sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Lendas urbanas e delírios na política nacional

 


 

Vou começar meu texto comentando sobre lendas urbanas. Lá pelos últimos parágrafos o leitor entenderá o porquê disto. Peço paciência

 

As chamadas lendas urbanas têm algumas características que as definem. Elas transformam situações, que até poderiam acontecer de fato, em verdades sobrenaturais.  

 

Caso haja assassinatos reais no bairro tal, a lenda dirá que é por que um matador contumaz lá mora e escolhe malignamente suas vítimas. Notadamente aquelas que por lá passam em torno da meia noite. O fato é confirmado por alguém que ouviu o relato de alguém que viu, em algum dia de uma noite qualquer, o assassino fazendo mais uma vítima. E mais: quando ela morria, o relógio da catedral batia as doze badaladas da meia noite.  A comunidade sente o ar de mistério crescente. Questionam-se: por que o Padre não negou o fato? Quem cala consente!  

 

Do verossímil ao inverossímil foi um passo!

 

Para que a lenda se consolide, algumas questões não podem (nem devem) ser respondidas: Quem viu? Quem morreu? Quando foi? O Padre sabe destes acontecimentos? Há boletins de ocorrência que relatem tudo o que se diz?

 

As perguntas não podem ser feitas por que a lenda é isso: quase-crença, repetição, medo, quase-crença, repetição e medo.

 

Para que uma comunidade repercuta a lenda, um local é fixado para que o evento macabro ocorra. Então, muitos que lá passam acreditarão que viram (ou quase viram) algo. Outros dirão que ouviram (ou quase ouviram) o grito de horror. Já outros comentam que um parente antigo presenciou o fato ao passar por lá, mas conseguiu fugir. Detalhe importante: contou a história pouco antes de morrer, pois já era um idoso.

 

Como negar a “veracidade” de todos estes “fatos”? Tão fartamente relatados?

 

Todas as ambiguidades e incongruências são generosamente suprimidas por hipóteses fantásticas. Hipóteses que, já num contexto fantástico, se tornam aceitáveis.

 

Estas lendas tendem a confirmar preconceitos. Ocorrem em locais geralmente escuros (e pobres), abandonados (descuido da administração municipal), praticados por pessoas loucas, feias (geralmente homem) e belíssimas (se mulher – sedutora, bruxa, do mal). Lendas sempre envolvidas por aspectos religiosos (demoníaco, fantasmagórico, ritualístico, sobrenatural). Em função destas características, as lendas urbanas nunca são histórias com início determinado, meio e fim definitivo. Todos os contadores dela retiram algo e acrescentam outro tanto. Afinal, o que vale é o fantástico, o sobrenatural.

 

A lenda explica o inexplicável. Mantém o preconceito sobre determinados perfis de pessoas e dos lugares mitologizados.

 

Pretendo agora trazer para este texto a Profa. Marcia Tiburi. Farei somente um recorte sobre o que ela comenta sobre o delírio (Delírio do Poder, Editora Record, 2019). Após o comentário, vou ligar as características das lendas com as do delírio.

 

No livro Tiburi comenta que estamos em um delírio coletivo. Ela quer dizer que grande parte da sociedade brasileira está, sob o ponto de vista da política, confuso, deslocado da realidade.  Esta confusão aparece nos discursos que se afastam da realidade, que não respeitam os conceitos a que se referem. Exemplo: falam do comunismo sem saber do que falam. Exaltam a tortura sem refletir o que ela significou. Nesta linguagem distorcida tendem a resumir tudo em microconceitos deturpantes. Passam a viver numa realidade política paralela.

 

Eu acrescento que esta confusão distancia as pessoas do uso da razão (no sentido do seu uso crítico). Neste delírio coletivo, escolhem um líder que indique o caminho nesta confusão. A confusão é criada, mantida e desemboca num líder (também confuso!) que deve orientar as pessoas. A grade que prende a este mundo paranoico é a seguinte: se todos que me circundam pensam desta forma, não posso, não devo pensar diferente (estaria enlouquecendo).

