quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O artigo terceiro da Constituição Federal é marxista?

 

 

Gostaria de já no parágrafo abaixo fazer algumas considerações sobre o conceito vulgar do comunismo. Depois, no último parágrafo, vou retomá-lo.

 

Para o senso comum (simplório), para a média das pessoas, o comunismo é algo ruim. Destrói a economia e incentiva a vagabundagem às custas do erário público, pois o Estado seria o real empregador dos trabalhadores. O conceito pueril (risível) divulgado repetidamente é aproximadamente este: O comunismo é uma ideologia totalitária que domina o Estado em nome do povo. Pretende igualar as pessoas, erradicar a pobreza erradicando as pessoas ricas. A propriedade e o Estado passariam a existir para o povo. É preciso para sua implantação muita luta. Para esta crença popular, o comunismo tem um único (!!!!) ideólogo: o Marx. A obra mais lembrada é o manifesto comunista. O comunismo está em todos os lugares seduzindo os incautos. É possível acrescentar mais coisas, mas esta definição difundida é o suficiente para este texto.

 

Agora, quero refletir totalmente focado no artigo terceiro da nossa Constituição Federal de 1988. É nele que encontramos os objetivos fundamentais da nossa República.

 

Diz seu caput: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:”. Gostaria de dar especial relevo as palavras que salientei em negrito.

 

a)      Objetivo:  é aquilo que se pretende alcançar quando se realiza uma ação; indica propósito.

b)      Fundamental: o que é crucial ou indispensável.

 

Posso sem mudar a semântica do Caput reescreve-lo assim: “A República Federativa do Brasil pretende com suas ações e de maneira indispensável o que segue:” Quero salientar reescrevendo desta forma, que o Caput ordena o rumo que a República deveria ter desde 1988, e que deverá ter no futuro.

 

Eis o artigo original e na íntegra:

 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (grifo meu)

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Sendo estes objetivos fundamentais, por consequência sem eles não haverá República.

 

Cabe ao Estado compulsoriamente dar os meios necessários. Os meios para atingir tais pretensões elencadas nos parágrafos do artigo acima. Posso trocar dar os meios necessários por: o Estado intervirá para garantir a consecução deste artigo constitucional.  

 

Percebe-se que a profundidade da intervenção é discutível, mas sua obrigatoriedade não. Sem a intervenção estatal ficaria a cargo do mercado a realização dos quatro artigos. O que creio ser pouco provável. Por isso, os legisladores constituintes claramente expuseram os objetivos da república no documento legal mais importante. E de forma vinculante.

 

Relevante perceber que os verbos dos artigos estão no infinitivo.  O verbo no infinitivo não pertence a nenhum tempo (passado, presente ou futuro). Portanto, o parágrafo terceiro impõe ações, mas não impõe tempo.  O objetivo não é algo que se encontra e pronto, acabou porque atingimos o máximo possível. Não. Impõe uma obrigação que não se esgota, que exige sempre maior eficácia. Por isso, podemos dizer que este artigo é de eficácia limitada. O que equivale a dizer que depende de legislações posteriores.  Ora, a eficácia vai sendo construída. A realidade vai se impondo, o legislativo vai construindo possibilidades.

 

O Estado tem que estar dominado e orientado pelo artigo terceiro. Dominado, ele intervirá na vida de todos para garantir que a República promova a solidariedade, erradique a pobreza, reduza as desigualdades sociais e que não haja preconceitos.

 

Observem o artigo 6o, puro reflexo deste em estudo:  

 
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

 

O artigo terceiro está no Título I, “Dos princípios fundamentais”. Ele tem um pé nos princípios e outro pé nos objetivos fundamentais. Não há como andar sem os dois pés! O pé dos princípios faz com que o ideal exposto no artigo se espraie por todo o ordenamento jurídico, orientando-o. O outro pé, o dos objetivos, faz com que os operadores do Estado garantam na prática o que está previsto como ideal. Aqui percebe-se que o objetivo da República ocorrerá no máximo que for possível. Para representar esta ideia de máximo que for possível, inventei esta expressão: dentro do possível-possibilitando. Ou seja, o que não é ainda possível, será amanhã. Basta lutar.

 

Lutar? Quem? Todas as pessoas, inclusive os operadores da República. O povo deve lutar para que o ainda impossível possa ser possível. O artigo terceiro não diz como fazer. Só diz que deve ser feito.

 

Os governantes vão se adequar a República. Nunca o inverso.

 

O artigo terceiro quer que persigamos sempre a sua maior eficácia. E isso desde 1988.

