terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Cavalão X Profeta Gentileza (Comentário ao artigo do Prof. Valdo Barcelos - Jornal Diário de Santa Maria 24/12/2019)




Quem lembra do Profeta gentileza? O nome dele era José Datrino (1917 – 1996). Ele pregava pelas ruas do Rio de Janeiro. Sua crença? A gentileza. Sempre com palavras doces e cheias de amor nos lábios; nas mãos, flores. Em função de acontecimentos traumáticos em sua vida, passou a propagar ideias sobre amor ao próximo. Dizia: “Gentileza gera gentileza”. Simples assim. Alguns achavam que era um louco qualquer, outros, acreditavam ser um poeta das ruas.

Há muito, muito poucos profetas desta ordem. Creio que há mais (falsos) profetas falando de ódios, infernos, perseguições e grosserias. Entre vendilhões do templo e grosseiros profissionais, temos uma sociedade adoentada e violenta. Para reverter este quadro, quantos “Gentilezas” precisaremos?

A gentileza é um comportamento que vem pela aprendizagem. Notadamente pelo exemplo. A amabilidade, a nobreza, a urbanidade é um princípio civilizatório a muito custo adquirido. Basta pensar que este princípio se contrapõe ao caminho mais fácil, que é o da descortesia, da grosseria e da estupidez.  É mais fácil ser antissocial que gentil, é mais fácil agredir que ser empático. O Profeta Gentileza sabia disso e se dedicou ao magistério da amabilidade. Escolheu, portanto, o caminho mais difícil. E tanto o era, que foi taxado de louco. Mais razoável é ser estúpido que gentil – todos acreditam. Cabe apontar que os menos inteligentes na nossa espécie, adoram os caminhos mais fáceis. São como água que escorre por declives mais favoráveis, sempre.

Optar pela gentileza e civilidade é bem complexo. Exige esforço, hábito e empatia. É quase como fazer as águas subirem um morro. Dá trabalho, mas é possível. Entretanto, poucos sabem realizar esta obra de engenharia hidráulica.

O presidente Bolsonaro não conhece o Profeta Gentileza. Afinal, vive de impropérios, exala grosserias e mau humor. Sua estupidez flui pelos declives do poder, do puxa-saquismo e do servilismo. É grosseiro porque pode sê-lo e quer sê-lo. No ambiente melífluo e tóxico do poder, este senhor grosseiro prospera. Em seu entorno, o presidente ogro plantou seus iguais e vive na sombra destes.  Não há inteligência emocional neste governo agressivo e mal-educado.

Vou abrir meu voto para a eleição presidencial seguinte: votarei no Profeta Gentileza.  Bem, como não será possível, ao menos ficarei atento a quem for gentil, amoroso e fraterno. A barbárie só se mantém enquanto existirem bárbaros pra mantê-la.






quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Liberalismo? Só a onze mil metros!




No jargão dos pilotos de aeronaves, a expressão altitude de cruzeiro significa voar a cerca de onze mil metros. A esta altitude é possível ao avião gastar menos combustível, e a turbulência é bem menor que nas altitudes mais baixas.  Onze mil metros é bom para maximizar os resultados da aeronave. Manobras bruscas, subir, descer e vencer a resistência do ar significa maior gasto de combustível. Então, melhor é manter-se lá em cima. Tranquilão.



Escolhi estas metáforas (altitude de cruzeiro e aviões) por que entendo que se aplicam perfeitamente ao liberalismo.  Quero dizer que o liberalismo só é possível quando a economia está em altura de cruzeiro. Acrescentando uma pitada de ética e de política: em altura de cruzeiro para todos.  Não é possível imaginarmos que no mesmo avião, alguns passageiros enfrentem turbulência e outros não. Ou é para todos ou é para ninguém.