 

O absurdo toma conta e o delírio vai se mantendo. Para cada atitude do líder absurdo, o discurso delírante se atualiza através de explicações mágicas. Exemplo: o líder diz que é a favor de matar pessoas. Entretanto, explicam/justificam os sujeitos do delírio: o líder quer matar, mas nunca matará de fato. É só um desejo, só isso.

 

As lendas urbanas e o delírio proposto pela Tiburi, tem vários pontos de encontro na nossa política nacional.

 

As lendas se baseiam no aspecto mágico, fantástico, tenebroso, ameaçador e se mantêm atualizadas por acréscimos míticos. Sempre alguém vai justificar seu medo acrescentando à história original um tanto do seu medo próprio. Desta forma, a lenda está sempre atualizada e atuante.  Neste aspecto, o delírio na política é muito similar a lenda urbana. Ele vive de ameaças aos que veem o mundo de forma diferente dele (no grupo). Cada delirante tem autorização prévia pra acrescentar ao delírio algo que o mantenha. Varia de um novo detalhe a uma nova ameaça.

 

Estas adaptações mantém a força ligante do delírio. Por mais que o líder faça algo que cause o mal, este mal será adaptado, justificado e incorporado ao discurso delirante como um bem.

 

Tanto a lenda urbana quanto o delírio na política, são evidentemente artificiais para quem possa vê-los de fora. Entretanto, para os que os vivenciam (estão dentro) é extremamente verdadeiro. Pergunta a quem acredita que viu a mulher de branco em frente ao cemitério, se não morreu de medo! A verdade da aparição foi tão verdadeira que quase teve um enfarto! Da mesma forma, pergunta ao sujeito delirante político se ele já brigou com alguém, quase a tapas, para defender seu líder.

 

A mulher de branco - no cemitério - e o líder - no palácio do Planalto -, são extremamente verdadeiros para quem neles crê.  Quem está de fora das lendas e dos delírios percebe as fantasias, mas está de fora e assim será mantido.

 

Aos delirantes e aos crentes em lendas, há duas possibilidades de cura.

 

- A realidade dos fatos batendo em suas portas mentais deixando a luz entrar. Exemplo: O terraplanista embarca numa nave espacial e percebe com seus olhos que a terra é plana;

 

- Ou o diálogo frequente, quase como se faz ao ir ao analista. Diálogo com os de fora da crença, que pela força reiterada dos argumentos, os farão acordar para a realidade (dos fatos). Este é o caminho mais difícil.

 

Os incrédulos do mundo dos fatos, crédulos do mundo fantástico das lendas e dos delírios, perguntarão:

 

A que fatos políticos te referes se tudo é discurso e interpretação? Deixo a dica: encontrarás os fatos somente se tu mesmo por eles procurares. Tu mesmo!

 

Vá tu mesmo fazer as compras e veja o custo crescente. Vá com teu amigo desempregado levar o currículo às empresas. Vá ao hospital particular procurar uma cura sem ter dinheiro. Lê tu mesmo os dados referentes às mortes pela pandemia. Procura, sempre pessoalmente, o que precisas saber. Podes perguntar onde e como saber o que queres saber, mas sempre saibas por ti mesmo.

 

A realidade vai se apresentar a ti quando tu mesmo a procurares. Deve te apresentar a ela!

 

Vai doer. Vai cansar. Vai desiludir. Principalmente desiludir.

 

Mas há vantagens em desiludir. O medo da mulher de branco em frente ao cemitério vai desaparecer de ti. Então poderás passar sem medo em frente ao campo-santo a hora que quiseres.  Caso consigas te desenvincilhar do delírio, ficarás livre do líder/messias. Sendo livre, pensarás por conta própria, terás opinião própria e poderás agir por si só.

 

Sair das lendas e dos delírios, não faz necessariamente ninguém mais (ou menos) feliz. Entretanto, com certeza, fará a pessoa mais responsável por suas ações na política.

 

Fica a dica.

 

 

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