segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Todas as certezas são fictícias

 


 Todas as certezas são fictícias. Essa certeza ocorreu-me repentinamente, como num mal súbito que acomete alguém que está ao volante. Eu me sentia bastante confortável com minhas verdades e esse pensamento causou-me estranheza.

 

Parei então para refletir. Quando eu tenho certeza? Quando algo para mim é evidente e estável no tempo, algo não contraditório. Logo veio ao meu pensamento a matemática. Ela é indubitável por ser não contraditória. Pensei mais um pouco e percebi que a certeza nada mais é que a convicção do meu espírito quando encontra o que não é contraditório com ele mesmo. Um tipo de fé, uma forte adesão voluntária ao que meus sentidos me apresentam, ou ao que meu espírito entende como verdadeiro.

 

Há casos em que havendo contradição entre os sentidos e o espírito racional, este se sobreporá sobre àquele. Algo como o astigmatismo (desfocando a realidade) sendo corrigido pelo uso dos óculos (produto da razão).

 

Mas a correção racional é a verdade, ou apenas uma nova possível adequação da minha mente ao o que deve ser visto? Fica a dúvida!

 

Voltando ao tema, toda certeza é fictícia. A matemática só é certeira por que é irreal, é feita pelas mentes humanas e para as mentes humanas. É como uma roupa feita sob medida! Neste caso, a medida é a lógica humana. Portanto, evidentemente não poderá ser contraditória. Ela é assim justamente por que é uma ficção engenhosa, muito produtiva e eficaz.

 

A certeza é inventada sob medida, é irreal e, sob o ponto de vista da natureza, ilusória. A natureza não sabe das certezas matemáticas nem reage a elas.

 

Quando tenho certeza que o ar condicionado da minha sala está numa temperatura agradável, sempre vem um estraga-prazer dizer que o ambiente está muito frio, ou, ao contrário, está muito quente.  Quando pego uma pedra e penso que ela é pesada, para um sujeito fortão ela é leve.  Como dizia Descartes, tudo é dubitável.  Então, a única coisa certa é a natureza objetiva, os fatos físicos. E só são certos por que são independentes de nós, estão fora de nós. Entretanto, como independe de nós a natureza, e a ela não temos acesso direto, pois estamos dentro do nosso corpo conectados por neurônios, cercados por tecidos, músculos e ossos, pouco podemos acessar a realidade real do mundo físico.

 

Minhas certezas e verdades (sempre subjetivas), concluo, são frutos de ajustes, acordos e conceitos inventados pelas pessoas.  Depois de inventados e funcionais, passam a ser estabilizados pela crença e ditos verdadeiros a ponto de criarmos guerras, e justificarmos a pobreza de uns e a riqueza de outros. Muita gente sofre e vive miseravelmente por que criamos este sofrimento e, após criado, inventamos mil justificativas para manter nossa criação.

 

Em tempo: a própria ciência foi uma invenção maluca dos homens! Tão maluca que, além de mudar com frequência, está a matar o planeta.

 

A ciência racional serve fielmente às crenças irracionais do seu criador.

 

Quanta ficção, quanta virtualidade!

 

Os jogos de computador e os mundos digitais nada mais são do que o reflexo do que há milênios já fazemos! Criamos o mundo humano para jogar com ele. Criamos as certezas como criamos jogos virtuais, para nosso conforto e diversão. As matemáticas e as ciências apenas inventaram a estabilidade e previsibilidade para nossas almas.

 

Se minhas certezas são invencionices, terei que me manter sempre em crise e atento. Principalmente, devo me sentir cada vez mais responsável pelas verdades que crio a cada dia. Não sou menos responsável pelas verdades que criam para mim, e que tanto me esforço para manter a crença!

 

 Verdades que podem ser falácias cruéis que fazem do mundo um jogo virtual mortal, um jogo terrível onde poucos ganham e a grande maioria perde.

 

Fica aqui algumas dicas que acredito serem importantes aos que cultuam tantas certezas.

 

terça-feira, 2 de novembro de 2021

O filósofo molambo

 


 

 

Ser diretor de escola é viver na imprevisibilidade. Um dia nunca é igual ao outro, sempre desafios diferentes. Minha escola é considerada a melhor da região. Escola altamente conservadora. O Ensino Médio é conhecido como aquele que sempre aprova seus alunos nos concursos das universidades mais concorridas. Escola cara e muito procurada. Uma beleza.

