quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A cooperação como condição mínima para conviver no liberalismo.






Diz-se que no liberalismo a liberdade é o princípio dominante. Nele as pessoas livres podem competir de maneira a progredirem. A tese é que a competição entre indivíduos ou entre empresas fundamenta o sucesso das nações.  A competição não é um mal em si mesmo, defendem os adeptos do liberalismo. Ao contrário, seria um estímulo à produtividade e à inventividade.  A prova está no sucesso mundial do capitalismo, ensinam. Por consequência o protecionismo estatal teria o efeito contrário: o acomodamento das pessoas, o desestímulo à competição entre as empresas (com o consequente declínio da qualidade dos produtos e o aumento de seus preços). Creem que a ausência da competição é o acomodamento dos entes produtivos.

Não é possível desprezar o papel da competição como incentivo à criatividade e à produtividade. Entretanto, também não é desprezível a seguinte contradição: se a liberdade é o valor máximo onde se valoriza a competição; as pessoas também devem ser livres para escolher não competir e para defender este seu ideal.

A liberdade proposta pelo liberalismo brasileiro impede a liberdade de escolha para ser não competitivo? Ou pune esta escolha com a miséria? Há espaço para os entes cooperativos?

Precisamos fazer algumas reflexões. Vou usar como exemplo a competição entre lutadores de arte marciais. Neste ambiente, a competição chega ao seu máximo. Entretanto, as regras que limitam o embate foram acordadas antes. Estas regras foram elaboradas em outro ambiente, o da cooperação. É provável que os organizadores dialogaram muito, buscaram ganhos e evitaram perdas recíprocas. Ajudaram-se uns aos outros para que o evento fosse possível. Por mais que houvesse interesses individuais, só cooperando entre si garantiriam a segurança dos lutadores, a existência da competição e a continuação do próprio evento. Os lutadores competem, mas os organizadores cooperaram entre si para a qualidade do embate. Não seria possível a competição sem a cooperação prévia. Na preparação, não importa se os motivos foram egoístas ou não. Ou cooperavam ou não haveria a competição segura nem ela se manteria. A condição de existir e se manter foi a cooperação.

Percebe-se que a competição pura e ilimitada gera antagonismo a tal ponto que ele destrói a própria competição. Então surge a violência, a ideologia do inimigo. Inimigos devem ser destruídos, mais que vencidos. Inclusive no antagonismo, as regras se existirem, serão ignoradas. Sem regras, no espaço do vale tudo, não como definir um vencedor sem ver alguém cair. Sem regras não há árbitro. Da competição à violência é apenas um pulo.

Percebe-se que a liberdade plena aliada a uma competição absoluta, é a fórmula do caos. É preciso encontrar uma limitação, um espaço para acordos e para o restabelecimento dos vencidos para que estes possam retornar à disputa (não podem ser definitivamente eliminados). Para limitar o conflito é preciso a coerção dos excessos, a limitação das desigualdades quando impeditivas e o arrefecimento dos desejos individuais pelo sucesso a todo custo. Percebe-se que para que seja possível a competição segura, é imperioso manter espaços iniciais de cooperativismo. Nestes espaços cabem inclusive, os que não querem competir. É preciso um locus de reflexão calma e cooperativa para que possamos organizar as sociedades. Neste lugar de debate regrado pelos princípios de humanidade, e pelo respeito pela dignidade de todos os seres vivos, haverá a negociação, o consenso, a política, a composição. Quero dizer que neste lugar não competitivo se pensa a competição e seus limites. A mentalidade liberal estará suspensa neste debate, pois é uma conselheira suspeita. Afinal, é o limite do próprio liberalismo que está em debate neste fórum cooperativo. Neste ambiente socializante se falará sobre os limites das liberdades, sobre as sanções aos excessos e sobre o preço a pagar pelas liberdades de competir. Inclusive, discutir-se-á a liberdade de não querer competir. Garantir-se-á lugar no mundo para os que não desejam competir nem desejam o lucro. Assim como no exemplo da luta, ninguém pode se machucar. Na competição econômica nenhum povo pode sofrer com a miséria. Haverá garantia de um mínimo de dignidade para todos nas regras do liberalismo, ou mesmo este sucumbirá na violência de todos contra todos.

Não há que se falar em exclusão, mas em seu inverso: a inclusão das diversas ideologias. A liberdade genuína está na convivência e nos fóruns de debates.

Portanto, as ideias cooperativas, os ecologistas, os feminismos, os homossexuais, as falas das minorias, os socialismos e os comunismos são bem vindos. A extinção destes atores sociais é a barbárie. Sem eles a competição seria plena e predatória. Nesta plenitude a violência proliferaria, a desordem civil cresceria, o estado repressor se agigantaria para refrear os excessos crescentes. E ninguém quer um Estado crescentemente repressor.

