quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Uma reflexão um tanto filosófica

 


A humanidade se caracteriza por um existir consciente da existência (a pessoa sabe do seu interior – mente – e do seu exterior – a realidade). Uma das principais maneiras de pôr-se para fora do Eu (sair do egocentrismo) é formular perguntas. Mas todo o perguntar tem uma pré-condição e uma pré-direção, ou seja, uma orientação (pré)condicionada pela vivência do sujeito que propõe perguntas.

 

Esta pré-orientação pode ser propensa à abertura para o mundo, ou, ao contrário, restritiva.

 

A qualidade do perguntar é diretamente proporcional a história vivencial do sujeito das questões. Nossas vivências determinam o que queremos saber, ou o que já sabemos determina a qualidade do perguntar. O que sabemos de antemão permite e (também) limita o querer saber mais e além. Neste sentido, o saber anterior à pergunta habilita não só a existência da própria pergunta, mas também o entendimento da resposta.

 

O nada conhecer nada quer nem nada pergunta.

 

Partindo das inferências anteriores, o perguntar tende ao infinito (em quantidade e qualidade), pois, quanto mais eu sei mais posso perguntar e entender a resposta.

 

E o que é este pré-saber? São todas as informações e experiências que tivemos em nossa vida. Afinal, somos abertos para o exterior (os sentidos e a possibilidade de perguntar nos abrem).

 

Fechar-se ao mundo exterior à nossa mente, exige algum esforço. Limitar-se não é algo natural ao ser humano.

 

Muitas vezes o perguntar busca somente respostas que ratifiquem este pré-conhecimento, numa tentativa de perpetuá-lo, ignorando o que pode contradizê-lo. Então temos os mitos que se autojustificam.  

 

Isto porque este pré-conhecimento aloja juízos tão valorizados pelo sujeito, de forma determinante, que embotam, aleijam o querer saber mais. O querer saber mais se torna submisso e improdutivo, mero repetidor das informações já tidas como certas e inquestionáveis.

 

Tanto o cientista quanto a pessoa comum estão sujeitas a este hipertrofismo intelectivo.

 

Desta forma, um perguntar produtivo e seguro de sua tendência ao crescimento, explora as seguintes reflexões:

 

                        Por que pergunto o que pergunto?

                        Por que quero inspecionar isso e não aquilo?

                        Perguntar o que pergunto me traz coisas novas?

 

Podemos ainda questionar o sentido de nossas perguntas para sabermos através do sentido delas, qual o pré-saber que as determina (portanto, quem somos). O processo tem duas mãos: 1º) o que sei determina a pergunta. 2º) A pergunta indica o que já sei. Dessa forma posso detectar se pré-juízos danosos estão limitando o querer saber mais.

 

Para saber o que limita meu querer saber mais, acabo perguntando por mim mesmo. Eu me encontro nas perguntas que faço, ou nos limites que tenho em fazê-las.

 

Na verdade, podemos dizer o seguinte num drástico resumo: as pessoas devem saber um pouco para perguntarem bastante. Perguntando bastante saberão muito. Sabendo muito, perguntarão mais...

 

 Afinal, o que difere a pessoa dos demais animaizinhos? Sua capacidade consciente e velozmente crescente de perguntar, entender a resposta e, ao entendê-la, perceber-se como alguém aberto ao conhecimento de si mesmo e do mundo.

 

sábado, 25 de setembro de 2021

Todos devem pensar com “animus brincandi”

 



 

“E foi nesse instante que a vontade de não ser séria chegou. Este é o primeiro sinal do animus brincandi, em matéria de pensar – como – hobby.”

 

Estava lendo algumas crônicas da Clarisse Lispector. E uma em especial me chamou a atenção. Chama-se Brincar de pensar, escrita na década de sessenta.  Nem preciso me debulhar em elogios aos escritos desta maravilhosa escritora; todos já sabem das suas qualidades excepcionais.

 

Parece até que estava combinado com o destino. Ele quis que esta crônica viesse até mim, após eu ter publicado vídeos sobre a necessidade de sempre (re)pensar, no meu blog.

 

Nesta crônica – Brincar de pensar - Clarisse levanta a hipótese do pensar como um modo de se divertir.  Para isso, ela apresenta uma novidade: a importância de pensar e se perceber pensando.  Talvez estas coisas (pensar e prazer de pensar) soem como incompatíveis. Esta (in)compatibilidade depende de como cada um utiliza sua capacidade de pensar. Vamos examinar isso.

 

Todos exercemos diariamente o pensar habitual e orgânico: aquele que sequer percebemos que estamos pensando. Quando vou comprar pão na esquina, eu penso no que vou fazer, é claro. Entretanto, é tão habitual que tenho pouca consciência destes meus pensamentos.  Claro que, neste nível de inconsciência, não podemos acreditar que possa ser algo divertido. Pois só é divertido aquilo que vivenciamos conscientemente. Se não tenho plena consciência do que é prazeroso, não tenho pleno prazer.

 

Temos que ter consciência do nosso pensamento. Saber o que fazer com ele para nos divertirmos com seu exercício.  