 

Ele quer o máximo de solidariedade e de democracia num ambiente de pessoas maximamente saudáveis e bem alimentadas.

 

Portanto, o Estado intervirá na sociedade e na economia em nome da ideologia republicana. O artigo em estudo não só descreve os objetivos fundamentais da República, mas vincula o Estado. É ele que deverá desenvolver a solidariedade na sociedade. Também tem que erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades (igualando equitativamente as pessoas). A ideologia republicana é muito exigente.

 

Agora leitor, retome o conceito de comunismo descrito no segundo parágrafo. É muito similar ao espírito do artigo terceiro da Constituição Federal de 1988. Ele é tão harmônico com o conceito vulgar de comunismo que creio que a Constituição Federal é, com certeza, marxista.

(Aos desavisados - é ironia!)

 



segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

A máquina do ódio da Patrícia Campos Mello. Tentativa de resenha

 


 

 

Pretendo comentar o livro Máquina do ódio, escrito pela jornalista Patrícia Campos Mello; editora Companhia das Letras. Uso o termo comentar porque não consigo me ater aos limites das resenhas literárias.  A obra se torna para mim uma inspiração que me faz excedê-la. Entretanto, tento não fugir do que li, mas o risco é grande!

 

Quando li o título do livro da Patrícia, chamou a atenção a expressão máquina. Máquina é um objeto feito de partes menores que se inter-relacionam de forma harmônica. Potencializam-se. A máquina é um dispositivo que transforma energia em trabalho. E o trabalho existe para obter um produto.

 

Procurei na obra elementos que justificassem o termo máquina.  Então encontrei ideias que, de fato, justificavam a palavra. O Brasil vive um tempo de fábrica industrial de falsas narrativas. Há uma campanha fabril de desinformações. As redes sociais estão infectadas por células da extrema direita. Estas células funcionam como engrenagens na máquina para fazê-la funcionar bem.

 

Acredito que estas ideias (negritadas) justificam o título. O ódio não vem disto ou daquilo. Ele vem de um conjunto de peças que, quando azeitadas e acopladas, produzem exponencialmente este sentimento.

 

A ideologia dos candidatos populistas reduz/empobrece a linguagem para melhor manipula-la. Veja que o governo federal brasileiro reclama da mídia. Mídia no singular. A reduz a uma coisa única, palpável, identificável e unívoca.  Por consequência o senso comum crê identifica-la aqui ou ali e a agride.

 

Ora, sabe-se que não há uma única mídia! São inúmeras. Rádios, canais de TV, jornais escritos e virtuais, blogues, revistas e etc. Algumas mídias são conglomerados. Outras tem um dono só. Algumas são profissionais, outras nada profissionais. Temos as patrocinadas por empresas (anúncios, por exemplo) e outras por doações se tornando membro (pelos coletivos  Catarse e  APOIA.se no caso dos canais do YouTube).

 

Percebe-se que esta unificação do termo mídia é um momento da manipulação pela linguagem da opinião pública. Quer-se a deslegitimação das mídias, mas não só delas, das ciências também (leia-se aqui o negacionismo oficial da pandemia).

 

Ora, são estes dois elementos (as mídias sérias e as ciências) que podem se contrapor ao populismo destes governos. Então, são os mais atacados por eles.

 

No Brasil, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) registrou 208 agressões físicas ou verbais a veículos de comunicação e jornalistas em 2019. Bolsonaro foi o responsável por 58% dessas agressões — 121 dos 208 ataques.

 

A ordem é evidente: Ataquem a mídia (no singular). Subliminarmente há outra ordem: Os meios que nos apoiam são outra coisa que essa mídia aí. Saliente-se a confusão deliberada sobre o que são as mídias e para que elas servem.

 

O livro não fala em governo de extrema direita. Refere-se a governo populista.  Eu usaria o termo fascista de extrema direita.

 

Para que a máquina de ódio funcione, estes governantes que manipulam a opinião pública, tentam driblar a mídia, pois esta está corrompida (sic) pela mentira, afirmam. Por consequência, o governante populista fala diretamente como o povo. Melhor dizendo, com seus apoiadores. Lembram-se do “cercadinho” da Alvorada?

 

Para isso usam (diretamente e indiretamente) as redes sociais. Geralmente o twitter e o whatsapp . Com recursos públicos fortalecem os canais no Youtube e os blogs que os apoiam. E, é claro, também as TVs que são favoráveis aos seus discursos. Então, mídia boa é a subserviente. Seus apoiadores não percebem o conflito lógico deste apoio: afinal, a mídia (que o populista diz que é uma coisa única) é boa a ponto de patrociná-la ou má a ponto de odiá-la?