 

Mas onde há juventude, toda a surpresa é esperável.

 

Hoje o responsável pela portaria me interfonou avisando: Diretor, os alunos da turma 301 trouxeram um mendigo para a escola. Foram direto para a sala de aula com ele. Não houve como impedir.

 

Eu gelei!

 

Saí como um desesperado para a sala de aula. Minha gravata voa aos ares como uma biruta de aeroporto!

 

O que aprontaram agora? Já espero o pior. A porta está fechada. Abro. Sala vazia. Lembro que o professor de Filosofia costuma levar os alunos para o grande salão para apresentarem seus trabalhos. Logo aquele professor! A criatura é genial, mas há nele uma enorme dificuldade em ser um professor normal. Custa? É só dar as aulas e pronto. Sem surpresas!  A criatura hiperativa está sempre inovando. Na verdade, sempre leva seus alunos a quase cruzarem os limites das regras! Quase, quase... Um dia vai dar problemas! Será hoje?

 

Pensei: Agora sim, chega!  Vou pô-lo na rua! Isso só pode ser coisa da cabeça dele.

 

Entro pela porta dos fundos do salão. Lá fico calado e observando. Novamente a juventude dos alunos e a coragem do professor me surpreendem.

 

Lá está o mendigo, três alunos e o professor no palco. Na plateia as turmas de Ensino Médio e seus professores. Como não me avisaram?

 

O senhor paupérrimo está em pé atrás do púlpito. Ali é um local nobre onde os palestrantes se posicionam em dias especiais.

 

Os alunos do palco, naquele momento, estão apresentando o senhor maltrapilho aos demais. Solenemente falam do currículo do homem. A plateia está atenta. Um silêncio respeitoso!

 

Ao mendigo é oferecido água mineral. Conforme fiquei sabendo depois, água sem gás, a gosto do convidado.

 

Fico perplexo. Sento lá no fundo. Ouço a apresentação do pobre sujeito.

 

O nome do cidadão é Armando Genésio. Mais conhecido por O velho louco da praça ou Tio Diógenes da praça. Seu endereço? O aluno seriamente informa: banco central da praça central. Junto à velha e frondosa árvore de mais de cinquenta anos. O velho louco, melhor dizendo, o Senhor Genésio está sério, mas tranquilo. As roupas velhas, puídas, a barba enorme, mal cuidada e os cabelos desgrenhados tornam o cenário mais incomum do que seria esperado.

 

O segundo aluno, ao lado do nada ilustre convidado, continua a expor o currículo do palestrante. É algo mais ou menos assim: Senhor Armando Genésio, viúvo, sem família, formado, mestrado e doutorado em Filosofia. Desempregado por prazer, morador de rua há cinco anos. É um desconhecido e antigo militante na Filosofia.

 

Estava me recuperando ainda da surpresa quando vi inúmeros alunos aplaudirem. Enigma! Como isso? O conhecem? Todos estão tão confortáveis ali.

 

O terceiro aluno oferece ao convidado miserável outra água mineral. O senhor aceita com galhardia. O professor da turma se aproxima e aperta a mão do homem com um enorme sorriso. Agradece a presença do palestrante. O convidado, polidamente responde: O prazer é meu. Quando precisarem de mim, é só ir à praça e me chamarem. Não estando ocupado com minhas coisas, atendo imediatamente.

 

O microfone é ajustado à pequena altura da pessoa. Ele toma um gole daquela água e começa a falar. Já foi avisando: Podem me interromper e fazerem perguntas, assim como vocês sempre fazem lá na praça.


Como assim? Já se conhecem? Ai meu Deus! – Internamente eu estou gritando!

 

Genésio esclarece quem é aos que não o conhecem. Conta que já teve família. Morreram em um acidente. Só ele sobreviveu. Na mesma época foi demitido. Enlouqueceu. Sofreu. Desistiu. Desistiu de que? Da hierarquia. Do trabalho. Do tempo em minutos. Do ter. Optou pelo ser. Vive de que? Esmolas e doações em geral. Ganha muitos livros. De quem? Dos alunos da escola e de alguns professores.  Lê Filosofia claro, mas também história, geografia, sociologia, matemática e física. Tem muito tempo: o tempo maravilhoso do ócio. Fez e faz amigos. De professores a alunos. Do vendedor de livros usados, que empresta livros, ao Padre que fornece uma boa sopa quente. Junto com a sopa, vem a discussão sobre teologia e socialismo. O Padre é gente boa! – Conclui o filósofo indigente.

