A pergunta se o mundo virtual é real ou não, é uma questão possível. Entretanto, as respostas são estranháveis. Alguém poderá argumentar: assim como o sonho parece ser real e não é; da mesma forma se comporta o ciberespaço. Sob esta ótica, o espaço virtual é o lugar do parecer ser sem ser de fato. Será?
Aquilo que é real, dizem todos, é o que nos atinge faticamente. Quem duvidaria de um tapa no rosto? Ele é real por que nos atinge na face, por que dói, por que tem consequências na nossa vida, a ponto de muda-la para sempre.
Para contrariar esta tese – de ser real apenas o que tem existência no mundo físico -, pergunto: e o amor? Nunca foi visto por aí, mas causa tanta devastação! E a fé que não existe fora das pessoas, mas pode até gerar o terrorismo matando-as? Existem coisas mais reais que a devastação e a morte? Não!
Enfim, definir o real não é coisa simples. Ainda bem que não é este o objetivo deste texto.
O virtual é algo que existe nos meios não biológicos e construídos pelas pessoas. Vive encarcerado dentro das fibras óticas e das máquinas inteligentes. Entretanto, causa estragos na vida real da mesma forma que o amor nos avassala. É fato: independentemente do que pensamos sobre o ciberespaço, ele modifica a realidade (offline) todos os dias. Ele transforma e é transformado pelas nossas ações numa dialética online x offline. Um espaço não vive sem o outro.
O virtual é real, pois quando nele agimos sua reação se faz visível no mundo offline. Como?
Imaginemos que todos os servidores dos bancos explodam. Todos no mundo! Podem imaginar o estrago no nosso dia a dia? Quantas mortes virão deste fenômeno virtual? O dinheiro online estava dentro das máquinas e se foi para sempre! O caos! Há mais dinheiro no ciberespaço que em papel no mundo.
O meme está nessa linha. Ele é real/irreal. Habita dois mundos. É um parasita. Parasita por que vive no espaço virtual, mas depende de nossa constante atenção para sobreviver. Precisa de nós para se multiplicar. Nossos cliques são seu sucesso.
Às vezes é um bom parasita, outras vezes uma figura bem deletéria.
Ele é bom quando leva em seu bojo um interesse público, por exemplo. Talvez uma campanha a favor das vacinas contra o Corona vírus. Por outro lado, ele é muito mau quando destrói reputações. Melhor dizendo, as pessoas é que são más, pois o meme transporta o que mandam transportar.
O sucesso dos memes é que eles trafegam nos mares da comicidade, do humor. São engraçados, destoantes, atordoantes e, na sequência, risíveis.
O humor vive das (des)combinações estravagantes entre informações. Destas colisões de sentidos, de textos e contextos, surge o riso (ou o sorrir, a depender do impacto em nós). O destinatário da graça é quem decodifica os significados que colidem na piada. É o destinatário quem encontra o derradeiro sentido: aquele sentido que faz a piada.
Sem este trio não há piada: o piadista, o conteúdo contraditório e o receptor (que terá que rir/sorrir).
No meme virtual ocorre a tríade do parágrafo acima: o construtor do meme (o piadista), o conteúdo dentro dele (a mensagem risível) e o receptor/decodificador que o vê/lê/ouve pelo seu computador.
Imaginemos uma charge com as seguintes figuras e contexto: um cheff de cozinha famoso. Ele segura uma faca afiada ensinando como cortar carnes de modo elegante, refinado e eficiente. Mas, a plateia não é composta por pessoas comuns. Quem assiste atentamente são os zumbis do seriado Walking Dead. Os zumbis estão imaginando como usarão a técnica no próprio professor da arte de cortar carnes.
A graça desta charge imaginada por nós, está nas contradições dos significados e intenções nela apresentados. Caso viralize, será um meme. (Quererei meus direitos autorais!)
Há o humor que é bom e aquele que é ruim, como já indiquei parágrafos acima. Uma graça homofóbica, por exemplo, não pode produzir riso, mas desprezo.
Por que devo desprezar se a estrutura da graça está ali em sua plenitude? Respondo.