 

Sabe-se que para o líder populista, as perguntas lógicas não são bem vindas. E, caso se refiram às suas ideologias, pior ainda!

 

As mensagens dos populistas são virais, tóxicas e simplistas. São curtas e facilmente inteligíveis.  São agressivas, violentas e sonoras. É isso daí porra! As mentalidades agressivas e violentas são cooptadas rapidamente. Está feito o estrago. Estas mensagens não pretendem atingir um público altamente letrado (e leitor) e reflexivo.

 

A mídia mente. O comunismo está aí. A corrupção é isto aí. A pandemia é coisa de maricas, porra. Cada micro ideia é um tiro.

 

As principais engrenagens que movimentam esta máquina do ódio são virtuais e mitológicas. Invisíveis, mas onipresentes. A energia que as move são humanas. São pessoas que dão vida aos robôs, aos youtubers e às manipulações das informações. A tecnologia, os chips, as câmeras e os microfones são apenas instrumentos. Manipuladores e manipulas criam falsas narrativas. As narrativas organizam os fatos. E se não for possível manipulá-los, são substituídos, (re)inventados.

 

Uma vez “impulsionada”, a narrativa é então propagada naturalmente pelas redes orgânicas, que são as pessoas de carne e osso que acreditam naquilo que está sendo veiculado.

 

O que é um fato que ninguém viu? O que nos é contado. O que é fotografado. O que é descrito. O que é comentado. Então, o que é um fato mesmo? O que o populista e seus apoiadores definem que são. E há sempre quem acredita!

 

“Nossa visão é: não entre nesses grupos grandes, com gente que você não conhece. Saia desses grupos e os denuncie.” A maioria dos grupos públicos de WhatsApp era de apoio a Bolsonaro.

 

Todos sentimos na pele a quantidade de informação que nos rodeia. Não há como assimilar tudo. Muito menos checar tudo. Tirando da imprensa séria e profissional toda a credibilidade, fica mais difícil ainda. O líder populista sabe disso. Mantém tudo hiperfragmentado. Aí residirá a desinformação. Então o populista dirá: Perguntem para mim diretamente sobre a verdade, eu respondo.

 

Não somos os únicos. Nas Filipinas, na Índia ou nos Estados Unidos, políticos recorrem a exércitos de trolls e bots para construir narrativas que os favoreçam. É este o novo mundo em que vivemos: fatos são moldáveis.

 

Há que não deixar as pessoas refletirem. É preciso dizer muito para não facilitar o conhecimento. Lembremo-nos que a informação é um conjunto de dados ou de notícias. Já o conhecimento é quando relacionamos as informações, formamos ideia própria através de um relativo domínio sobre o assunto.

 

Assustador é quando a autora alerta que os políticos moderados, de “mensagens mornas”, tendem a desaparecer. E porquê? O contexto atual favorece o discurso violento, que chame a atenção, que berre nos nossos ouvidos.

 

O próprio modo de funcionamento das redes sociais atua de forma a não favorecer políticos — e ideias — moderados. Na política da velha guarda, quem quisesse atingir o maior número de eleitores tinha de recorrer a mensagens moderadas, com ideias que pudessem ser abraçadas pela maior parte das pessoas. No tecnopopulismo, o jogo é outro.

 

Estamos num tempo pior que aqueles em que pão e circo eram suficientes. Agora é grito e porrada. Tá ok?

 

 

 

 

sábado, 2 de janeiro de 2021

Comunidade de aprendizagem dialógica, tamojunto!!!!

 

Todos os espaços onde as pessoas se encontram, são espaços públicos de fala. Talvez ensaios para futuros diálogos.

 

Falar é menos que dialogar. Dialogar é menos que experimentar a dialogicidade. É fato, todos falam. É fato, só alguns dialogam. É fato, raros experimentam espaços dialógicos. Fica a dica.

 

Como utopia proponho espaços dialógicos (dialógico, lembrando o Professor Paulo Freire).

 

Nesse Brasil cheio de ódio e desentendimentos sequer dialogamos. É preciso evoluirmos para uma cooperativa de aprendizagem (aprendizagem no sentido mais amplo possível).

 

Somos todos opressores! Pronto, falei.

 

De alguma forma oprimimos alguém em algum lugar. Afinal, fomos criados, socializados assim. Há opressores culposos (inconscientes) e há opressores dolosos (cientes do que fazem). 