 

Após a breve preleção, o professor de Filosofia da escola pede ao palestrante que conte da sua relação com os alunos dos terceiros anos. O convidado pobríssimo sorri e conta mais coisas. Relata que ele fica junto à árvore da praça e os alunos o cercam. Então fala do cinismo, do estoicismo, do epicurismo, de política e da ideia do ócio na Grécia clássica.  Não raro faz alguns trabalhos escolares junto com os alunos. Riu e acrescentou: Faço junto com os alunos e não no lugar deles! Todos riem.

 

Novamente o professor de Filosofia intervém e pede ao senhor Genésio que conte como são estas conversas, lembrando que ele foi chamado justamente por que o tema da aula seria a escola peripatética.

 

Repentinamente uma jovem, demonstrando intimidade com Genésio, grita em gracejo: Fala aí Tio Diógenes! Todos riram novamente!

 

Não entendi!  Por que chamam o senhor Genésio de Diógenes? – Interroguei-me mentalmente.

 

O professor que também ria explica aos alunos que não entenderam a piada, àqueles que não têm contato com o mendigo na praça:  Diógenes foi uma espécie de mendigo que vivia nas ruas de Atenas, gente. Dizem até que sua casa era um barril. Ele entendia que a pobreza era uma espécie de riqueza, uma riqueza moral, uma virtude para poucos.  Acreditava que é preciso ter apenas o suficiente. Só quem tem o mínimo pode ser sujeito autônomo. Ter além do suficiente é luxúria, preocupação e insensatez.

 

O orador paupérrimo também acha graça.

 

Atendendo a solicitação do professor, fala da sua relação com os alunos da escola, escola tão cara e de tanto sucesso. Conta que simplesmente anda pela praça e vários alunos o seguem. No início zombavam dele. A cada zombaria respondia com um sorriso. Com o tempo e com a confiança, passaram conversar. Falam sobre a beleza de não depender de um trabalho. Sobre a liberdade de nada consumir. Discutem a liberdade de estar além (ou aquém?) da moral tradicional. Afirma que não cobra nada de ninguém.  Também ninguém cobra nada dele.  Dorme até quando quer. Usa sempre as mesmas roupas. Come quando tem fome e quando tem comida. Nunca parou de ensinar Filosofia. Ensina na praça. Mas no seu tempo, do seu jeito. Não ganha salário, nem dele precisa. Ganha admiração dos jovens, presentes, livros, esmolas e, não raro, abraços.  Vê a si mesmo como um revolucionário. Não consumir e não ser consumido é um golpe fatal no liberalismo econômico.

 

Ele se acha perigoso, pois ensina prostitutas, pobres, desocupados e alunos de escolas caras. Um perigo!

 

Sandro, o melhor aluno da escola, levanta e conta orgulhoso que considera o Tio Diógenes da praça um amigo. Aprende muito com ele. Com ele não é um aluno, mas um igual que troca ideias.  Dá livros novos para o Genésio, só para trocarem informações. Tudo informal e gostoso. Mas não pensem, diz Sandro, que o Tio da praça é uma figura fácil! Cobra fundamentos, argumentos e lógica para evitar sofismas e xinga duramente quem é preconceituoso. O Tio Diógenes da praça é uma espécie de Sócrates contemporâneo. Inúmeras vezes pergunta e confunde. Outras vezes, é um Aristóteles exigente e rigoroso. Além do mais, é um exemplo do que acredita: um misto de cínico, estoico e marxista com toques de Heráclito. Uma figuraça! Conclui o aluno.

 

Polidamente o palestrante agradece.  Inicia sua palestra. Explica a Grécia Clássica e a escola peripatética. Comenta os filósofos clássicos citados. Fala de Paulo Freire como um excelente pensador brasileiro. Audacioso, critica o professor da escola por não falar de Freire aos alunos. Explica a diferença entre a prisão das ideologias e as ideologias que libertam. Comenta o fenômeno político da escola sem partido. Conclui que é, a escola sem partido, reflexo de partidos que não frequentam as escolas.

