quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A importância da disputa ética entre os desejos e os interesses pessoais do julgador.


   


     

      Não é incomum as pessoas pensarem que o cientista é um sujeito objetivo ao observar os fenômenos. Algo como um peixe fora do aquário a observar seus irmãos lá dentro. O vidro do aquário seria suficiente para que o peixe alienígena pudesse observar sem sentimentos nem interpretações, o que ocorre no interior daquele ambiente.  E mais: quando contar o que viu e pesquisou, o senso comum acredita que a linguagem consegue expressar exatamente o que a mente do peixinho investigador captou.

     

      A distância entre os peixes do aquário e a mente do peixe que observa é enorme. A distância entre as conclusões mentais do peixe observador e a sua expressão na linguagem, é outra distância enorme. E por fim, do ouvido de quem ouve o relato até a imagem mental que se forma, há distancias planetárias! Estas distâncias são preenchidas pelas vivências e preconceitos de cada um. A objetividade plena não é possível.

     

      Podemos dizer que o observador faz parte do observado. Ele não pode deixar de ver a si mesmo quando vê o fenômeno. Seus conceitos já feitos em sua mente, e tão apreciados, são uma lente que transforma o visto.



A (auto) busca pela nitidez da visão do investigador faz parte do processo investigativo.

     

      Se o fenômeno em estudo for um crime, tudo é mais complexo.  Todo o crime já aconteceu, já morreu no tempo. O que vive ainda são as consequências. O que está ao alcance dos sentidos são objetos, documentos e testemunhas. Reflexos, portanto. O julgador, por consequência, faz perguntas ao passado. Quer que o que já se foi se apresente pela boca de quem viu e pela materialidade das provas do que já passou. 

     

      O que já passou deixa apenas vestígios e interpretações.

     

      A questão é que os vestígios e as interpretações estão sujeitos ao tempo social.  Tanto é verdade que não é possível julgar um crime passado, quando a lei já não reconhece mais o evento como crime. Inúmeras vezes o hoje absolve o ontem.  Só há crime quando alguém pergunta por ele e a sociedade o aponta.  O crime é uma construção social.  O mais interessante é que quem pergunta pelo crime, já tem ideia dele, já tem uma interpretação sobre o fenômeno. Só por isso pode perguntar por ele, só por isso pode reconhecê-lo. Não raro, o julgador pergunta pelo crime e a sociedade não o aponta, não o reconhece mais.  É o caso do conservador num ambiente liberal.

     

      O observador está presente no objeto observado. Eis a luta pela objetividade do julgador.

     

      Percebe-se que o julgador não é neutro. Ele é alguém que tem história, que se constituiu numa cultura. Entretanto, há salvaguardas processuais que o orientam e o mantém equidistante das partes. Mas não é, a equidistância, algo natural no ser humano. É preciso empenho e disciplina. Cabe ao julgador precavido se manter dentro das normas processuais.

     

      O magistrado que quer ser imparcial, busca nas provas uma certeza. A certeza de que fez o possível para interpretar os fatos com a objetividade possível, para se convencer sem se basear em favoritismos. O juiz faz o seu melhor para se manter equidistante das partes. Ele deve convencer os envolvidos na lide e também a coletividade. Convencer da sua genuína vontade de ser imparcial e justo.

     

      É uma questão de ser e parecer ser.

      

      Não concordo que o juiz se coloque acima das partes como órgão desinteressado. Entendo que sendo parte tanto quanto os réus o são, é um cidadão igual aos demais. Entretanto,  o Estado e a sociedade exigem do julgador mais do que exige dos demais.

     

      O juiz é um igual com poder/dever desigual.

     

      Não há juiz naturalmente imparcial, como se depreende dos parágrafos anteriores. O juiz que é ético e domina sua técnica, sabe-se em constante luta para se distanciar do fenômeno que julga. Quanto mais se aproxima afetivamente do caso, mais a luta se intensifica.  Imparcialidade significa manter esta luta. Portanto, não há juiz imparcial sem esforço. É uma luta. Nela não pode haver paz nem descanso.

     

      Percebe-se que a segurança jurídica se encontra nesta questão ética. Não está tão ligada assim ao resultado da demanda. Liga-se mais na confiança da sociedade no esforço do julgador em se manter imparcial. O julgador deverá transparecer seu esforço neste sentido.

     

      A sociedade que julga favoravelmente o julgador é uma sociedade saudável e confiante.

     

      A sociedade é feita de partes, de grupos, de interesses e preconceitos. Ela pode ser parcial e preconceituosa. O que não pode acontecer é ela perceber que é julgada por alguém que tenha comportamento similar ao seu. Ao cidadão é lícito e aceitável lutar por seus interesses egoísticos, e só o fará de forma segura se souber que o limite a esta sua luta é o juiz (sempre à procura da sua própria imparcialidade).

     

      Portanto, lembremos aos julgadores a importância da sua manifesta e evidente luta contra suas parcialidades.  Se por um lado não cabe afirmar que o juiz é inumano e absolutamente isento de preconceitos e afetos, por outro lado, é imperioso trazer à luz a importância da disputa ética entre os desejos e os interesses pessoais do julgador.

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