Os defensores do liberalismo tentam resolver este dilema: não colocam todos os passageiros juntos na mesma aeronave. Imaginam que há voos de péssima qualidade para uns e perfeito para outros. Até o ponto em que os voos de péssima qualidade ficam tão caros (pois consomem muito combustível, estão abaixo da altitude de cruzeiro) que sequer saem do chão. Afinal, somente a altitude de cruzeiro é eficiente e mais barata.



 Interessante, não? A péssima qualidade acaba saindo caro. Entretanto, a boa qualidade (mais barata) não é para todos. Neste caso, algumas aeronaves nãos sairão do chão.



O liberalismo funciona na altitude dos que podem escolher sua educação, dos que podem fazer apostas como empreendedores, dos que podem suportar algum fracasso sem comprometer seriamente suas vidas.  A liberdade e o risco controlado (risco não fatal) só ocorrem na altura de onze mil metros. Neste tipo de voo, além da resistência do ar ser menor, os equívocos do piloto podem ser consertados a tempo, sem danos maiores. Errar é até confortável. Há bastantes formas de se manter seguro. No máximo uma pequena turbulência. Estes voos estão amparados por apólices de seguro, reservas monetárias, famílias estruturadas e até o Estado está disponível para ajudar (pois tem interesse nos que voam a esta altitude).



Os economistas, os políticos e todos os que se envolvem na arquitetura dos aeroportos, nas rotas de voos e nos mecanismos de incentivo, pensam e se orientam pela altitude de cruzeiro.





Esta altitude está liberada para todos. Pensa-se que só não alcança os onze mil metros quem não quer ou quem não merece. Não há por que pensar nos teco-tecos que não podem chegar a esta altitude. Estas aeronaves apenas atrapalham o fluxo dos demais aviões potentes.  Se a potencia dos supermotores os mantem nas alturas, que os motores frágeis fiquem no chão ou arranjem (sabe Deus lá como!) mais potência. Improvisem! Sejam criativos!



As elites brasileiras estão a onze mil metros. Ignoram os abaixo. Desejam um país nestas altitudes. Contam aos teco-tecos que, caso se esforcem muito, mas muito mesmo, voarão mais alto. Então os pequenos passam a amar as altitudes rarefeitas e belas. Caem aos montões, como moscas. Entretanto, apoiam as grandes aeronaves. Sonham em ser como elas. Turbinam suas pequenas embarcações aéreas e tentam grandes saltos. Chegam a ver as fuselagens prateadas dos aviões longínquos.  E quando suas asas quebram ou quando seus motores superaquecidos falham e caem, sempre a culpa é do piloto incauto. Juntada as ferragens e limpo o solo, é a vez de outro aviãozinho. Se cair, já sabemos: culpemos o piloto.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Pai, se o bandido pedir desculpas, a polícia solta ele, né?


Meu filho aos quatros de idade me surpreendeu com a pergunta: Pai, se o bandido pedir desculpas, a polícia solta ele, né? Confesso que senti uma angústia muito forte. Não pude responder ao ingênuo questionador, que pedir desculpas não alivia em nada a pena do criminoso. O infante acreditava que é possível o arrependimento e o perdão. Acreditava que todos podem se regenerar. Creio que, em tese, ninguém consegue defender que todos são irrecuperáveis. Entretanto, poucos se atrevem a dizer claramente que são a favor da redução da vontade de encarcerar que assola o Brasil.



Aquele que defende seu horror ao encarceramento massivo e desumano, invariavelmente ouvirá: Então queres que todo o bandido fique solto? E a família da vítima? E se fosse teu filho(a)?  É preciso dizer que quem julga nunca será o pai da vítima, amigo ou familiar dela. Se fosse, seria no mínimo um juiz suspeito. Logo, é irrelevante o argumento “se fosse ou não teu familiar”; pois tal hipótese impede um julgamento justo. A decisão de quem julga trata-se de uma questão social e não/nunca pessoal.



Mais raro ainda é encontrar pessoas que defendem a ausência total de cárcere. Apesar das dificuldades, o tema do encarceramento é por demais relevante.



