mais o Estado sobre a sociedade se torna atuante. Tem que pôr nos trilhos os vagões que trepidam.
     
      Quanto menor a crença dos indivíduos no culturalmente correto, mais o judiciário é chamado a intervir impondo então o legalmente justo (na falta do culturalmente correto). Quanto mais as pessoas descumprem as normas, mais o Estado é chamado a intervir. Quanto menor o desejo de respeitar as imposições da polis, maior será a intervenção dos poderes públicos.
     
      A globalização sempre on-line relativizando culturas, fortalecendo o individualismo, facilitando as crises morais e estimulando a crescente competição entre as pessoas, enfraquece a confiança entre os cidadãos.  Como consequência, as pessoas ficam cada vez mais dependentes da confiança delas nas imposições do Estado, para que este possa dirimir os conflitos sociais. Esta dependência é crescente: a autonomia das pessoas cedeu ao egoísmo.
     
      A confiança no Estado não é algo natural. As pessoas têm que aprenderem a confiarem nele. A confiança deve ser ratificada pelas instituições públicas diariamente.  Portanto, as instituições públicas devem merecer na prática esta crença. A cada ação do Estado sobre o indivíduo, este o avalia. Então, o povo poderá (ou não) se sentir seguro. Por isso, é tão importante que as decisões estatais sejam sempre fundamentadas e justificadas de modo simples. É preciso que as pessoas percebam (e entendam) a importância da normalidade e da previsibilidade que é (ou deve ser) garantida pelo Estado.
     
      O povo precisa cada vez mais da confiança no Estado. Mas, e quando este não a merece?
     
      Quando os agentes públicos agem de forma imoral, provocam um grande estrago. Eles atentam contra a alma da organização estatal: a confiança nela! Mais grave é quando são agentes políticos. Os detentores de cargos eletivos, os ministros ou secretários de governo, mais fortemente representam o Estado. Estes, portanto, cometem crime maior. Eles atentam contra a confiança e contra a estabilidade civilizatória dentro do Estado.
     
      A confiança vem de fora de quem a merece. É a outra pessoa que se deixa levar este sentimento. Tem que ser merecida diariamente. É uma conquista frágil. Melhor dizendo: a confiança é sempre uma reconquista!
     
      Quando um cidadão passa a desconfiar do judiciário, do legislativo ou do executivo, torna-se um áspero grão de areia atritando nas engrenagens dos poderes públicos. Em um primeiro momento, um único grão de areia é destruído pelas grandes engrenagens da máquina pública. Entretanto, um punhado de grãos de areia impedem seu funcionamento. Quilos e mais quilos de grãos ameaçam com sua resistência a integridade das engrenagens. Ela fica lenta. Entorta. Range. Trepida a cada momento.  Então, cada movimento ruidoso da máquina pública gera mais desconfiança, pois está cada vez pior. Quanto mais desconfiança, mais insegurança. Em determinado momento, os lubrificantes não fazem mais efeito.     
      Então, para controlar os cidadãos num ambiente de desconfiança, um tanto de força estatal é utilizada. Depois, mais um tantinho. Num dia é uma condução coercitiva ilegal. No outro, um par de algemas sendo usado sem porquê. Na semana seguinte, um juiz exacerba e ignora algum direito fundamental. Noutro momento um negro morre por engano. E por último, o STF decide a favor ou contra observando a biruta dos ventos políticos. A desconfiança vence.
     
      A máquina do Estado estala cheia da areia dos desconfiados e agora cidadãos arredios.
     
      O legislativo é visto como um perigo ao que é justo. Os próprios membros do legislativo chamam o judiciário para decidir sobre suas mazelas. Mas o judiciário “eólico” (ritimado pela biruta dos ventos políticos) também está adoentado. Também não é bem visto pelos cidadãos. A máquina estatal trava rangendo as suas entranhas. Agora é a vez do executivo avançar sobre o legislativo na tentativa de controla-lo. Como ter confiança?
     
      Esta situação coloca o Estado sobre tal grau de desconfiança popular, que a força e a imposição estatal se tornam corriqueiras. Portanto, o Estado erra duas vezes. Quando permite a desconfiança do povo e quando, tentando reduzir os danos, exorbita se utilizando da violência (legal – lawfare -, simbólica, midiática ou física).
     

