domingo, 13 de setembro de 2020

Que comecem os jogos!

 



 

 

Vamos imaginar um experimento científico macabro.

 

Cria-se um novo Coliseu e lá são colocadas inúmeras pessoas. Homens e mulheres. Todos aproximadamente com a mesma idade. Todos saudáveis e inteligentes. Tudo devidamente testado de maneira a se evitar erros.

 

Também é providenciado uma equidade, a mais perfeita possível. Igualdade no número de homens e mulheres. Todos fisicamente semelhantes (força, peso e destreza motora). O mesmo para a escolaridade.

 

Para garantir a manutenção da equidade se alguma diferença de potencial surgir, será logo providenciada uma maneira de reequilibrar as coisas. De treinamentos em termos de conhecimentos técnicos até equipamentos para equilibrar a força física.

 

A lógica fundamental é a manutenção da igualdade de condições e oportunidades na execução do que for exigido dos participantes.

 

Os participantes foram escolhidos entre a classe média. Sujeitos sem problemas familiares perceptíveis. Todos crentes em algum tipo de fé religiosa. Nenhum antecedente criminal. Nenhum vestígio de patologias mentais. “Cidadãos de bem”.

 

Em um primeiro momento, foi explicado qual será o prêmio para aqueles que obtiverem sucesso no experimento. O prêmio será uma boa soma em dinheiro e um belo imóvel para cada vencedor (em qualquer lugar do mundo). Poderão levar a pessoa amada. Ganharão uma pensão vitalícia bem generosa. Também, dentro do possível e da normalidade ética, será satisfeito além do já prometido, um desejo qualquer que os vencedores solicitarem. Os prêmios devem ser muito motivadores.

 

Dá para imaginar o rebuliço que estas promessas provocaram nos sujeitos do experimento. A ideia é esta mesma, atiçar ao máximo a vontade de vencer.

 

Os princípios que orientam o jogo são poucos. Todos escolherão em assembleia quais serão as disputas (e até poderão criá-las) que selecionarão os vencedores.  Todos escolherão os critérios para avaliar o desempenho.

 

Na verdade, todos usufruirão de altas doses de liberdades. São bastante livres para escolher seus limites.

 

O liberalismo como fundamento.

 

Os organizadores impõe apenas cinco regras inquestionáveis:

 

1)    Que se mantenha o respeito a igualdade de oportunidade,

2)    Que havendo empate, a atividade é anulada (sem poder ser refeita),

3)    Que apenas dez por cento dos participantes podem ser vencedores,

4)    Que as demais regras (as criadas pelos participantes) podem ser mudadas a qualquer tempo em assembleia,

5)    Que em hipótese alguma as benesses dos vencedores serão por eles distribuídas igualmente entre os demais. Distribuidas até podem ser, mas nunca de maneira igualitária. Portanto, ao criarem as regras do jogo, podem seduzir os participantes comprando o apoio (com promessas de recompensas futuras).

 

Resumindo: muitos competidores igualados com um mínimo de vencedores.

 

Muita procura x pouquíssima oferta.

 

Lembrando que tudo neste texto é imaginação do autor, autorizo-me a continuar imaginando.

 

Percebamos que sendo muito livres para criarem as atividades seletivas/competitivas, terão muita dificuldade em escolhe-las. Todos são iguais com poderes iguais para decidir. Não há subordinados. Por consequência, terão que escolher os organizadores das competições. Então, de um problema, surgiram vários.

 

Terão que criar uma forma de organização hierárquica. O que faz surgir outra questão: quem serão os organizadores? Quais os critérios de escolha? E por fim, como evitar que os organizadores tenham (ou logo criem) alguma vantagem em relação aos demais competidores? Haverá punições? Quem as aplicará?

 

Como confiar se os prêmios são tão desejáveis?

 

A liberdade e o interesse trouxeram consequências para a manutenção da equidade. Há que ser cauteloso.

 

Manter a igualdade tem efeitos colaterais: as discussões, os desafetos e os rancores estão em alta.

 

Quando alguém cedeu, alguém prevaleceu.

