A prisão é confortável. Espaçosa.
Porém, garante que eu não tenha contato físico com ninguém. É iluminada por
duas janelas amplas, cristalinas, que dão uma boa visão do que acontece lá
fora. Por elas vejo o mundo. Os sons do exterior vêm por duas aberturas altas,
junto ao teto. Uma na parede esquerda, outra na direita. Tais aberturas são bem
eficientes. Ouve-se nitidamente tudo que ocorre no exterior. Para poder falar
com quem está lá fora, há uma outra abertura. Fica entre as janelas, a um metro
e quarenta do chão, creio (nunca medi). Então é possível a comunicação oral.
Este sistema de aberturas permite tanto ver o ambiente externo, quando ouvir e
falar com as pessoas.
Qual crime eu cometi para estar ali?
Nem lembro mais. Desde sempre estou neste lugar. De fato, este é o meu
verdadeiro lugar de fala. Provavelmente cometi
algo terrível, tamanha a punição.
A solidão aqui dentro é garantida. Apesar
de ver as pessoas, não posso percebê-las realmente. Elas estão sempre fora e eu
dentro, óbvio. Por mais que possa ouvi-las, o mesmo fenômeno acontece. Chega
até mim apenas uma espécie de reflexo da voz natural de quem fala. A minha
própria voz é adulterada ao passar pelo sistema por onde me comunico. Por isso
este cárcere é tão cruel. Posso ouvir e ver... sem ver e ouvir de fato.
A cela é diretamente voltada para a
rua. Não é separada do povo, que passeia
por ali em frente sem impedimentos. As pessoas estão tão acostumadas que falam
comigo como fosse normal esta situação. É bem verdade que também eu estou
perfeitamente adaptado. Tão acostumado que estabelecer novas rotinas é quase
impossível.
Falo com uns, cumprimento outros. Com
alguns até fiz amizade. No geral, não me sinto tão só... apesar da solidão
relativa. Dá para compreender? Daqui de dentro interajo com todos que passam. Há
até professores que dão aula para mim. Daquele jeito estranho, do lado de fora
tentando enfiar conhecimento pelas aberturas. Até dá certo, pois aprendo bem as
coisas que ensinam. E se não aprendo, basta decorar e fazer de conta. Como estou
encarcerado, ninguém pode aferir o que penso e faço de fato aqui dentro. É
verdade que me vingo de todos, pois faço o que quero sem que os de fora percebam.
Eles nada podem fazer contra mim aqui
dentro!
Quando estou com fome, aperto uma
campainha. Então, uma portinha se abre numa das paredes e a comida surge. Eu
posso reclamar do que é servido. Reclamo para qualquer pessoa que vejo pelas
duas grandes janelas. As vezes dá certo e mudam o cardápio.
Aqui tem um detalhe interessante. Se
quero eu mesmo fazer o alimento, ou tocar as pessoas, há como interagir com o
exterior. Como nos jogos virtuais, posso manipular braços e mãos externas. Como
se fossem minhas. Creio que, de fato, braços e mãos se movem do lado de fora,
mas eu só tenho acesso aos simuladores. As grandes janelas para ajudarem na
simulação, viram grandes telas. Por elas vejo as coisas acontecerem como se
fossem reais.
Dá até para simular encontros
amorosos. Sério! Posso ver pelas telas o
que “faço” e as legendas descrevem os sentimentos da outra pessoa. Como se o
contato fosse real. Não tem problema. A
privacidade é total. Aqui dentro faço o que quero e ninguém tem acesso. É, de fato, uma prisão altamente tecnológica.
Apesar de confortável e segura, a
vida aqui dentro é bem angustiante. Afinal, tenho tudo sem de fato ter algo. Entendem?
Ora, posso falar, ver e simular o que quero. Só não posso ter contato real. Entretanto,
aqui no interior é tudo confortável e seguro. E, como viram, não há o
impedimento total do que é externo. Aqui a expressão “contato real” já não faz
tanto sentido. Ora, tenho acesso ao mundo de fora, apesar das evidentes
limitações. Tenho prazeres ali dentro, assim como frustrações. Estou tão adaptado
aqui dentro, que o “lá fora” já nem faz tanta falta assim.