O Estado nunca deve se posicionar como se fosse a vítima, sentir as dores como se fossem suas e deste lugar reagir.  O Estado não é a vítima. Não deve tomar para si a dor que não é sua. Seu distanciamento é essencial. Ele responde pela justiça no seu sentido mais amplo, uma justiça na sociedade e para todos.  O Estado percebe o contexto para aplicar sanções.  E com certeza, a vingança não faz parte das suas prerrogativas. Evidentemente que a vítima é fator relevante, mas não transfere sua dor para o juiz. A vítima deve ser atendida pelo Estado para superar seu sofrimento.



A vítima, neste sentido, é o foco. O foco não é maximizar a pena do condenado como revanche. 



É interessante lembrar o que a imprensa nos traz sobre os tribunais do crime. Aqueles pseudojulgamentos promovidos por criminosos. Vê-se que os criminosos se vingam. Levam em conta o dano que seus comparsas ou seus protegidos sofreram.  O resultado é sempre o mesmo:  a condenação e a morte. O que varia é a quantidade de dor que o condenado sofre antes de morrer. Amigos meus sem perceberem, inúmeras vezes defendem esta mesma “justiça”, a do tribunal do crime.  A diferença entre meus amigos e o tribunal do crime, é que aqueles são “cidadãos de bem” e estes são criminosos.



Creio que a pergunta que devemos fazer em relação ao encarceramento é a seguinte: É sempre necessário punir? Se sim, a pena sempre é variações e dosagens do encarceramento de corpos?



Qualquer pergunta sobre o porquê do encarceramento, deve partir da premissa básica de que, mesmo tendo um caráter retributivo e punitivo, a sanção carcerária tem que ter como objetivo a ressocialização. Afinal, quem comete crimes, um dia volta à sociedade. E, é claro, tem que voltar em condições mentais e físicas apropriadas para retomar sua liberdade sem recaídas. Ora, o ônus de ressocializar cabe a quem encarcerou, a quem discriminou a conduta que é considerada crime: o Estado! Ou, enfim, a sociedade.



Lembro de vários casos em que pais e mães esqueceram seus filhos bebês dentro dos seus carros. As crianças morreram em decorrência do calor dentro dos veículos.  A dor destes pais e mães em muito superaram a dor do encarceramento.  Prender seus corpos era nada se comparado com o sofrimento de suas almas. Neste caso, cadeia para quê? Ressocializar? Punir?



Também podemos nos referir a pessoas que furtam coisas gostosas do supermercado. Seja por fome, seja por simples desejo. Ou ainda o sujeito que furta um carro pela primeira vez. Nestes casos, prender para quê? Para ressocializar? Punir?



Podemos imaginar inúmeros casos que desautorizam a pena privativa de liberdade, pela sua inutilidade ou pelo agravamento do problema. Então, é perfeitamente possível relativizar o mito do encarceramento como solução única.



É possível defender filosoficamente o encarceramento de corpos como finalidade terapêutica ou como melhoria da sociedade?



Creio não ser possível. No máximo, a prisão é um mal necessário enquanto não encontramos nada melhor.  Encarcerar é irracional. No Brasil, então, é óbvio. 



Construir e manter presídios é caro. Melhor é construir escolas e hospitais.  Tanto é verdade que várias cidades pedem mais encarceramento, mas não querem presídios em seus quintais.  Querem escolas e as constroem. Querem presídios desde que bem longe.  Isto indica a percepção prática que a sociedade tem da irracionalidade do encarceramento.



A prisão no Brasil tem a função simbólica de silenciar. Os criminosos são postos embaixo do tapete. Ninguém quer vê-los. Ao contrário, melhor seria esquecê-los. E por que o desejo de desaparecimento? Por que as causas da criminalidade são duras demais para serem pensadas. Encarcera-se os corpos e junto as reflexões sobre as causas dos crimes.  A luta justa não é contra a criminalidade, mas contra suas causas.