 

Talvez a partir destes eventos a primeira (e principal) regra já foi quebrada: a da isonomia. Percebamos que, se há competição pelo que é escasso, a paridade de armas fica totalmente comprometida.

 

A igualdade é um problema quando os bens são escassos.

 

No início das atividades coletivas, tudo parecia ir bem. Até que a frustração aumentou. Afinal, a regra máxima da igualdade se tornou um estorvo. Cada empate era terrível. Tinham que pensar outra atividade, pois era proibido repetir a mesma nestes casos. Era cansativo e, de certa forma, oneroso. Gastava-se tempo e energia.

 

A regra da paridade absoluta se mostrou insuportável  na competição.

 

A todo momento um dos participantes solicitava algo extra, algum auxilio, pois acreditava estar em desvantagem. Por outro lado, não era incomum outra pessoa alegar que outras tantas conseguiram de alguma forma obter alguma vantagem.

 

O que faz surgir mais perguntas/problemas.

 

Quem decidirá estas questões? Como decidir sem quebrar a regra de ouro da paridade? Mais tempo e energia gastos. A frustração aumenta, pois há a suspeita de má-fé e tentativa de manipulação.

 

O prêmio prometido é sedutor demais.

 

Os organizadores externos da testagem, de tempos em tempos, pedem para todos descansarem. Nestes períodos, falam sobre as vantagens das benesses prometidas. Insinuam que até pode ter prêmios extras, afinal, estão se esforçando além do esperado. Aproveitam estes momentos para exaltar as virtudes da competição, da meritocracia real adquirida pelo esforço próprio entre iguais.

 

Relembram aos competidores que sempre haverá os melhores mesmo entre os melhores.

 

Consigo até imaginar os competidores sendo cada vez mais agressivos e exigentes nas provas. Consigo quase sentir a incivilidade aumentando. Quase vejo as várias artimanhas sendo tentadas para quebrar a igualdade. Consigo prever o grupo criando regras para ludibriar as cinco normas fundamentais da testagem. Imagino as sabotagens, as discussões intermináveis, as frustrações explodindo. O estresse chegará a tal ponto que a testagem será interrompida para manter a sanidade dos participantes.

 

O leitor é convidado a continuar imaginando esta situação.

 

Entretanto, algumas coisas já podemos perceber nesta imaginação com finalidade pedagógica.

 

A igualdade não combina com a escassez. A paridade de armas é infrutífera no ambiente competitivo. A isonomia é fator desagregador onde há a luta insuflada por prêmios excludentes.

 

O que podemos concluir do que acabamos de imaginar?

 

Podemos concluir que a igualdade só é compatível com a repartição justa das benesses sociais. A fraternidade é inversamente proporcional a competição. A cooperação na igualdade só é possível sem o estímulo à cobiça ou a satisfação de interesses individuais. E por último, quanto mais a competição é estimulada num ambiente de escassez de benesses, tanto mais a hierarquia e a coerção se tornam necessários.

 

Afinal, há que se gerenciar fortemente os conflitos implícitos a escassez.

 

Podemos agora olhar a nossa volta: o mundo real competitivo, liberal, escasso em benesses sociais, excludente, hierárquico e cruel. Onde haverá espaço para o máximo de igualdade que nossa humanidade irrepetível permite? É para pensar.

 

Fica a dica.

 


 

 

sábado, 12 de setembro de 2020

A política e a projeção narcísica.

 


 

É interessante perguntar o que nos chama atenção quando andamos por aí. Uma moça bonita passa e eu olho. Olho porque a beleza não está totalmente na pessoa, mas muito mais em mim que a identifiquei na moça que passava. Da mesma forma, quando rejeito o tema da conversa que ouço sem querer no transporte coletivo, a rejeição está em mim e não entre as pessoas que dialogam ao meu lado.

 

Até mesmo a linguagem corporal sofre este efeito: eu a decodifico em função do que está em mim.