 

Há pensares especializados que são como ferramentas, servem para resolver problemas (ou criá-los, dirá um pessimista!). Aqui temos o pensamento racional, não habitual, instrumentalizado. O filósofo é craque em utilizar o pensar para resolver enigmas radicais. Não me parece que, naturalmente, este tipo de pensar facilmente dê prazer para um grande número de pessoas que o exercite desta forma. Afinal, ele é muito trabalhoso. Portanto, para ser prazeroso para muitas pessoas, terá que ser um tanto diferente disso.

 

O pensar especializado é prazer para sujeitos especializados.

 

Clarisse nos conta que há pensares que podem ser feitos com outras pessoas (em colaboração). Neste caso, já não depende só de nós o prazer de pensar, afinal, dependemos da amorosidade com que as outras pessoas vão receber nossas reflexões.  Sem falar que, quanto mais tímidos formos, mais constrangidos seremos neste compartilhamento. No caso de pensarmos sozinhos, ensimesmados, a coisa é mais fácil. Mas há um efeito colateral desta solidão pensativa: acabamos pensando (pro)fundo. Então, há algum risco de ficarmos, segundo a Clarisse, “com o coração pesado”. Não parece ser muito divertido.

 

Corações leves encontram mais fácil o prazer de (re)pensar.

 

Eu concluo: o pensar prazeroso, portanto, ocorre de forma diferente do descrito nos parágrafos anteriores. Ou seja, tem que ser consciente e, se trabalhoso e profundo, que tenha alto grau de prazer como resultado das elucubrações. Para ser prazeroso, tem que valer a pena.

 

Qual forma de pensar é divertida?

 

Nos divertimos quando brincamos. Ou quando jogamos de brincadeira. Quanto mais despreocupados, tanto mais nos divertimos. Enquanto brincamos, sem querer, alargamos as regras, confrontamos os limites. O jogo recreativo é divertido porque é imprevisível (pois é uma aposta) e é uma esperança (pois esperamos ter sucesso na jogada). O prazer está entre a excitação da imprevisibilidade e o conforto da esperança. O pensar divertido é esta espécie de jogo.  

 

Evitando a especialização extrema e a inconsciência de como pensamos, todos nós poderemos transformar o pensar em uma brincadeira, em uma alegre afronta mental às regras rígidas da rotina.

 

O hábito diário de não desregrar, de não fazer o diferente é econômico. Quero dizer com econômico que o hábito faz com que gastemos pouco da nossa energia mental. Para repetir o já pensado e fazer o que já foi feito inúmeras vezes, basta estarmos espiritualmente ligados no “automático”. Qual o preço da rotina? Não termos prazer em refletir. Em contrapartida, dirão os conservadores, não cansamos nossa mente. Para muitos esta contabilidade está ótima. Não há motivos para mudar o que é habitual e funciona tão bem (e por tanto tempo!).

 

E se valorizássemos a diversão, a diversão do pensar não rotineiro? O típico “sair da caixinha”!

 

Podemos nos esforçar para obtermos esta competência: pensar prazerosamente, como se fosse um jogo divertido. Não é algo facilitado pela nossa cultura conservadora, portanto, exige esforço. Podemos treinar nossa mente para repensar o que ocorre e nos chama a atenção. Buscar alegremente (como num jogo de adivinhação) o sentido, o porquê, quais as intenções, quais as consequências. O prêmio é o prazer de tornar mais complexo o que parecia tão simples. O prêmio é compreender mais o que já compreendíamos medianamente.  

 

Esse jogo pode ser jogado sozinho, ou com companheiros igualmente treinados na brincadeira. É, confesso, um jogo muito refinado, mas também muito divertido. Quebra a rotina. Cansa um pouco, mas à medida que ficamos bons no jogo, nem cansamos mais. Jogamos com orgulho até. Seremos como os atletas do grupo de elite. Quanto prazer em ser admirado por nossa excelência!

 

No caso, excelência no pensar.

 

Quando sozinhos, pensar é um monólogo interno. O jogo é mais simples e mais profundo por ser íntimo. Jogar com outros é mais complexo, e tende a não se aprofundar. Claro, há exceções.  Há grupos, como em campeonatos de xadrez, onde todos os participantes são exímios jogadores! Então, jogar em grupo é um show! Mas, convenhamos, não é a regra. 

 

Pensar de forma divertida é como praticar esportes. Dói tudo no início, depois é só diversão.

 

No final da crônica a Clarrise afirma que às vezes o pensar brincando, brinca com a gente: é o brinquedo que brinca conosco, nos domina. E conclui: “Não é bom”.  Pensei sobre isso e concordo com ela em parte. É verdade que ao pensar, o pensamento pensa a gente. Ou seja, eu vou conhecendo a mim mesmo à medida que vou refletindo sobre o que penso. Fico mais consciente de quem eu sou. E isso pode ser doloroso. Brincar de pensar me deixa menos bobo, menos afeito às rotinas. Brincar com minhas reflexões, permite que eu entenda mais o que me cerca. Isso me tira da eterna infância da rotina mental. Talvez não seja muito agradável entender o meu entorno. Entretanto, o prazer de brincar e o prazer de perceber os avanços que tal brincar fez comigo, faz tudo valer a pena.

 

Então, diferentemente da Clarisse, eu concluo: isso é muito bom.