domingo, 27 de dezembro de 2020

Entre bebidas e taças. Re-reflexão sobre o refletido.

 


Eu cá fico refletindo sobre cada coisa que vejo. Uma espécie de re-reflexão sobre o refletido! Redundância das redundâncias!

 

Sou provocado a fazer essas reflexões. Forçado!

 

Como não comentar as inúmeras fotos de pessoas segurando ostensivamente taças com bebidas? Sorrisos congelados. Roupas novas, talvez.  A taça chique e a bebida alcoólica estão sempre relacionadas a pretensa relevância das pessoas que as portam.

 

 Festa, formatura, Natal, primeiro do ano: é fatídico! Sempre haverá algum conviva a ofertar às lentes do celular uma bebida em sua belíssima taça.  

 

Quanto mais chique o continente (a taça) melhor. O conteúdo (a bebida) fica para a imaginação de quem ver a imagem na rede social.

 

Eu posso entender que quando a festa se refere ao desportista, ele exiba naturalmente a sua medalha. Assim como o criador de modelos de vestidos, exiba aos olhos ávidos suas melhores peças.

 

Contrário sensu, não entenderia um sedentário que comprasse a mais cara medalha dos cem metros rasos para exibi-la.  Nunca a careza da medalha representaria o desempenho pessoal do sedentário! Quem mereceria elogios nesta hipótese, seria o ourives que fez a peça no mais puro ouro.

 

Como entender que alguém que não trabalha com taças ou crie novas bebidas, as exiba como um troféu? A única ligação entre o possuidor e o possuído, é o esforço para comprá-lo. Qual o mérito?

 

Seria a exposição fotográfica destes dois produtos a representação do sucesso e da felicidade?

 

Não pode ser! Afinal, a bebida está mais para o alcoolismo do que para a representação do sucesso. A taça está mais para o sucesso da fábrica de taças do que para a felicidade de quem a utiliza.

 

São raros os que se retratam tomando água ardente em copos de boteco.  Acredito que a vulgaridade (no sentido de ser comum) impede que tais coisas simbolizem algo que eleve o bebedor com sua taça bonita. 

 

Portanto, o vulgar, o barato e o que é simples deve ser excluído da foto.

 

Logo, as taças são sofisticadas e seus conteúdos pretendem demonstrar delícias incomuns aos mortais. A finesse do continente denuncia o conteúdo muito chique, especial, raro, caro.

 

A foto tenta relacionar a finesse do objeto e da bebida ao possuidor destes.

 

O sorriso especial, o movimento não natural das mãos que conduzem o precioso líquido em seu raro recipiente, merecem ser registrados para salientar quem tem o poder de portá-los e de oferecê-los nas redes.

 

Uma ostentação, uma demonstração de um momento especial.  Quanto mais parecerem ser caros, raros e de difícil acesso, melhor indicarão a importância do momento.

 

Entretanto, quem garante que a taça não é de plástico e que a bebida não tenha sido comprada no supermercado da esquina? Quem garante que as pessoas são o que demonstram ser?

 

Os leitores me dirão: Não importa a veracidade, o que é relevante é a imagem, a aparência, o simbolismo!

 

Aceito e concordo, inclusive. O que vale é a aparência e a imagem.

 

Mas vamos re-refletir.

 

Qual a relação entre as incontáveis selfies com bebidas e taças, com o sucesso e a relevância das pessoas no evento que estão ali retratados?

 

Na real 1:

 

Quem está sorrindo com seu sucesso próprio é a fábrica das bebidas, das taças e dos celulares com suas lentes maravilhosas. Quem está sorrindo é quem vende as condições materiais para a selfie. Também gargalha quem dissemina a ideologia de que o preço das taças e das bebidas, demonstram algo sobre quem as porta e as oferece nas redes.

 

Na real 2:

 

Meu louvor é para o medalhista que se orgulha da sua medalha. Meu abraço é para o escritor que mostra seu livro. Meu elogio é para o professor que grava sua aula magnífica.

 

Para o advogado que se orgulha da sua defesa, para o aluno que acertou toda a prova e para a dançarina que filma sua dança, envio meu carinho e meu desejo de sucesso.

 

O que espero do sujeito da taça e da bebida, daquele que se autoelogia nas fotos ao postá-las nas redes?  

 

Destes espero que deixem de ensinar que beber álcool é bom. Que não ensinem que comprar coisas raras faz das pessoas sujeitos raros também. Destes espero que se esforcem mais em suas vitórias espirituais, e que as possam publicamente demonstrar sendo bons exemplos éticos à sociedade.

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 22 de novembro de 2020

Minha rede social, minha casa virtual

 



 

Vou comentar minhas experiências nas redes sociais.  Vou falar de mim de forma a não magoar ninguém ao falar delas.

 

Senti na pele a necessidade de urbanidade nas redes sociais. Sei que quando coloco na rede mundial de computadores (world wide web) uma postagem, implicitamente solicito a participação dos internautas. É um convite certamente

 

Eu não posto coisas esperando solidão. Sequer espero, ao me expor, concordância universal. Até porque na área das ciências humanas, a universalidade é rara. Ainda mais quando a teoria é confrontada com a vida.