As pessoas não gostam de refletir sobre este tema. Preferem serem dicotômicas: se é culpado; não é em nenhum grau inocente. Se é culpado será preso na esperança de nunca ser solto. Se é culpado uma vez, será bandido para sempre. Não é por acaso que somos um dos países que mais encarcera pessoas. Mesmo assim, ouvimos todo o dia que a impunidade é nosso mal maior!



Creio que a desigualdade social é o nosso mal maior.



Entre os extremos de presos e soltos, há uma miríade de possibilidades. Antes das celas, há o que chamamos de restrição de direitos. São limites impostos ao sujeito que cometeu o crime, em substituição a pena de encarceramento. Pode ser prestações pecuniárias, prestação de serviços à comunidade entre outras. São sanções de fato, pois suprimem ou restringem direitos do condenado. Não são brincadeiras! Primeiro o juiz fixa a pena restritiva de liberdade (prisão), para depois substituí-la. Veja que estas restrições não são pensadas para maximizar a dor de quem infringiu a lei. Na verdade, a restrição quer evitar a prisão (por ser sansão imoderado em vários casos) e quer salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos do réu e da vítima.



Para encerrar proponho que antes da satisfação da sanha punitiva e carcerária, resolvamos as questões sociais que predispõem as pessoas à violência. Da desigualdade à marginalização, da falta de escolas à violência familiar. A questão é social é bastante evidente. Só não vê quem prefere encarcerar para encerrar as pessoas e estes assuntos.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A importância da disputa ética entre os desejos e os interesses pessoais do julgador.


   


     

      Não é incomum as pessoas pensarem que o cientista é um sujeito objetivo ao observar os fenômenos. Algo como um peixe fora do aquário a observar seus irmãos lá dentro. O vidro do aquário seria suficiente para que o peixe alienígena pudesse observar sem sentimentos nem interpretações, o que ocorre no interior daquele ambiente.  E mais: quando contar o que viu e pesquisou, o senso comum acredita que a linguagem consegue expressar exatamente o que a mente do peixinho investigador captou.

     

      A distância entre os peixes do aquário e a mente do peixe que observa é enorme. A distância entre as conclusões mentais do peixe observador e a sua expressão na linguagem, é outra distância enorme. E por fim, do ouvido de quem ouve o relato até a imagem mental que se forma, há distancias planetárias! Estas distâncias são preenchidas pelas vivências e preconceitos de cada um. A objetividade plena não é possível.

     

      Podemos dizer que o observador faz parte do observado. Ele não pode deixar de ver a si mesmo quando vê o fenômeno. Seus conceitos já feitos em sua mente, e tão apreciados, são uma lente que transforma o visto.



A (auto) busca pela nitidez da visão do investigador faz parte do processo investigativo.

     

      Se o fenômeno em estudo for um crime, tudo é mais complexo.  Todo o crime já aconteceu, já morreu no tempo. O que vive ainda são as consequências. O que está ao alcance dos sentidos são objetos, documentos e testemunhas. Reflexos, portanto. O julgador, por consequência, faz perguntas ao passado. Quer que o que já se foi se apresente pela boca de quem viu e pela materialidade das provas do que já passou. 

     

      O que já passou deixa apenas vestígios e interpretações.

     

      A questão é que os vestígios e as interpretações estão sujeitos ao tempo social.  Tanto é verdade que não é possível julgar um crime passado, quando a lei já não reconhece mais o evento como crime. Inúmeras vezes o hoje absolve o ontem.  Só há crime quando alguém pergunta por ele e a sociedade o aponta.  O crime é uma construção social.  O mais interessante é que quem pergunta pelo crime, já tem ideia dele, já tem uma interpretação sobre o fenômeno. Só por isso pode perguntar por ele, só por isso pode reconhecê-lo. Não raro, o julgador pergunta pelo crime e a sociedade não o aponta, não o reconhece mais.  É o caso do conservador num ambiente liberal.