 

Já dizia Paulo Freire que há a possibilidade de dentro do oprimido existir um opressor. Eu, por minha vez, afirmo que tendemos a ser, todos, opressores.  Alguns na área econômica e política, outros nos relacionamentos abusivos. Outros ainda que se acham certos – sempre! Sem esquecer os que possuem uma fé tão inabalável que desdenham dos que têm fé diferente. A lista é longa.

 

E eu não me excluo do fato de ser um opressor. Não oprimir é uma luta diária numa sociedade opressora.

 

Proponho a cura pela fala, pelo diálogo dialógico. E tal só é possível quando nos compreendermos viventes numa cooperativa de aprendizagem. Aprendemos a ser gente. Aprendemos a falar, depois a dialogar e, no passo seguinte, poderemos aprender a postura dialógica. Isso só é possível num contexto de cooperativa de aprendentes.

 

Defino cooperativa como o lugar (ou lugares) onde os envolvidos são associados que cooperam entre si. Todos participam como podem e fazem o máximo para poder cooperar mais. A recompensa pelos esforços cooperativos é a participação igualitária nas vantagens que vão sendo construídas.  

 

Nesta cooperativa de aprender a ser gente entre gentes, todos trabalham e são cogestores deste espaço de aprendizagem cidadã. Esta cooperativa é um encontro em que se busca o conhecimento. É onde se realiza a relação entre sujeitos cognoscentes. O objeto cognoscível é o mundo (Novamente ouço Paulo Freire de fundo).

 

O benefício de aprender a ser gente, neste contexto, é mútuo. Não há desejo de lucro. Ninguém saberá ser gente mais que o outro. Mesmo que as contribuições pessoais sejam diferentes, a distribuição de saberes é igualitária. Ninguém pode aprender a ser mais gente que o outro.

 

Esta cooperativa só é possível pelo diálogo respeitoso entre os membros.  Cada membro se denuncia como gente e anuncia que o outro também é. Só gentes se respeitam.

 

As pessoas são diferentes. Mas as diferenças não podem ser confundidas com disparidade, desigualdade. Todos são absolutamente iguais no direito ao diálogo e a existência ativa no ambiente dialógico. Só aprendemos a ser gente cooperativa num ambiente livre para a fala e livre para a audição.

 

A vida histórica de cada um fala através dos seus discursos. Então, cuidado com a crítica! O falante terá sua vida criticada! Sua vida! Não é pouco. Portanto, o ambiente cooperativo será um contexto onde os dialogantes serão moderadores dos excessos e das faltas. A comunidade cooperativa vai delimitar de forma autoimposta a comunicação. Isto para que ela não seja violenta (ao estilo da comunicação não violenta do Marshall Rosenberg).

 

É fato, só é livre quem é livre para aceitar limites.

 

A cooperativa aprendente de ser gente entre gentes, ao limitar pretende incentivar a expressão em ambiente seguro. Afinal, todos são poderosos. A gestão destes poderes cabe a cooperativa discutir. Aqui poderíamos apresentar o conceito de política como gestão de poderes.

 

Há que se fazer política!

 

A utopia que proponho: um Brasil crescentemente dando acesso igualitário a uma fala rica, crítica, dialógica e com vocabulário crescente em qualidade.

 

Vocabulário e interpretação de mundo: ensinar o povo a saber falar o que quer falar exige esforço público-estatal. Não é ensinar o conteúdo do querer, mas qualificar a forma. É preciso apreender habilidades e competências para a expressão não violenta e cooperativa do que se quer comunicar. Quanto ao conteúdo, as comunidades de dialogantes já têm.

 

É preciso cuidar nossa formação. Fomos formados num contexto competitivo, de lucro, de vencer. Fomos ensinados a sermos empreendedores, a trabalhar em proveito próprio, a ver o outro como um possível consumidor do meu produto.

 

Às vezes eu sou o produto que o outro deve comprar. Outras vezes, o outro é o produto que eu devo adquirir.

 

Pois é, na nossa cooperativa de aprendizagem dialógica, é preciso lutar contra a fala estratégica. Este tipo de fala é aquela que diz algo para seduzir, para obter algum tipo de lucro ou vantagem.

 

Proponho a criação cada vez maior de espaços cooperativos e dialógicos. Das escolas às igrejas. Das praças aos partidos políticos. Dos sindicatos ao chão de fábrica. Dos teclados às mídias.

 

Tem um neologismo que gosto muito. Vou usá-lo para terminar este artigo:

 

Comunidade de aprendizagem dialógica, tamojunto!!!!

 

 

 

 

 

 

 

 

Quêm lê muito não faz nada. Verdade?