 

Apesar da universalidade raríssima, alguns axiomas o são... ou devem ser (apontando para a ética). Sabe-se que, quanto mais teórica/abstrata, mais possível de universalidade uma premissa é.

 

Um bom exemplo desta amplitude, veio-me agora à mente, é o respeito com a casa alheia quando a visitamos (creio ser válido em todo o planeta).  A expressão material do respeito varia de cultura a cultura, mas todos sabem que o respeito é fundamental. Tem algo a ver com a dignidade da pessoa humana.

 

Vamos imaginar que convido alguém para jantar na minha casa, porque tenho um quadro novo que quero mostrar. Mando o convite extensivo aos familiares e amigos do meu convidado. Então, preparo o jantar, arrumo o ambiente e coloco em evidência a obra de arte que tenho tanto apreço e orgulho. Fico no aguardo.

 

Para minha surpresa as pessoas arrombam a porta apesar de serem bem-vindas. Entram rapidamente e observam muito superficialmente o quadro. Como não gostam dele, depredam os móveis, chutam a mesa e ofendem o dono da casa. Não satisfeitos, picham as paredes deixando desaforos. Fazem questão de mostrar agressividade, desrespeito e incivilidade.

 

Eu que chamei as visitas fico chocado.

 

Quanto mais eu argumento com os violentadores sobre a sua incivilidade, mais os visitantes se revoltam. Tentam de todas as formas me agredir. Arrogantes, não percebem que o convite estava fundado na discussão civilizada sobre o quadro. O motivo do convite era a reflexão sobre o belo.

 

As agressões não ensinaram nada. Os agressores não aprenderam nada. A obra ficou lá jogada a um canto entre os restos de comida e fragmentos de móveis quebrados.

 

O dono da casa reflete sobre o acontecido. Ele pensa que há algumas possibilidades para resolver o problema. Pode não convidar mais ninguém e ficar solitário ao lado da obra de arte que comprou. Também pode escolher os convidados entre os melhores, optando por uma aristocracia cultural evitando a maioria das pessoas. Então favoreceria uma elite.  Seria razoável também, dependendo da coragem do dono casa, continuar convidando a todos e tomando precauções extras para não ser atingido por possíveis agressões. Então, socializaria com todos o deleite com a obra de arte.

 

Ora, quando envio minhas postagens, com certeza são convites para que minha “casa” virtual seja visitada. Quero mostrar minhas obras de arte. Mas o respeito que todos devem ao anfitrião esta em desuso. Ao menos esta é minha experiência pessoal.

 

Muitos me visitam. Mas arrombam a porta, ofendem o dono da casa, chutam tudo, deixam pichações horríveis... e pouco usufruem do que é oferecido.

 

Não, não quero que concordem com o que encontram na minha “casa”. Apenas respeitem, usufruam, discutam, acomodem-se confortavelmente e se sirvam do que é modestamente oferecido. Aprendam e ensinem. Concordem e discordem. Então o tapete de “boas-vindas” lá permanecerá.

 

Outra comparação interessante:

 

Nas artes marciais sérias o aluno aprende do mestre que, a cada campeonato, disputamos conosco mesmo o que aprendemos nos treinos. Não há oponentes fora de nós no tatame. O que ocorre é a testagem do que aprendemos. A outra pessoa nos auxilia nisso. Ela aprende comigo. Eu aprendo com ela. Sem arrogâncias. Quem “ganha” ganhou de si mesmo. Quem “perde”, perdeu para si mesmo. Não é permitida a alegria de ver o outro cair ao chão. Não é permitido o grito de satisfação com a dor do outro. Nunca. Se derrubou, levante-o. Se machucou peça desculpas e tenha vergonha, pois usou erradamente a técnica. O mestre nunca machuca, sempre ensina.

 

O que percebo é a violência verbal. O ódio e a arrogância embebedando os convivas da festa, do banquete que é o mundo virtual.

 

Na minha “casa” eu arrumo tudo da melhor forma que posso. Fico no meu limite máximo. Então as pessoas chegam. Muitos são delicados, observam tudo, conversam, dialogam. Rimos juntos e aprendemos uns com os outros. Então vou na casa deles também. Eles confiam que sou educado e respeitador na casa alheia.

 

O mundo virtual é maravilhoso! Mas é dependente da gentileza, da fraternidade e, principalmente, da vontade de aprender.

 

Optei em continuar fazendo convites para que venham à minha “casa”. Os que quiserem, é claro. Quero aprender com os visitantes.

 

Mas junto ao tapete de “boas-vindas” em frente a porta, acrescento ao incivilizado: seja respeitoso, deixe a arrogância, a violência e os preconceito do lado de fora. Algo como: Limpe os pés antes entrar. Não por que minha casa seja limpa demais, mas para que não fique enlameada quando os convivas voltarem para seus lares.


