domingo, 12 de agosto de 2018

O resto é o resto. Simples assim.


                                                                                                



Imagina fortemente a situação que vou descrever.



Tu estás na rua quando és assaltado por uma fulminante amnésia. Não sabes mais quem és, nem o que fazes para sobreviver. Muito menos tua história de vida! Percebes que tuas posses reais são apenas tuas roupas e pertences pessoais.



O fato é o seguinte: quem tu és moralmente, é exatamente o que pensas e sentes neste exato momento.



Podes até conjecturar a possibilidade de teres outras posses ou outras características de personalidade anteriores, mas serão apenas conjecturas (enquanto durar a amnésia). Se o possuis o carro que está a teu lado, não tens acesso. Se tens contas em bancos, não tens nem ideia disso. No teu bolso há apenas trocados. Não tens documentos.



Portanto, és exatamente o que tu portas, pensas e sentes nesse momento. És totalmente presente. Sem passado, não podes imaginar um futuro!



Sentes fome. Vais até uma lancheira. Ficas na porta e não entras. Percebes que és incapaz de entrar sem ter dinheiro para comprar o lanche. Não podes explicar este sentimento, o porquê, pois não tens história. Olhas as pessoas inocentes comendo seus lanches de forma distraída. Fácil furtar-lhes o alimento. Entretanto, uma força interna e inexplicável, misteriosa, impede-te disso.



Percebes que, de forma automatizada, dás licença para os mais idosos passarem. Tens o cuidado instintivo de não colidir com os demais transeuntes e se o faz, pedes desculpas sem refletires. Sorris para uma criança e sentes pena de um pedinte na rua. Dás a ele teus únicos trocados. Uma moça derruba um pacote pequeno e tu junta-o do chão e o entrega num ato reflexo. De onde vêm essas ações reflexas?



Então tu sentas numa praça já cansado. Observas um cidadão lendo um jornal. As manchetes te trazem desconforto, pois falam de corrupção e violência. Entretanto, admira a vestimenta do homem que lê. As cores combinam. Usa gravata. Acha-o uma pessoa chique. Então olhas para ti mesmo. Também estás vestido de forma elegante. Sapatos impecáveis. Roupas novas. Sentes que entendes todas as manchetes do jornal, mesmo as mais complexas sobre economia. Tens opinião pronta sobre tudo o que lês. Percebes que podes opinar com coerência sobre os temas tratados. Ouve-te mentalmente criticar as mazelas sociais e a corrupção. Serias, por consequência, uma pessoa estudada e honesta? Tudo sugere que sim. As coisas que pensas e que sentes são pistas sempre atuais.



Forças a memória para te lembrares da tua identidade. Como não lembras, percebes uma grande verdade: somos exatamente o que pensamos, sentimos e portamos nesse momento.



A verdade é filosófica e fatal: tu és aquilo que portas, sentes e compreendes do mundo no exato momento em que estás agindo/reagindo nele. O ontem não existe de forma consciente quando estamos em ação. Não importa títulos ou posses.  Mesmo com a memória apagada, se és um mau caráter, assim continuarás sendo. Se és um obtuso, assim continuarás. Se fores amoroso, amarás. Se fores odiento, odiarás. Simples assim. A amnésia não pode disfarçar o que és. Ao contrário, o esquecimento salientará tua essência.



Não importa o que dizes que és. Muito menos os certificados que afirmam tuas qualidades. Quando tiveres de agir, no segundo exato da necessidade da ação, agirás conforme tua essência construída no tempo, mas sempre atualizada. Na ação tua essência será visível. As justificativas são sempre a posteriori.

A pergunta do sujeito com amnésia se mantém: quem sou? Para responder, os fatos:



Mesmo com fome, não furtaste. Na rua, procuraste não bater em ninguém. Foste gentil. Deste passagem aos mais velhos. Pediste desculpas. Sorriste para crianças. Tiveste pena das pessoas desvalidas e, mesmo com fome, doaste teus últimos trocados. Devolveste o que não te pertencias. Admiraste uma pessoa de bom gosto no vestir. Também tuas vestimentas são de bom gosto. Interpretaste bem as notícias do jornal. Fizeste juízo moral negativo em relação às imoralidades sociais. São pistas reais, materiais. Pistas evidentes.



Estas são tuas verdades. Não importa outras coisas: só os fatos. Agora podes saber quem és. Saberás melhor agora do que sabias antes da amnésia!



Tu és sujeito honesto e gentil. Amoroso com crianças e idosos. És uma pessoa sensível às desigualdades sociais. Tens bom gosto e és bem informado. Concluo isso das tuas ações. Não preciso saber tua história de vida.



Após esse exercício de imaginação, podemos concluir que nós somos apenas o que possuímos junto a nós, o que sentimos e como agimos. O resto é o resto. Simples assim.






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