 

Comenta orgulhoso sobre seu poder. Tem nada e por isso pode tudo. Ele não pode ser demitido nem contratado. Ele não tem dinheiro e por isso não paga multas. Ninguém o quer como candidato, mas ele pode votar em quem quiser. Não tem nada, não quer nada, por isso não tem inveja nem sonhos pomposos. Ninguém o ama, mas ama a todos que quiser amar.

 

Nesse momento a Cláudia, aluna da turma 302, grita rindo: Eu te amo!  Todos riem.

 

Continua a palestra o sorridente molambo filosofante.

 

Lá da praça, invisível para quase todos, posso ver de verdade as pessoas e suas hipocrisias. Só falo para quem me percebe, pois não quero forçar minha presença. Percebi que cada pessoa caminha de dentro de suas gaiolas. Só as pernas saem das grades. Então, por mais que andem, estão sempre no mesmo lugar, dentro da gaiola. Similares a tartarugas que carregam suas carapaças internamente inalteráveis.  Uma lástima.

 

Tranquilamente afirma que despreza os transeuntes apressados. São consumeristas como hábito, trabalhadores como maldição. Por outro lado, ama os jovens alunos. Ainda tem asas. As gaiolas são ainda frágeis. É fácil quebrá-las. Sim, orgulha-se dos dois apelidos que tem: o Velho maluco da praça e Tio Diógenes da praça.

 

Disse com um ar de introspecção: Inclusive entendo como possível a hipótese de estar sofrendo de alguma doença mental. Mas, não quero pensar nisso. Há tantas coisas republicanas para pensar, que pensar sobre minhas mazelas soa como egoísmo.

 

Maria Clara, uma menina do 2º ano, tímida e insegura, pergunta: Por que o senhor não volta a lecionar e a ganhar dinheiro? Não seria mais digno?

 

A aluna causa um certo constrangimento.

 

O homem impassível sequer pensou para reagir. Como Sócrates faria, enfrentou a pergunta da menina com outras. Questionou se nós sabíamos o conceito de dignidade. Maria não responde. Faz-se silêncio. Em socorro à aluna a professora de literatura arrisca timidamente:  Acredito que dignidade tenha relação com respeito, valor humano, nobreza...

 

Genésio agradece a resposta e redargui ainda com outra pergunta: Cara professora e gentil Maria, qual a relação direta entre emprego, valor humano e nobreza? Pensemos:  o “não trabalho” quando livremente escolhido é um desvalor humano e um ultraje? Ou é um ultraje forçar as pessoas ao trabalho? Por que devemos, sob pena de morte por fome, tornarmo-nos empregados? Lembremos que o conceito contemporâneo de trabalho, e o amor desenfreado por ele, só nasceu a partir do fim da idade média, início da moderna. Coisa recente. Portanto, não existiu desde sempre! Pessoas viviam bem sem trabalharem por uma remuneração! Pensando para frente: quando a tecnologia absorver a quase totalidade do trabalho humano, a discussão voltará a ser o ócio criativo. Portanto, o trabalho é o passado. O ócio é o futuro.

 

Alguns alunos riram e gritaram: É isso aí Tio Diógenes, incorpora Sócrates!

 

O professor de filosofia acrescenta: Maria Clara, nosso convidado trabalha sim, mas não em escola nem por uma remuneração.  Só se ensina em escolas? E só por dinheiro? Não se ensina nos sindicatos, nas aulas nas comunidades, nas associações e, no caso do Tio Diógenes, na praça? Ou tu entendes que só havendo remuneração há trabalho?

 

Tio Diógenes faz mais uma pergunta:  Querido professor, o que é uma escola? Se for um lugar para ensinar e aprender, um lugar de estímulo à cultura e de desenvolvimento cognitivo, minha praça é uma escola, uma escola pública, realmente pública!

 

Eu, diretor, fico assombrado. Percebo o rebuliço que um desempregado peripatético e cínico pode fazer.

 

Fico em dúvida. Demito o professor indisciplinado ou o elogio?

 

Penso mais um pouco e decido manter o contrato com o professor amalucado. Vou preparando meu espírito para as famílias conservadoras e moralmente retilíneas. Elas vão ligar para mim pedindo explicações. Creio que vou responder simples e direto para explicar aquelas falas: Contra fatos não há argumentos.