 

 

 

 

sábado, 7 de novembro de 2020

Por uma razão cordial



 

Nem tudo a gente explica. A casualidade sempre faz das suas. Hoje ao procurar um livro entre tantos outros, derrubei por descuido o livro do Leonardo Boff, Ethos Mundial – Um consenso mínimo entre os humanos -, da editora Letra viva. Livro lido há anos. Reli o capítulo cinco e o seis, respectivamente intitulados: “O Pathos e o cuidado como nova plataforma do ethos humano e planetário” e “Imperativos mínimos de uma ética mundial”.

 

 

 

 

 

Daí veio as seguintes reflexões.

 

Tanto a humanidade historicamente falando, quanto os bebês que hoje nascem, não surgem no mundo já racionais. No máximo surgimos no mundo fático como sujeitos potencialmente falantes e racionais. Potencialmente!

 

Entretanto, para desenvolvermos estes atributos precisaremos de tempo e esforço. Refiro-me ao tempo biológico de desenvolvimento das nossas capacidades neurológicas e a outro tempo: o tempo cultural (e de esforço) da linguagem, dos valores (morais e éticos) e do cálculo (matemático e lógico).

 

Como espécie e como pessoas individuais, precisamos desenvolver quem somos. Portanto, não surgimos sujeitos que discursam, calculam e transformam o mundo. Contrario sensu: nascemos não falantes, não calculantes e não desejosos de lucro.

 

Lucro é uma categoria de valor muito recente na humanidade.

 

Nascemos como carentes de tudo. Principalmente carentes de proteção. Sem cuidados, morremos. Quem nos cuida? Os já adultos. Os que já foram cuidados e sobreviveram. Os que já aprenderam sobre o próprio cuidar.

 

Nosso primeiro contato com os demais seres é de necessidade e de cuidados. Apesar de já nascidos, ainda somos um pouco mais que fetos por algum tempo. Depois, e só depois de sermos apenas necessidade de cuidados, aprenderemos o resto, ou seja, aprenderemos a ser pessoas.

 

Não é fácil aprendermos a sair da dependência. Pior ainda é aprendermos a cuidar dos outros. Ser cuidado é um fato biológico. Cuidar é outra coisa. É um aprender num contexto histórico. Digo isso por que é na história que se desenvolve o que entendemos por amparar o outro.

 

Vejamos, como exemplo, o conceito de meritocracia (desemparo total, o salve-se quem puder). Este saber levou muito tempo para ser criado e mais tempo para se sedimentar nas sociedades.

 

Nascemos fadados a sermos cuidados pelos mais velhos. Não é o mesmo na hora da sociedade ensinar a quem devemos cuidar, por quanto tempo e o porquê de fazermos isso. A sociedade primeiro define os valores das coisas e das pessoas, depois ensina o que e quem devemos cuidar.  Portanto, é uma escolha que se faz na amplitude do fazer político.

 

É doloroso dizer isto na mesma medida em que sabemos que falamos da realidade.

 

Não aprendemos a ser cuidados (é uma questão biológica), mas temos que investir muito no ensino do cuidar.

 

A palavra cuidado pode ser utilizada em dois sentidos.  Podemos usá-la no sentido de atenção concentrada, como acontece quando realizamos com atenção um cálculo matemático muito complexo. Também é possível usá-la no sentido de zelo, interesse, preocupação, ter reponsabilidade sobre algo/alguém. Percebamos que um sentido não exclui o outro quando nos reportamos ao afeto que devemos desenvolver pela humanidade e pelo planeta.

 

Usei a expressão afeto que devemos ter. Dever: porque é uma questão moral e ética. Um biocentrismo.

 

É preciso ter extremada atenção aos valores que cultivamos. É preciso ter zelo com o que ensinamos a amar. Afinal, só cuidamos espontaneamente do que valoramos, do que amamos. Percebamos que antes mesmo de atingirmos a racionalidade e a capacidade de falarmos, junto com o cuidado que recebemos enquanto infantes, aprendemos o que cuidar, quem cuidar e como cuidar.

 

Aprender o cuidado antes de desenvolvermos a racionalidade não é excluí-la. Ao desenvolvermos os valores que nos levam ao cuidar, estamos orientando a razão, não excluindo-a. O Boff faz menção à razão cordial. Pois é, antes da razão matemática, excludente e afeita a meritocracia capitalista, podemos escolher desenvolver a razão cordial.

 

A cordialidade, como é bem sabido, nos relaciona ao que é motivado pelo coração. Ou seja, nos relaciona ao agir afetuoso, carinhoso e amistoso. Sim, é possível uma razão que seja amigável.

 

Uma razão amorável, eu diria.

 

Não estou sendo poético. Estou sendo realista. Quanto menos amor, fraternidade e cuidado, mais violência, fascismos, exclusões e guerras.

 

Portando, mais cuidado e menos competição. Mais renda para todos e menos pobreza. Estas são atitudes racionais e favoráveis a vida de todos.

 

A razão por si só não exclui a fraternidade, nem o comércio. Não exclui o afeto e o trabalho. Não exclui a felicidade e o empenho.

 

A razão está a serviço dos valores que elencamos como principais.

 

Que aprendamos a cuidar antes de lucrar. Que aprendamos a razão cordial antes da razão competitiva

 

Aprender antes. Aprender enquanto somos cuidados. Aprender antes os valores para depois sabermos o que fazer com a razão.