Imaginemos alguém febril e a família passa a lutar contra a temperatura alta. Em determinado momento a febre diminui e desaparece. Mas logo retorna. Pior: retorna mais alta e mais grave. A luta continua até que levam o doente já enfraquecido ao médico. Identificada a causa da febre, ela é finalmente debelada com sucesso.
Moral da história: sem saber a causa, é difícil lidar com os efeitos sintomáticos.
O preconceito metaforicamente é uma febre que atormenta a sociedade. As fezes o febril somos nós mesmos. Outras vezes são as outras pessoas que febris deliram.
Nem sempre estamos conscientes dos nossos sintomas. Inúmeras vezes é preciso que alguém nos diga, que alguém nos ajude a aferir nossa temperatura, pois sozinhos já não conseguimos.
Se o preconceito é como a febre, qual seria a doença? Existirá algo antes do preconceito que seja uma das suas principais causas?
Percebamos que antes de valorarmos como bom ou ruim o que nos rodeia, algumas crenças anteriores nos são impostas. Um exemplo clássico (e bem desgastado) é a boneca Barbie. Há anos ela enfia garganta a baixo o que devemos crer que seja um bonito corpo de mulher. As primeiras pessoas que tem acesso a simbologia desta boneca são justamente as crianças, preferencialmente as meninas. Evidentemente que a boneca está em um contexto que garante esta crença pela repetição, pelo reforço. Desde desenhos infantis em que as heroínas em geral são belas (corpos de Barbie) quanto a indústria de remédios para o emagrecimento.
As clínicas psicológicas e de cirurgias plásticas agradecem.
(...) Portanto, podem ser chamadas de crença as convicções científicas tanto quanto as confissões religiosas, o reconhecimento de um princípio evidente ou de uma demonstração, bem como a aceitação de um preconceito ou de uma superstição. Mas não se pode chamar de crença a dúvida, que suspende a adesão à validade de uma noção, nem a opinião, no caso de excluir as condições necessárias para uma adesão desse gênero. (...) (negrito nosso) Abbagnano, Nicola, Dicionário de Filosofia. São Paulo - Editora Martins Fontes. |
Desculpem-me, este exemplo é conhecido demais. Talvez até superado!! Mas, sigamos.
Quando imaginamos uma pessoa de sucesso, o que vem a nossa mente antes de valorarmos como bom ou ruim este status? Imaginamos mulheres de salto alto e homens de terno. Claro, sujeitos sem problemas financeiros. Nem doentes. Nem feios. Nas nossas crenças, são pessoas naturalmente bem-sucedidas e educadas. O que destoa desta imagem entendemos como possível, mas uma exceção à regra. É possível que alguém imagine como exemplo de sucesso um jogador de futebol de chinelos Havaianas na beira da piscina, de sunga, bebendo cerveja com uma bela (Barbie) mulher ao seu lado.
São apenas exemplos. Portanto, imprecisos. Mas têm a vantagem de serem didáticos. Apontam para uma crença anterior a realidade.
Há as crenças negativas, pejorativas também. Imaginemos um bicheiro. O que vem à nossa cabeça? Ocorre uma espécie de generalização necessária. Quase uma premonição. E o mais interessante: é muito difícil mudar estas crenças! São pesadas, densas. São antigas. São reificadas pela repetição diária delas nos discursos e nas imagens dos comerciais. Estão nas novelas, nos filmes, nas piadas. Estão na política, nas escolas e nas universidades.
Simplesmente estão por aí!
Podemos chamar estas crenças padronizadas de estereótipos. O estereótipo é a fé simplista e simplificante da realidade. O estereótipo pode capturar a multiplicidade da vida social reduzindo o múltiplo a uma unidade só. Impõe-se uma imagem empobrecida e facilmente aceita. Então é permitido chamar as pessoas das incontáveis comunidades por um nome só: favelados. Todas estas pessoas são reduzidas a uma representação só.