     

      O observador está presente no objeto observado. Eis a luta pela objetividade do julgador.

     

      Percebe-se que o julgador não é neutro. Ele é alguém que tem história, que se constituiu numa cultura. Entretanto, há salvaguardas processuais que o orientam e o mantém equidistante das partes. Mas não é, a equidistância, algo natural no ser humano. É preciso empenho e disciplina. Cabe ao julgador precavido se manter dentro das normas processuais.

     

      O magistrado que quer ser imparcial, busca nas provas uma certeza. A certeza de que fez o possível para interpretar os fatos com a objetividade possível, para se convencer sem se basear em favoritismos. O juiz faz o seu melhor para se manter equidistante das partes. Ele deve convencer os envolvidos na lide e também a coletividade. Convencer da sua genuína vontade de ser imparcial e justo.

     

      É uma questão de ser e parecer ser.

      

      Não concordo que o juiz se coloque acima das partes como órgão desinteressado. Entendo que sendo parte tanto quanto os réus o são, é um cidadão igual aos demais. Entretanto,  o Estado e a sociedade exigem do julgador mais do que exige dos demais.

     

      O juiz é um igual com poder/dever desigual.

     

      Não há juiz naturalmente imparcial, como se depreende dos parágrafos anteriores. O juiz que é ético e domina sua técnica, sabe-se em constante luta para se distanciar do fenômeno que julga. Quanto mais se aproxima afetivamente do caso, mais a luta se intensifica.  Imparcialidade significa manter esta luta. Portanto, não há juiz imparcial sem esforço. É uma luta. Nela não pode haver paz nem descanso.

     

      Percebe-se que a segurança jurídica se encontra nesta questão ética. Não está tão ligada assim ao resultado da demanda. Liga-se mais na confiança da sociedade no esforço do julgador em se manter imparcial. O julgador deverá transparecer seu esforço neste sentido.

     

      A sociedade que julga favoravelmente o julgador é uma sociedade saudável e confiante.

     

      A sociedade é feita de partes, de grupos, de interesses e preconceitos. Ela pode ser parcial e preconceituosa. O que não pode acontecer é ela perceber que é julgada por alguém que tenha comportamento similar ao seu. Ao cidadão é lícito e aceitável lutar por seus interesses egoísticos, e só o fará de forma segura se souber que o limite a esta sua luta é o juiz (sempre à procura da sua própria imparcialidade).

     

      Portanto, lembremos aos julgadores a importância da sua manifesta e evidente luta contra suas parcialidades.  Se por um lado não cabe afirmar que o juiz é inumano e absolutamente isento de preconceitos e afetos, por outro lado, é imperioso trazer à luz a importância da disputa ética entre os desejos e os interesses pessoais do julgador.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Pobre Estado, risível poder tão fraco que se limita apenas a prender corpos.







Imaginemos a seguinte situação. Em um quarto em nossa casa há um recipiente de vidro com uma fragrância muito boa e muito forte. O poder do seu conteúdo de exalar perfume é impressionante. Tu queres conter o perfume que já tomou conta da casa. Entretanto, para conter a fragrância só possuis o recurso de portas feitas de grades e de cercas de arame. É fácil imaginar o problema que se impõe. Com grades e cercas é possível impedir o acesso ao frasco e também impedir que ele saia do quarto, mas é totalmente impossível confinar o perfume. Os meios são inúteis para a finalidade a que tu te propões. Com grades e cercas prendemos o frasco, mas nunca o perfume. A casa vai continuar perfumada.  Os meios impedem os fins.



O Estado inúmeras vezes está diante de problema similar. Ou seja, pode prender corpos físicos, mas não as almas dos apenados. Estas continuam livres, apesar dos seus invólucros corporais estarem sob a tutela estatal. Nestes casos, o Estado pode pouco, muito pouco.  Eis o limite das prisões: elas prendem corpos apenas.  Como exemplo, entre tantos outros, temos Gandhi, Mandela e Martin Luther King. Prender corpos é o limite estatal. Pobre Estado, medíocre Estado.