Até tenho uma namorada. Através das
simulações, quase acredito estar realmente tocando-a (se de fato ela existe).
Estou apaixonado. Ela até reclama que eu estou longe dela, inalcançável. Ora,
isso não há como resolver.
A prisão de alta tecnologia permite
muita coisa, mas me mantém em cárcere. Inúmeras vezes penso ser melhor estar aqui
dentro mesmo. Ora, estou seguro, indestrutível, aquecido e alimentado. E lá
fora, o que há? Sofrimento, desencantos, desentendimentos e frustrações. Disso
eu estou afastado. Aqui dentro estou bem e faço o que quero.
O que é mesmo a liberdade? Aqui
dentro sou cem por cento livre. Faço o que quero, penso o que quero e discordo
de inúmeras coisas sem sofrer represálias. Afinal, quem está preso? As pessoas
lá fora que sofrem tanto? Ou eu, aqui dentro, fazendo o que quero e quando quero?
Quem são mesmo os livres? Dentro da prisão sou realmente o que quero ser. Somente
aqui posso ser verdadeiro.
Inúmeras vezes quero sair da prisão.
Então percebo ser impossível. Posso tentar sair através dos meus pensamentos...
colocando-os em poesias, textos, enfim, em coisas que com o simulador coloco no
lado de fora. Ou ainda quando grito pelo local onde sai a voz... mas não é eu
mesmo, é apenas eco de mim no exterior! Minhas coisas chegam lá fora de maneira
terceirizada, manipulada, não sou eu mesmo. Fico triste, com raiva até. Então
fico quietinho aqui dentro mesmo, no meu catre, sem me manifestar externamente.
Nesses dias tristes a solidão é
insuportável.
Numa noite tranquila tive um sonho
estranho. Nesse sonho eu saio da prisão. Posso olhar diretamente o lado de
fora. Vejo tudo nitidamente, com um esplendor nunca percebido. Fico encantado!
O lado de fora é maravilhoso, tão real, tão nítido e tão sonoro! Realmente,
algo encantador. Mas do encanto à uma história de terror, levou um segundo.
O terror aconteceu quando resolvi
olhar para a minha prisão, para vê-la de fora para dentro. Para perceber como
as pessoas a viam. Então o susto!
Quando olho para trás, para ver o
prédio em que estou preso, vi um corpo humano dormindo tranquilo. O corpo é igual
ao meu! É o meu! Compreendi tudo quando forcei e abri as pálpebras dos olhos
adormecidos daquele corpo. Levantei-as para ver o interior! Vi o que tinha lá
dentro! É a minha prisão! Dentro do corpo! Olhei com mais cuidado e percebi que
aqueles olhos são olhos para quem os vê de fora. Por dentro são as grandes
janelas por onde o prisioneiro, dentro daquele corpo, pode ver o que ocorre do
lado de fora. A prisão está vazia, disse no sonho. Onde está o prisioneiro,
então? A amedrontado refleti: O prisioneiro sou eu mesmo? As telas são os olhos,
e os orifícios laterais por onde ouço os sons do mundo externo, os ouvidos? E o
lugar por onde grito para as pessoas ouvirem, a boca? Então, nunca aconteceu
nenhum crime para eu ser um prisioneiro? Eu nasci dentro daquele corpo? Então eu
sou a mente, a alma daquele corpo? Eu sou a consciência daquele indivíduo, como
um motorista que dirige seu carro? Melhor ainda, eu sou o indivíduo preso
naquele corpo?
Naquela manhã acordei gritando!
Suava! Que pesadelo! Ainda bem que foi um sonho terrível. Então acalmei-me.
Voltei para a calma do meu cárcere. Melhor a calma daquela prisão estranha. Mas, e se todos vivem presos? Ufa! Agora sei que
foi apenas um pesadelo. Tudo voltou a normalidade. Melhor ser normal do que pensar demais!
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