      Deixando de ser depositário da esperança, da crença ética e de uma boa reputação, as instituições públicas tornam-se imorais, incompatíveis com a democracia e, principalmente, ilegítimas. Ilegítimo é o exercício de um poder público quando não autorizado pelos cidadãos. Quando não é popularmente autorizado, é incompatível com a democracia. Imoralidade, incompatibilidade e ilegitimidade: estes são, portanto, os três “is” fatais. O Estado quando flechado três vezes, morre para renascer fora dos limites da confiança e, por consequência, renasce um fora da lei. 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Nos casos de assassinato, a pena de morte seria a legítima defesa da sociedade pelo Estado? Testando as hipóteses





No contexto da filosofia do direito




Como inspiração para este texto, o que li na rede social em comentário sobre a pena de morte: Nos casos de assassinato, a pena de morte é a legítima defesa da sociedade pelo Estado”. Argumento que foi bem aceito pela galera do senso comum. Entretanto, é indefensável.


Imaginemos a situação hipotética (e inverossímil) de um testamento: “Deixo como herança para meu irmão Paulo da Silva meu direito de legítima defesa, para que, em caso de eu ser assassinado, Paulo já citado acima, possa matar o meu assassino em minha legítima defesa e por ela se justificando frente aos tribunais.”  Evidentemente que tal desejo é risível. Juridicamente este direito (da defesa legítima) é indisponível, subjetivo, sempre atual, personalíssimo e intransferível.  Portanto, não é um bem sujeito a sucessão. Na verdade, em todos os sentidos seria um absurdo.

 

Agora, analisemos o argumento a favor da pena de morte nos casos de assassinatos. O argumento que descrevi lá acima deste texto, afirma que o Estado está (ou deveria estar) autorizado a penalizar com a morte os assassinos. Então, estaria realizando uma espécie de legitima defesa da sociedade, o poder público “herdaria” dos indivíduos mortos este poder. Por este raciocínio, para que inocentes não morram assassinados (no futuro), o Estado mataria os criminosos (pois mataram alguém em seu passado).

 

Paradoxo! Em nome do passado, o poder público defensivamente mataria por algo que poderia acontecer no futuro? 

 

Exemplifico. Maria da Silva matou seu marido friamente há dois anos. Hoje foi condenada à pena capital para que não se concretize a hipótese de que matará alguém no futuro (numa espécie de proteção da sociedade). Mesmo sendo apenas uma hipótese (que ela mataria novamente), não será sequer necessário comprová-la, pois já eliminamos Maria.  

 

A pena capital seria exemplo que impedisse crimes futuros?

 

 A ameaça da pena de morte só afeta os que ficam, é verdade. Entretanto a ameaça não atinge a todos igualmente. Quem não se importa em morrer ou quem se acha intocável, não acredita que poderá ser atingido. Um psicopata não tem medo. Alguém poderoso demais não se importa com essa ameaça. Portanto, matar quem matou interessa apenas aos que querem se vingar.

 

Estes parágrafos são só para testar a reflexão, obviamente!

 

Retomando o argumento principal: os mortos não podem mais ser defendidos da morte. Só vivos podem ser.  Só a vida pode gerar direitos vitais! 

 

A dor que a morte gera, o medo, o sentimento de indefesa e tudo mais... nada disso gera um (pretenso) direito de legitima defesa (post mortem) da sociedade. Se os entes públicos falharam na defesa, o problema é de prevenção e de proteção aos sujeitos vivos atuais e futuros.

 

Defesa e proteção da vida são questões sempre atuais, não envelhecem, não prescrevem, não descansam e independem dos que morreram. Não dependem porque se ligam aos vivos.

 

Os argumentos que defendem a morte pelo Estado embasado nos que morreram, na verdade são desejos de punição e de esquecimento da vida. É um apelo ao que se perdeu e não ao que se tem: a vida das pessoas!

 

  Se a medida da pena se relacionasse com a dor da família enlutada, sempre seria pena máxima!

 

O Estado nada herda dos mortos. Apenas aprende com a experiência e com suas falhas.

 

Não cabe ao Estado, porque falhou na defesa do cidadão, permitir e promover a morte do criminoso. Ora, quem falhou pode punir tão duramente?

 

A morte como pena patrocinado pelo Estado, nunca é uma defesa dos vivos (muito menos dos mortos).

 

A justiça pensa nas questões sociais, na vida em sociedade, no bem-estar de todos e, com certeza, pensa na segurança pública. Obviamente, pensando nos vivos, não nos mortos. Somente os vivos podem usufruir destes valores. A justiça é para os vivos.  Por aí se vê a importância da ressocialização, da preservação de todas as vidas, da dignidade, da educação e, principalmente, da prevenção. A prevenção está mais nas questões da justiça social (que valorizam a vida) e menos nas questões judiciais criminais punitivas.