quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Pai, se o bandido pedir desculpas, a polícia solta ele, né?


Meu filho aos quatros de idade me surpreendeu com a pergunta: Pai, se o bandido pedir desculpas, a polícia solta ele, né? Confesso que senti uma angústia muito forte. Não pude responder ao ingênuo questionador, que pedir desculpas não alivia em nada a pena do criminoso. O infante acreditava que é possível o arrependimento e o perdão. Acreditava que todos podem se regenerar. Creio que, em tese, ninguém consegue defender que todos são irrecuperáveis. Entretanto, poucos se atrevem a dizer claramente que são a favor da redução da vontade de encarcerar que assola o Brasil.



Aquele que defende seu horror ao encarceramento massivo e desumano, invariavelmente ouvirá: Então queres que todo o bandido fique solto? E a família da vítima? E se fosse teu filho(a)?  É preciso dizer que quem julga nunca será o pai da vítima, amigo ou familiar dela. Se fosse, seria no mínimo um juiz suspeito. Logo, é irrelevante o argumento “se fosse ou não teu familiar”; pois tal hipótese impede um julgamento justo. A decisão de quem julga trata-se de uma questão social e não/nunca pessoal.



Mais raro ainda é encontrar pessoas que defendem a ausência total de cárcere. Apesar das dificuldades, o tema do encarceramento é por demais relevante.



O Estado nunca deve se posicionar como se fosse a vítima, sentir as dores como se fossem suas e deste lugar reagir.  O Estado não é a vítima. Não deve tomar para si a dor que não é sua. Seu distanciamento é essencial. Ele responde pela justiça no seu sentido mais amplo, uma justiça na sociedade e para todos.  O Estado percebe o contexto para aplicar sanções.  E com certeza, a vingança não faz parte das suas prerrogativas. Evidentemente que a vítima é fator relevante, mas não transfere sua dor para o juiz. A vítima deve ser atendida pelo Estado para superar seu sofrimento.



A vítima, neste sentido, é o foco. O foco não é maximizar a pena do condenado como revanche. 



É interessante lembrar o que a imprensa nos traz sobre os tribunais do crime. Aqueles pseudojulgamentos promovidos por criminosos. Vê-se que os criminosos se vingam. Levam em conta o dano que seus comparsas ou seus protegidos sofreram.  O resultado é sempre o mesmo:  a condenação e a morte. O que varia é a quantidade de dor que o condenado sofre antes de morrer. Amigos meus sem perceberem, inúmeras vezes defendem esta mesma “justiça”, a do tribunal do crime.  A diferença entre meus amigos e o tribunal do crime, é que aqueles são “cidadãos de bem” e estes são criminosos.



Creio que a pergunta que devemos fazer em relação ao encarceramento é a seguinte: É sempre necessário punir? Se sim, a pena sempre é variações e dosagens do encarceramento de corpos?



Qualquer pergunta sobre o porquê do encarceramento, deve partir da premissa básica de que, mesmo tendo um caráter retributivo e punitivo, a sanção carcerária tem que ter como objetivo a ressocialização. Afinal, quem comete crimes, um dia volta à sociedade. E, é claro, tem que voltar em condições mentais e físicas apropriadas para retomar sua liberdade sem recaídas. Ora, o ônus de ressocializar cabe a quem encarcerou, a quem discriminou a conduta que é considerada crime: o Estado! Ou, enfim, a sociedade.



Lembro de vários casos em que pais e mães esqueceram seus filhos bebês dentro dos seus carros. As crianças morreram em decorrência do calor dentro dos veículos.  A dor destes pais e mães em muito superaram a dor do encarceramento.  Prender seus corpos era nada se comparado com o sofrimento de suas almas. Neste caso, cadeia para quê? Ressocializar? Punir?



Também podemos nos referir a pessoas que furtam coisas gostosas do supermercado. Seja por fome, seja por simples desejo. Ou ainda o sujeito que furta um carro pela primeira vez. Nestes casos, prender para quê? Para ressocializar? Punir?



Podemos imaginar inúmeros casos que desautorizam a pena privativa de liberdade, pela sua inutilidade ou pelo agravamento do problema. Então, é perfeitamente possível relativizar o mito do encarceramento como solução única.



É possível defender filosoficamente o encarceramento de corpos como finalidade terapêutica ou como melhoria da sociedade?



Creio não ser possível. No máximo, a prisão é um mal necessário enquanto não encontramos nada melhor.  Encarcerar é irracional. No Brasil, então, é óbvio. 



Construir e manter presídios é caro. Melhor é construir escolas e hospitais.  Tanto é verdade que várias cidades pedem mais encarceramento, mas não querem presídios em seus quintais.  Querem escolas e as constroem. Querem presídios desde que bem longe.  Isto indica a percepção prática que a sociedade tem da irracionalidade do encarceramento.