Estereótipos: São construções mentais falsas, imagens e ideias de conteúdo alógico, que estabelecem critérios socialmente falsificados. Os estereótipos baseiam-se em características não comprovadas e não demonstradas, atribuídas a pessoas, a coisas e a situações sociais, mas que, na realidade, não existem. Glossário Lakatos, Eva Maria Lakatos, Marina de Andrade Marconi. Sociologia Geral– São Paulo. Editora Atlas, 2013. |
De maneira similar, podemos dizer que todo o político é ladrão. Neste caso, não há políticos ou políticas (no plural): tudo é uma coisa só. Também a expressão ladrão passa a ser uma expressão unívoca.
Agora é só usar estas expressões estereotipadas na esperança de nos fazer entender em qualquer lugar. Não há mais ambiguidades! Mágica!
Ao nascermos, antes de fazermos juízos morais sobre a realidade, somos submergidos nos estereótipos. Isso sempre é ruim? Nem sempre! Para que possamos agir sem destoar em demasia do esperado em nossa cultura, é preciso antever algumas realidades ainda não vividas. Se sou convidado a uma festa em que me avisam que será chique, mesmo se nunca fui a uma festa destas, antevejo o que poderá ser. Logo, com certeza, não irei de bermuda e chinelos garantindo uma aceitação mínima. Tudo a ver com a socialização.
Entretanto, caso não consigamos mais refletir sobre os estereótipos, a coisa pode ficar feia. Sem refletir, cairemos na feiura do preconceito.
Caso minha fé no estereótipo X seja inquestionável para mim ou para minha comunidade, passo a agir fora da realidade. Seguirei a fôrma das crenças que sustento diariamente. Está nascendo o preconceito!
Preconceito: Atitude social que surge em condições de conflito, com a finalidade de auxiliar a manutenção do status ameaçado. Grifo nosso. Glossário: Sociologia geral. Lakatos, Eva Maria Lakatos, Marina de Andrade Marconi – São Paulo. Editora Atlas, 2013. |
O preconceito é o efeito de algo. A causa pode ser o estereótipo que nos enforma.
Quando você passa a julgar pessoas e comunidades sem conhece-las bem, está expressando uma opinião feita antes (antes de conhecer a realidade). Quanto mais força e poder de controle você tem, mais perigosa será esta opinião. Quanto mais perigosa for, mais reflexão crítica merecerá.
Portanto, não me refiro a uma mera opinião sobre o melhor time de futebol. Estamos nos referindo as crenças morais que querem modificar os comportamentos dos grupos sociais. Inúmeras vezes provocando sofrimento.
Quem nos autorizou a provocar sofrimento?
Quando o meu grupo (ou eu mesmo) quer provocar mudanças através de hostilidades, de humilhações e até da violência, alguma coisa está errada. Em nome dos estereótipos que venero, estou julgando e condenando outras pessoas.
Quem sou eu na fila do pão para julgar?
Do estereótipo ao preconceito. Este segue aquele. O preconceito é facilitador. Ele dispensa o (re)pensar sobre nossos julgamentos: estes já vêm semiprontos! E geralmente são julgamentos que humilham. Saímos por aí carimbando, rotulando pessoas e comunidades inteiras. Agimos como nas piadas de malucos no hospício: achamos que estamos certos e o mundo errado. Já dizia o Raul:
Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Revolucionário é criticar os estereótipos. Paliativo é criticar os preconceitos. O Estereótipo é a fonte. E é de difícil questionamento. Mais difícil ainda é modifica-lo. Se o modifico, mil preconceitos desaparecerão.
Caso se modificasse o modelo capitalista de “pessoa de sucesso”, quantos preconceitos desapareceriam? Caso modicássemos os modelos escravagistas impostos historicamente nas relações afetivas e de trabalho, quantas mudanças nos nossos preconceitos ocorreriam? Incontáveis!
Mais eficiente é questionarmos nossas crenças imobilizadas do que ficarmos discutindo apenas os efeitos delas.
A dica que aqui deixo é a seguinte: tenhamos coragem e questionemos os estereótipos. Depois os preconceitos. Vai doer muito em nós e na sociedade. É como um remédio de gosto ruim, mas que ataca frontalmente a doença.