Na metáfora do primeiro parágrafo, quero dizer que se o Estado quer impedir ideias com grades, torna-se uma instituição inútil enquanto meio para tal fim. Há almas que são maiores que seus corpos. Encarcerar estes não isola aquelas. Se uma pessoa é mais que seu invólucro corporal, se uma pessoa se torna uma ideia, não serão grades os instrumentos adequados para impedir a liberdade. Almas não podem ser presas.



Gradear o pote que contém o perfume, não impede a fragrância. Da mesma forma prender alguém por questões políticas não impede seus ideais de fluírem.  Com certeza, inúmeras vezes prender o continente volatiza ainda mais o conteúdo.



Pobre é o Estado e medíocre são seus agentes quando o corpo aprisionado se recusa a sair da cela, quando o calabouço mais exalta seu espírito e sua fala.  Ridícula é a situação de um judiciário quando mantém entre grades inúteis o que se exala pelo ar. É vexatório quando a politização do judiciário cria a situação fática em que manter na cela o corpo apenado, apenas aclara a própria incompetência estatal.



Eis o limite indiscutível: ao mísero Estado resta apenas a possibilidade de prender corpos nada podendo contra seus conteúdos, suas almas, seus ideais.



Incrível é o caso em que o preso ao querer se manter na cela, mais livre é.



Incrível é o caso em que ao querer manter o preso encarcerado, encarcera a si mesmo o judiciário. 



Quando a prisão é política, quando o medo é da voz e da ideia as grades são inúteis.



É imperioso soltar o corpo injustamente preso, pois esta alma sempre foi livre, nunca conheceu nem conhecerá limites físicos. Pobre Estado, risível poder tão fraco que se limita apenas a prender corpos.








quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A cooperação como condição mínima para conviver no liberalismo.






Diz-se que no liberalismo a liberdade é o princípio dominante. Nele as pessoas livres podem competir de maneira a progredirem. A tese é que a competição entre indivíduos ou entre empresas fundamenta o sucesso das nações.  A competição não é um mal em si mesmo, defendem os adeptos do liberalismo. Ao contrário, seria um estímulo à produtividade e à inventividade.  A prova está no sucesso mundial do capitalismo, ensinam. Por consequência o protecionismo estatal teria o efeito contrário: o acomodamento das pessoas, o desestímulo à competição entre as empresas (com o consequente declínio da qualidade dos produtos e o aumento de seus preços). Creem que a ausência da competição é o acomodamento dos entes produtivos.

Não é possível desprezar o papel da competição como incentivo à criatividade e à produtividade. Entretanto, também não é desprezível a seguinte contradição: se a liberdade é o valor máximo onde se valoriza a competição; as pessoas também devem ser livres para escolher não competir e para defender este seu ideal.

A liberdade proposta pelo liberalismo brasileiro impede a liberdade de escolha para ser não competitivo? Ou pune esta escolha com a miséria? Há espaço para os entes cooperativos?

Precisamos fazer algumas reflexões. Vou usar como exemplo a competição entre lutadores de arte marciais. Neste ambiente, a competição chega ao seu máximo. Entretanto, as regras que limitam o embate foram acordadas antes. Estas regras foram elaboradas em outro ambiente, o da cooperação. É provável que os organizadores dialogaram muito, buscaram ganhos e evitaram perdas recíprocas. Ajudaram-se uns aos outros para que o evento fosse possível. Por mais que houvesse interesses individuais, só cooperando entre si garantiriam a segurança dos lutadores, a existência da competição e a continuação do próprio evento. Os lutadores competem, mas os organizadores cooperaram entre si para a qualidade do embate. Não seria possível a competição sem a cooperação prévia. Na preparação, não importa se os motivos foram egoístas ou não. Ou cooperavam ou não haveria a competição segura nem ela se manteria. A condição de existir e se manter foi a cooperação.