Tanto o humor quando o meme que nele navega, trazem informações. São discursos. E não há inocência aqui. A informação que tende a fomentar a homofobia, não está ali por acaso. E o riso/sorrir que dali vier ratifica algo monstruoso (a homofobia). Pior ainda é o clique maléfico. Ele multiplicará/ratificará esta informação danosa à sociedade.
Os memes do mal viralizam porque primeiro parasitam as consciências más.
O meme, insisto, é um discurso. É uma fala que precisa de pessoas que a ouçam e a repliquem. Seduzir as pessoas por este meio não é muito difícil. O meme é engraçado. A graça está no seu plurissentido. Ele é um caleidoscópio que nos faz rir pelo seu colorido contraditório e oscilante. Mas, insisto, só fará sucesso se houver plateia no seu espetáculo. Esta plateia não bate palmas: ela dá cliques replicando o show, passando adiante a informação. Como eu disse, nisso não há inocência, há responsabilidades. Pode até não haver dolo, mas há responsabilidade.
Lá no início do texto, eu afirmei que o mundo virtual é de certa forma real. Isso por que o que acontece lá, reflete fisicamente aqui. Lembram?
Por consequência, uma ofensa virtual é uma ofensa real. Está no mundo dos fatos. E se nele está, poderá ferir um bem jurídico tutelado.
Os incautos dirão que o meme só agride os mal-humorados. E mais, insistirão: temos o direito de nos expressar livremente. O que concordo em parte. Entretanto, posso dizer que todo o direito se esvai quando há abuso.
Há até quem diga que se houve abuso de um direito em um contexto, é por que neste contexto nunca foi um direito: houve apenas o abuso, a ilegalidade.
Causar dano à dignidade humana baseado na pretensa liberdade de expressão, é um abuso evidente. O meme é um eficaz meio de agredir pessoas. Portanto, há que criarmos limites. Na verdade, já há limites legais.
Para reduzir a velocidade e a virulência dos memes, temos que vacinar os humanos. Eles são os primeiros hospedeiros destes parasitas.
Há vacinas legais sim, mesmo que sejam ainda insuficientes!
A Constituição Federal já abre seus artigos elencando como fundamento da República, a dignidade da pessoa humana. Eis a primeira dose da vacina. Mas há varias doses. Temos no Código Civil os artigos 11 ao 21 e o 187. Há ainda o Código penal nos artigos 138 ao 140.
Só para relembrar: o que ocorre no mundo virtual tem reações no mundo real. Se tu és um internauta do mal, cuidado com as vacinas.
O dano de uma imagem engraçada pode ser terrível. Afinal, pode ser extremamente ofensiva. Mas não é só isso. A gracinha virtual corre o risco de manter viva uma ferida que deveria ser esquecida. Veja que pode se transformar em uma afronta ao que chamamos de direito ao esquecimento.
Imaginemos que Paulo cometeu uma imprudência no trânsito. Houve vítimas fatais. Paulo cumpriu pena de forma disciplinada. Inclusive cursou aulas de mecânica durante seu encarceramento. Agora está livre, cumpriu exemplarmente sua pena.
Vai trabalhar em uma empresa grande. Vida nova. Acontece que a família de uma das vítimas, descobre que Paulo poderá voltar a vida normal. Então, cria um meme relembrando o ocorrido de forma negativa para o ex-detento. O meme viraliza. A empresa então não o contrata. E várias outras empresas não o contratam.
Percebam que a punição legal acabou, mas o justiçamento virtual continua. Não é possível com o meme esquecer o erro de Paulo, mesmo já tendo sido punido pelo Estado. Lembremos que não há no Brasil punição perpétua.
Por quanto tempo Paulo será punido?
Pelo tempo do meme? Há que se conter o excesso. O estado terá que ajudar Paulo a garantir seu direito ao esquecimento, o esquecimento do seu erro. Restará a ele buscar o judiciário.
O mundo virtual e os memes são perigosos para as pessoas. Principalmente para as mais frágeis ou fragilizadas por algum acontecimento em suas vidas. Portanto, a cada clique em coisas engraçadas, determinamos o tanto que somos responsáveis pelo mal que dali vier. Do like ao compartilhamento, afetamos a realidade dos internautas. Não somos inocentes em nossas escolhas. Tenhamos por limite se não a fraternidade, ao menos a certeza que os limites legais um dia vão nos alcançar.
Fica a dica.