 

 Percebo aquele cidadão como uma pessoa arrogante. Assim me informa a sua postura. Está empertigado, ereto e com o peito levemente arqueado para trás. Leio aquele corpo e rotulo a pessoa. Nem percebo que ela está indo a uma farmácia para comprar um remédio para dores nas costas. A dor, não percebida por mim (externa à minha consciência) e que retesa a musculatura do indivíduo, fez-me ler a postura como a de um sujeito arrogante. Projetei minha percepção sem sequer perceber que o fiz

 

Quando vejo naquele livro um título interessante e vou comprá-lo, nem percebo que o interesse (que faz o título ser “interessante”) é meu, é interior e derivado das minhas vivências sociais, escolhas e cultura. Pouco a ver com o livro (que nem li ainda).

 

E por falar em cultura, ela sou eu e também é “nós”. Entretanto de todas as experiências culturais das quais faço parte, algumas eu me incluo mais, outras menos, outras tantas apenas tenho conhecimento delas. Aproximo-me daquelas que mais me identifico.

 

Voltando a moça bonita do primeiro parágrafo. A beleza que eu depositei nela e que fez dela objeto da minha atenção, é oriunda dos meus desejos internos (a maioria inconscientes). Na medida de como me construí (dentro da dialética do “me construí” e “fui construído”) vou vê-la como apenas bonita ou até sexy.

 

Eu projeto para além de mim o que sou.

 

Poderíamos chamar este fenômeno de projeção. Este mecanismo ocorre quando percebo como existente “fora” o que está “dentro” de mim. Minhas representações internas encontram um hóspede na vida real.

 

A emoção, o desejo e o valor que estão em mim, passo a vê-los a minha frente. Geralmente, e é a regra, a projeção é um mecanismo de defesa. “Empurro” para o outro o que não quero ver em mim. Exemplo: o vendedor de carros usados que sempre parte do princípio que será enganado ao comprar estes veículos. É possível que a má-fé que ele vê no cliente esteja mais em si mesmo do que no outro.  Ou ainda aquele sujeito que vê corrupção em todo e qualquer ato político. Talvez a corrupção (ou o desejo de usufruir dela) esteja no rol dos seus desejos (que precisa negar). Perceba que no imaginário desta pessoa, quanto mais ela esbraveja contra a corrupção, mais ela imagina que está a salvo de ser corrupta (ou que percebam seu desejo de corrupção).

 

Outra justificativa para projetar meu interior para fora, é a projeção narcísica. É neste tipo de projeção que este artigo quer focar.

 

Vejo pessoas bonitas porque são parecidas comigo ou tem a aparência que eu queria ter. Apoio o modo de vida voltado para o consumismo, pois faço o mesmo ou queria poder fazê-lo. O mesmo ocorre com o trabalhador que apoia a redução dos direitos trabalhistas. Ele admira o empregador porque admira o modo de vida dele, e um dia sonha ser empresário também. O conceito da meritocracia cai bem neste último exemplo.

 

A projeção narcísica, ou seja, quando tenho simpatia pela outra pessoa porque ela é similar a mim, tem efeitos interessantes na política.

 

Aos narcisos na política, proponho as questões abaixo.

 

Por que admiro um corrupto? E admiro tanto a ponto de negar a evidência da sua corrupção.  Por que apoio tanto quem fala de morte e violência? O que acontece comigo quando brigo com meus familiares para continuar fiel a um sujeito racista? Por que defendo tanto quem eu mesmo não encontro argumentos viáveis para defender? Então brigo, ofendo, agrido por não ter o que dizer.  O que esta pessoa nefasta tem que faz com que eu sofra tanto e tantas amizades perca?

 

Uma boa hipótese é o mecanismo de projeção narcísica. Tudo o que esta pessoa tem de ruim eu admiro. Admiro porque eu sou assim ou por que eu quero ser assim. É por isto que ofender esta pessoa me ofende tanto.  Neste caso ou me educo para a política ou procuro terapia.

 

Caso a hipótese de projeção narcísica seja verdadeira para o meu proceder, a conclusão será obvia: ao ofender o sujeito, ofende a mim mesmo. Afinal, psicologicamente, estamos unidos pelos mesmos valores e aspirações.

 

Na medida em que a realidade mostra que aquele sujeito (que é meu ideal de conduta) se mostra um monstro, na mesma medida em que eu continuo a defende-lo mesmo assim, tanto mais a hipótese vai se tornando um diagnóstico perfeito.