Conclui-se que o foco das políticas governamentais tem que ser o favorecimento dos espaços de cooperação. O apreço estatal deve ser pelas políticas que favoreçam as iniciativas de equalização das discrepâncias sociais. Estas iniciativas são o incentivo à qualificação da saúde pública, à educação, à oferta de emprego, à moradia e ao investimento político na redução das desigualdades sociais. Só assim haverá as condições mínimas para a cooperação. Sem ela a opção pela competição é predatória, desleal e autodestrutiva.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A ignorância e a barbárie estão querendo assumir os espaços jurídicos.



      Desde sempre a humanidade teve fetiche pelo corpo. Desde sempre a história nos mostra a preocupação com os fenótipos.  Os corpos sempre foram avaliados como belos ou não. Se belos, tinham algumas vantagens sobre os demais.  Corpos de boa aparência (de acordo com sua época) eram bem-vindos e desejáveis.  “A primeira impressão é a que conta”; minha avó já dizia.
     
      Os corpos ditos feios eram/são malvistos.
     
      Cesare Lombroso (1835 – 1909) ensinava que de acordo com a aparência do indivíduo, poderíamos suspeitar se era um criminoso.  Os ocupantes dos presídios parecem confirmar sua tese, porque os fenótipos se assemelham. Corpos da mesma etnia parecem seguir o roteiro de se tornarem criminosos.  Afinal, sempre se prende os negros, os pobres, os menos escolarizados.
     
      O fascínio pelo corpo é antiquíssimo. A tortura para saber a verdade ou para inibir atitudes. Os corpos das mulheres queimadas vivas como bruxas. O açoite dos ímpios. A morte por apedrejamento das pecadoras. O estupro das mulheres dos vencidos nas guerras. A crucificação dos criminosos. E, finalmente, as prisões.
     
      Os calabouços são exemplos clássicos, criados para colocar os indesejáveis. No início, encarcerava-se para guardar as pessoas até serem supliciadas ou enforcadas. Só depois passaram a ser o que são hoje: locais de cumprimento de pena.  A construção de mais cadeias atualmente é mais desejada que a criação de escolas de vanguarda. Talvez porque as escolas progressistas trabalhem o espírito (portanto, fogem do fetiche do corpo).
     
      Encontramos facilmente adultos dizendo que bater em corpos de crianças é mais efetivo que educá-las pela (e para a) palavra. Dizem que as crianças não entendem o que se diz, mas entendem perfeitamente o chinelo na mão do adulto agressor.  Alardeiam que é melhor apanhar dos pais na infância do que da polícia quando adultos. Não entendem que nem os pais, nem a polícia deve bater!
     
      Sempre o fetiche pelo corpo! Acreditam que agredi-lo, encarcera-lo, atingi-lo é mais fácil e eficiente do que falar com o outro, do que ouvir e aprender.  Castigar os corpos, pensam, é mais fácil e menos trabalhoso que educar os espíritos.
     
      Corpos estão à distância da mão e da chibata. Já os espíritos estão ao alcance da inteligência. Há que se escolher.  
     
      Entender o Código Penal, o Código de Processo Penal e a lei de execução penal como a solução primeira para a violência que acomete o nosso país, é o fetiche pelo corpo tentando assumir ares jurídicos.
     
      Prender mais pessoas por mais tempo, eis a novidade (tão antiga) que se apresenta hoje. Prender os corpos que delinquem. Algemar a pessoa que é abordada pela autoridade policial. Reduzir os direitos e as garantias fundamentais que estes corpos possuem. Urge castiga-los, demonizá-los e fazê-los sofrer.  O Direito Penal passa a ser a primeira razão (e não a ultima ratio).
     
      Por não conseguirmos estabelecer diálogos éticos entre as consciências, encarceramos os corpos insubmissos.
     
      Dizem os amantes deste fetiche: menos universidades, mais presídios. Melhor criança trabalhando do que só estudando.  Castigar a criança como faziam nossos avós é mais eficiente que ficar no blá blá blá dos psicologismos. Trabalhos corporais forçados são melhores do que uma prisão de boa qualidade. Uma prisão humanizada será tão boa que compensará o crime ao invés de reprimi-lo. Estas falas ratificam o desejo pelo corpo e por seu suplício.
     
      O suplício vem através da falta de empatia pelos corpos aprisionados. Estes são esquecidos. Ficam depositados e mantidos por um ente invisível: o Estado. Lá sofrem fora das vistas dos demais. Não é falado, mas sabe-se: a finalidade do depósito de corpos humanos nas prisões é providenciar o sofrimento deles.
     
      Estamos desumanizados e desumanizamos.  A cultura do ódio e da intolerância não se esconde mais. A ignorância e a barbárie estão querendo assumir os espaços jurídicos.
     
      Criou-se a falsa crença de que se alguém pratica a violência, a violência maior praticada nas cadeias a impedirá de reincidir no crime. Como se a violência maior impedisse a menor. Faz sentido? Claro que não.
     
      Menos coliseus da Roma clássica e mais escolas. Menos prisões e mais livros. Mais liberdade e menos preconceitos. Mais amor e menos flagelos corporais.