Percebe-se que a competição pura e ilimitada gera antagonismo a tal ponto que ele destrói a própria competição. Então surge a violência, a ideologia do inimigo. Inimigos devem ser destruídos, mais que vencidos. Inclusive no antagonismo, as regras se existirem, serão ignoradas. Sem regras, no espaço do vale tudo, não como definir um vencedor sem ver alguém cair. Sem regras não há árbitro. Da competição à violência é apenas um pulo.

Percebe-se que a liberdade plena aliada a uma competição absoluta, é a fórmula do caos. É preciso encontrar uma limitação, um espaço para acordos e para o restabelecimento dos vencidos para que estes possam retornar à disputa (não podem ser definitivamente eliminados). Para limitar o conflito é preciso a coerção dos excessos, a limitação das desigualdades quando impeditivas e o arrefecimento dos desejos individuais pelo sucesso a todo custo. Percebe-se que para que seja possível a competição segura, é imperioso manter espaços iniciais de cooperativismo. Nestes espaços cabem inclusive, os que não querem competir. É preciso um locus de reflexão calma e cooperativa para que possamos organizar as sociedades. Neste lugar de debate regrado pelos princípios de humanidade, e pelo respeito pela dignidade de todos os seres vivos, haverá a negociação, o consenso, a política, a composição. Quero dizer que neste lugar não competitivo se pensa a competição e seus limites. A mentalidade liberal estará suspensa neste debate, pois é uma conselheira suspeita. Afinal, é o limite do próprio liberalismo que está em debate neste fórum cooperativo. Neste ambiente socializante se falará sobre os limites das liberdades, sobre as sanções aos excessos e sobre o preço a pagar pelas liberdades de competir. Inclusive, discutir-se-á a liberdade de não querer competir. Garantir-se-á lugar no mundo para os que não desejam competir nem desejam o lucro. Assim como no exemplo da luta, ninguém pode se machucar. Na competição econômica nenhum povo pode sofrer com a miséria. Haverá garantia de um mínimo de dignidade para todos nas regras do liberalismo, ou mesmo este sucumbirá na violência de todos contra todos.

Não há que se falar em exclusão, mas em seu inverso: a inclusão das diversas ideologias. A liberdade genuína está na convivência e nos fóruns de debates.

Portanto, as ideias cooperativas, os ecologistas, os feminismos, os homossexuais, as falas das minorias, os socialismos e os comunismos são bem vindos. A extinção destes atores sociais é a barbárie. Sem eles a competição seria plena e predatória. Nesta plenitude a violência proliferaria, a desordem civil cresceria, o estado repressor se agigantaria para refrear os excessos crescentes. E ninguém quer um Estado crescentemente repressor.

Conclui-se que o foco das políticas governamentais tem que ser o favorecimento dos espaços de cooperação. O apreço estatal deve ser pelas políticas que favoreçam as iniciativas de equalização das discrepâncias sociais. Estas iniciativas são o incentivo à qualificação da saúde pública, à educação, à oferta de emprego, à moradia e ao investimento político na redução das desigualdades sociais. Só assim haverá as condições mínimas para a cooperação. Sem ela a opção pela competição é predatória, desleal e autodestrutiva.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A ignorância e a barbárie estão querendo assumir os espaços jurídicos.



      Desde sempre a humanidade teve fetiche pelo corpo. Desde sempre a história nos mostra a preocupação com os fenótipos.  Os corpos sempre foram avaliados como belos ou não. Se belos, tinham algumas vantagens sobre os demais.  Corpos de boa aparência (de acordo com sua época) eram bem-vindos e desejáveis.  “A primeira impressão é a que conta”; minha avó já dizia.
     
      Os corpos ditos feios eram/são malvistos.
     