A prisão no Brasil tem a função simbólica de silenciar. Os criminosos são postos embaixo do tapete. Ninguém quer vê-los. Ao contrário, melhor seria esquecê-los. E por que o desejo de desaparecimento? Por que as causas da criminalidade são duras demais para serem pensadas. Encarcera-se os corpos e junto as reflexões sobre as causas dos crimes.  A luta justa não é contra a criminalidade, mas contra suas causas.



As pessoas não gostam de refletir sobre este tema. Preferem serem dicotômicas: se é culpado; não é em nenhum grau inocente. Se é culpado será preso na esperança de nunca ser solto. Se é culpado uma vez, será bandido para sempre. Não é por acaso que somos um dos países que mais encarcera pessoas. Mesmo assim, ouvimos todo o dia que a impunidade é nosso mal maior!



Creio que a desigualdade social é o nosso mal maior.



Entre os extremos de presos e soltos, há uma miríade de possibilidades. Antes das celas, há o que chamamos de restrição de direitos. São limites impostos ao sujeito que cometeu o crime, em substituição a pena de encarceramento. Pode ser prestações pecuniárias, prestação de serviços à comunidade entre outras. São sanções de fato, pois suprimem ou restringem direitos do condenado. Não são brincadeiras! Primeiro o juiz fixa a pena restritiva de liberdade (prisão), para depois substituí-la. Veja que estas restrições não são pensadas para maximizar a dor de quem infringiu a lei. Na verdade, a restrição quer evitar a prisão (por ser sansão imoderado em vários casos) e quer salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos do réu e da vítima.



Para encerrar proponho que antes da satisfação da sanha punitiva e carcerária, resolvamos as questões sociais que predispõem as pessoas à violência. Da desigualdade à marginalização, da falta de escolas à violência familiar. A questão é social é bastante evidente. Só não vê quem prefere encarcerar para encerrar as pessoas e estes assuntos.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A importância da disputa ética entre os desejos e os interesses pessoais do julgador.


   


     

      Não é incomum as pessoas pensarem que o cientista é um sujeito objetivo ao observar os fenômenos. Algo como um peixe fora do aquário a observar seus irmãos lá dentro. O vidro do aquário seria suficiente para que o peixe alienígena pudesse observar sem sentimentos nem interpretações, o que ocorre no interior daquele ambiente.  E mais: quando contar o que viu e pesquisou, o senso comum acredita que a linguagem consegue expressar exatamente o que a mente do peixinho investigador captou.

     

      A distância entre os peixes do aquário e a mente do peixe que observa é enorme. A distância entre as conclusões mentais do peixe observador e a sua expressão na linguagem, é outra distância enorme. E por fim, do ouvido de quem ouve o relato até a imagem mental que se forma, há distancias planetárias! Estas distâncias são preenchidas pelas vivências e preconceitos de cada um. A objetividade plena não é possível.

     

      Podemos dizer que o observador faz parte do observado. Ele não pode deixar de ver a si mesmo quando vê o fenômeno. Seus conceitos já feitos em sua mente, e tão apreciados, são uma lente que transforma o visto.



A (auto) busca pela nitidez da visão do investigador faz parte do processo investigativo.

     

      Se o fenômeno em estudo for um crime, tudo é mais complexo.  Todo o crime já aconteceu, já morreu no tempo. O que vive ainda são as consequências. O que está ao alcance dos sentidos são objetos, documentos e testemunhas. Reflexos, portanto. O julgador, por consequência, faz perguntas ao passado. Quer que o que já se foi se apresente pela boca de quem viu e pela materialidade das provas do que já passou. 

     

      O que já passou deixa apenas vestígios e interpretações.

     

      A questão é que os vestígios e as interpretações estão sujeitos ao tempo social.  Tanto é verdade que não é possível julgar um crime passado, quando a lei já não reconhece mais o evento como crime. Inúmeras vezes o hoje absolve o ontem.  Só há crime quando alguém pergunta por ele e a sociedade o aponta.  O crime é uma construção social.  O mais interessante é que quem pergunta pelo crime, já tem ideia dele, já tem uma interpretação sobre o fenômeno. Só por isso pode perguntar por ele, só por isso pode reconhecê-lo. Não raro, o julgador pergunta pelo crime e a sociedade não o aponta, não o reconhece mais.  É o caso do conservador num ambiente liberal.

     

      O observador está presente no objeto observado. Eis a luta pela objetividade do julgador.

     

      Percebe-se que o julgador não é neutro. Ele é alguém que tem história, que se constituiu numa cultura. Entretanto, há salvaguardas processuais que o orientam e o mantém equidistante das partes. Mas não é, a equidistância, algo natural no ser humano. É preciso empenho e disciplina. Cabe ao julgador precavido se manter dentro das normas processuais.

     

      O magistrado que quer ser imparcial, busca nas provas uma certeza. A certeza de que fez o possível para interpretar os fatos com a objetividade possível, para se convencer sem se basear em favoritismos. O juiz faz o seu melhor para se manter equidistante das partes. Ele deve convencer os envolvidos na lide e também a coletividade. Convencer da sua genuína vontade de ser imparcial e justo.

     

      É uma questão de ser e parecer ser.

      

      Não concordo que o juiz se coloque acima das partes como órgão desinteressado. Entendo que sendo parte tanto quanto os réus o são, é um cidadão igual aos demais. Entretanto,  o Estado e a sociedade exigem do julgador mais do que exige dos demais.

     

      O juiz é um igual com poder/dever desigual.

     

      Não há juiz naturalmente imparcial, como se depreende dos parágrafos anteriores. O juiz que é ético e domina sua técnica, sabe-se em constante luta para se distanciar do fenômeno que julga. Quanto mais se aproxima afetivamente do caso, mais a luta se intensifica.  Imparcialidade significa manter esta luta. Portanto, não há juiz imparcial sem esforço. É uma luta. Nela não pode haver paz nem descanso.

     

      Percebe-se que a segurança jurídica se encontra nesta questão ética. Não está tão ligada assim ao resultado da demanda. Liga-se mais na confiança da sociedade no esforço do julgador em se manter imparcial. O julgador deverá transparecer seu esforço neste sentido.

     

      A sociedade que julga favoravelmente o julgador é uma sociedade saudável e confiante.

     

      A sociedade é feita de partes, de grupos, de interesses e preconceitos. Ela pode ser parcial e preconceituosa. O que não pode acontecer é ela perceber que é julgada por alguém que tenha comportamento similar ao seu. Ao cidadão é lícito e aceitável lutar por seus interesses egoísticos, e só o fará de forma segura se souber que o limite a esta sua luta é o juiz (sempre à procura da sua própria imparcialidade).

     

      Portanto, lembremos aos julgadores a importância da sua manifesta e evidente luta contra suas parcialidades.  Se por um lado não cabe afirmar que o juiz é inumano e absolutamente isento de preconceitos e afetos, por outro lado, é imperioso trazer à luz a importância da disputa ética entre os desejos e os interesses pessoais do julgador.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Pobre Estado, risível poder tão fraco que se limita apenas a prender corpos.







Imaginemos a seguinte situação. Em um quarto em nossa casa há um recipiente de vidro com uma fragrância muito boa e muito forte. O poder do seu conteúdo de exalar perfume é impressionante. Tu queres conter o perfume que já tomou conta da casa. Entretanto, para conter a fragrância só possuis o recurso de portas feitas de grades e de cercas de arame. É fácil imaginar o problema que se impõe. Com grades e cercas é possível impedir o acesso ao frasco e também impedir que ele saia do quarto, mas é totalmente impossível confinar o perfume. Os meios são inúteis para a finalidade a que tu te propões. Com grades e cercas prendemos o frasco, mas nunca o perfume. A casa vai continuar perfumada.  Os meios impedem os fins.



O Estado inúmeras vezes está diante de problema similar. Ou seja, pode prender corpos físicos, mas não as almas dos apenados. Estas continuam livres, apesar dos seus invólucros corporais estarem sob a tutela estatal. Nestes casos, o Estado pode pouco, muito pouco.  Eis o limite das prisões: elas prendem corpos apenas.  Como exemplo, entre tantos outros, temos Gandhi, Mandela e Martin Luther King. Prender corpos é o limite estatal. Pobre Estado, medíocre Estado.



Na metáfora do primeiro parágrafo, quero dizer que se o Estado quer impedir ideias com grades, torna-se uma instituição inútil enquanto meio para tal fim. Há almas que são maiores que seus corpos. Encarcerar estes não isola aquelas. Se uma pessoa é mais que seu invólucro corporal, se uma pessoa se torna uma ideia, não serão grades os instrumentos adequados para impedir a liberdade. Almas não podem ser presas.



Gradear o pote que contém o perfume, não impede a fragrância. Da mesma forma prender alguém por questões políticas não impede seus ideais de fluírem.  Com certeza, inúmeras vezes prender o continente volatiza ainda mais o conteúdo.



Pobre é o Estado e medíocre são seus agentes quando o corpo aprisionado se recusa a sair da cela, quando o calabouço mais exalta seu espírito e sua fala.  Ridícula é a situação de um judiciário quando mantém entre grades inúteis o que se exala pelo ar. É vexatório quando a politização do judiciário cria a situação fática em que manter na cela o corpo apenado, apenas aclara a própria incompetência estatal.



Eis o limite indiscutível: ao mísero Estado resta apenas a possibilidade de prender corpos nada podendo contra seus conteúdos, suas almas, seus ideais.



Incrível é o caso em que o preso ao querer se manter na cela, mais livre é.



Incrível é o caso em que ao querer manter o preso encarcerado, encarcera a si mesmo o judiciário. 



Quando a prisão é política, quando o medo é da voz e da ideia as grades são inúteis.



É imperioso soltar o corpo injustamente preso, pois esta alma sempre foi livre, nunca conheceu nem conhecerá limites físicos. Pobre Estado, risível poder tão fraco que se limita apenas a prender corpos.