      Cesare Lombroso (1835 – 1909) ensinava que de acordo com a aparência do indivíduo, poderíamos suspeitar se era um criminoso.  Os ocupantes dos presídios parecem confirmar sua tese, porque os fenótipos se assemelham. Corpos da mesma etnia parecem seguir o roteiro de se tornarem criminosos.  Afinal, sempre se prende os negros, os pobres, os menos escolarizados.
     
      O fascínio pelo corpo é antiquíssimo. A tortura para saber a verdade ou para inibir atitudes. Os corpos das mulheres queimadas vivas como bruxas. O açoite dos ímpios. A morte por apedrejamento das pecadoras. O estupro das mulheres dos vencidos nas guerras. A crucificação dos criminosos. E, finalmente, as prisões.
     
      Os calabouços são exemplos clássicos, criados para colocar os indesejáveis. No início, encarcerava-se para guardar as pessoas até serem supliciadas ou enforcadas. Só depois passaram a ser o que são hoje: locais de cumprimento de pena.  A construção de mais cadeias atualmente é mais desejada que a criação de escolas de vanguarda. Talvez porque as escolas progressistas trabalhem o espírito (portanto, fogem do fetiche do corpo).
     
      Encontramos facilmente adultos dizendo que bater em corpos de crianças é mais efetivo que educá-las pela (e para a) palavra. Dizem que as crianças não entendem o que se diz, mas entendem perfeitamente o chinelo na mão do adulto agressor.  Alardeiam que é melhor apanhar dos pais na infância do que da polícia quando adultos. Não entendem que nem os pais, nem a polícia deve bater!
     
      Sempre o fetiche pelo corpo! Acreditam que agredi-lo, encarcera-lo, atingi-lo é mais fácil e eficiente do que falar com o outro, do que ouvir e aprender.  Castigar os corpos, pensam, é mais fácil e menos trabalhoso que educar os espíritos.
     
      Corpos estão à distância da mão e da chibata. Já os espíritos estão ao alcance da inteligência. Há que se escolher.  
     
      Entender o Código Penal, o Código de Processo Penal e a lei de execução penal como a solução primeira para a violência que acomete o nosso país, é o fetiche pelo corpo tentando assumir ares jurídicos.
     
      Prender mais pessoas por mais tempo, eis a novidade (tão antiga) que se apresenta hoje. Prender os corpos que delinquem. Algemar a pessoa que é abordada pela autoridade policial. Reduzir os direitos e as garantias fundamentais que estes corpos possuem. Urge castiga-los, demonizá-los e fazê-los sofrer.  O Direito Penal passa a ser a primeira razão (e não a ultima ratio).
     
      Por não conseguirmos estabelecer diálogos éticos entre as consciências, encarceramos os corpos insubmissos.
     
      Dizem os amantes deste fetiche: menos universidades, mais presídios. Melhor criança trabalhando do que só estudando.  Castigar a criança como faziam nossos avós é mais eficiente que ficar no blá blá blá dos psicologismos. Trabalhos corporais forçados são melhores do que uma prisão de boa qualidade. Uma prisão humanizada será tão boa que compensará o crime ao invés de reprimi-lo. Estas falas ratificam o desejo pelo corpo e por seu suplício.
     
      O suplício vem através da falta de empatia pelos corpos aprisionados. Estes são esquecidos. Ficam depositados e mantidos por um ente invisível: o Estado. Lá sofrem fora das vistas dos demais. Não é falado, mas sabe-se: a finalidade do depósito de corpos humanos nas prisões é providenciar o sofrimento deles.
     
      Estamos desumanizados e desumanizamos.  A cultura do ódio e da intolerância não se esconde mais. A ignorância e a barbárie estão querendo assumir os espaços jurídicos.
     
      Criou-se a falsa crença de que se alguém pratica a violência, a violência maior praticada nas cadeias a impedirá de reincidir no crime. Como se a violência maior impedisse a menor. Faz sentido? Claro que não.
     
      Menos coliseus da Roma clássica e mais escolas. Menos prisões e mais livros. Mais liberdade e menos preconceitos. Mais amor e menos flagelos corporais.