Vamos imaginar um experimento científico macabro.
Cria-se um novo Coliseu e lá são colocadas inúmeras pessoas. Homens e mulheres. Todos aproximadamente com a mesma idade. Todos saudáveis e inteligentes. Tudo devidamente testado de maneira a se evitar erros.
Também é providenciado uma equidade, a mais perfeita possível. Igualdade no número de homens e mulheres. Todos fisicamente semelhantes (força, peso e destreza motora). O mesmo para a escolaridade.
Para garantir a manutenção da equidade se alguma diferença de potencial surgir, será logo providenciada uma maneira de reequilibrar as coisas. De treinamentos em termos de conhecimentos técnicos até equipamentos para equilibrar a força física.
A lógica fundamental é a manutenção da igualdade de condições e oportunidades na execução do que for exigido dos participantes.
Os participantes foram escolhidos entre a classe média. Sujeitos sem problemas familiares perceptíveis. Todos crentes em algum tipo de fé religiosa. Nenhum antecedente criminal. Nenhum vestígio de patologias mentais. “Cidadãos de bem”.
Em um primeiro momento, foi explicado qual será o prêmio para aqueles que obtiverem sucesso no experimento. O prêmio será uma boa soma em dinheiro e um belo imóvel para cada vencedor (em qualquer lugar do mundo). Poderão levar a pessoa amada. Ganharão uma pensão vitalícia bem generosa. Também, dentro do possível e da normalidade ética, será satisfeito além do já prometido, um desejo qualquer que os vencedores solicitarem. Os prêmios devem ser muito motivadores.
Dá para imaginar o rebuliço que estas promessas provocaram nos sujeitos do experimento. A ideia é esta mesma, atiçar ao máximo a vontade de vencer.
Os princípios que orientam o jogo são poucos. Todos escolherão em assembleia quais serão as disputas (e até poderão criá-las) que selecionarão os vencedores. Todos escolherão os critérios para avaliar o desempenho.
Na verdade, todos usufruirão de altas doses de liberdades. São bastante livres para escolher seus limites.
O liberalismo como fundamento.
Os organizadores impõe apenas cinco regras inquestionáveis:
1) Que se mantenha o respeito a igualdade de oportunidade,
2) Que havendo empate, a atividade é anulada (sem poder ser refeita),
3) Que apenas dez por cento dos participantes podem ser vencedores,
4) Que as demais regras (as criadas pelos participantes) podem ser mudadas a qualquer tempo em assembleia,
5) Que em hipótese alguma as benesses dos vencedores serão por eles distribuídas igualmente entre os demais. Distribuidas até podem ser, mas nunca de maneira igualitária. Portanto, ao criarem as regras do jogo, podem seduzir os participantes comprando o apoio (com promessas de recompensas futuras).
Resumindo: muitos competidores igualados com um mínimo de vencedores.
Muita procura x pouquíssima oferta.
Lembrando que tudo neste texto é imaginação do autor, autorizo-me a continuar imaginando.
Percebamos que sendo muito livres para criarem as atividades seletivas/competitivas, terão muita dificuldade em escolhe-las. Todos são iguais com poderes iguais para decidir. Não há subordinados. Por consequência, terão que escolher os organizadores das competições. Então, de um problema, surgiram vários.
Terão que criar uma forma de organização hierárquica. O que faz surgir outra questão: quem serão os organizadores? Quais os critérios de escolha? E por fim, como evitar que os organizadores tenham (ou logo criem) alguma vantagem em relação aos demais competidores? Haverá punições? Quem as aplicará?
Como confiar se os prêmios são tão desejáveis?
A liberdade e o interesse trouxeram consequências para a manutenção da equidade. Há que ser cauteloso.
Manter a igualdade tem efeitos colaterais: as discussões, os desafetos e os rancores estão em alta.
Quando alguém cedeu, alguém prevaleceu.
Talvez a partir destes eventos a primeira (e principal) regra já foi quebrada: a da isonomia. Percebamos que, se há competição pelo que é escasso, a paridade de armas fica totalmente comprometida.
A igualdade é um problema quando os bens são escassos.
No início das atividades coletivas, tudo parecia ir bem. Até que a frustração aumentou. Afinal, a regra máxima da igualdade se tornou um estorvo. Cada empate era terrível. Tinham que pensar outra atividade, pois era proibido repetir a mesma nestes casos. Era cansativo e, de certa forma, oneroso. Gastava-se tempo e energia.
A regra da paridade absoluta se mostrou insuportável na competição.
A todo momento um dos participantes solicitava algo extra, algum auxilio, pois acreditava estar em desvantagem. Por outro lado, não era incomum outra pessoa alegar que outras tantas conseguiram de alguma forma obter alguma vantagem.
O que faz surgir mais perguntas/problemas.
Quem decidirá estas questões? Como decidir sem quebrar a regra de ouro da paridade? Mais tempo e energia gastos. A frustração aumenta, pois há a suspeita de má-fé e tentativa de manipulação.
O prêmio prometido é sedutor demais.
Os organizadores externos da testagem, de tempos em tempos, pedem para todos descansarem. Nestes períodos, falam sobre as vantagens das benesses prometidas. Insinuam que até pode ter prêmios extras, afinal, estão se esforçando além do esperado. Aproveitam estes momentos para exaltar as virtudes da competição, da meritocracia real adquirida pelo esforço próprio entre iguais.
Relembram aos competidores que sempre haverá os melhores mesmo entre os melhores.
Consigo até imaginar os competidores sendo cada vez mais agressivos e exigentes nas provas. Consigo quase sentir a incivilidade aumentando. Quase vejo as várias artimanhas sendo tentadas para quebrar a igualdade. Consigo prever o grupo criando regras para ludibriar as cinco normas fundamentais da testagem. Imagino as sabotagens, as discussões intermináveis, as frustrações explodindo. O estresse chegará a tal ponto que a testagem será interrompida para manter a sanidade dos participantes.
O leitor é convidado a continuar imaginando esta situação.
Entretanto, algumas coisas já podemos perceber nesta imaginação com finalidade pedagógica.
A igualdade não combina com a escassez. A paridade de armas é infrutífera no ambiente competitivo. A isonomia é fator desagregador onde há a luta insuflada por prêmios excludentes.
O que podemos concluir do que acabamos de imaginar?
Podemos concluir que a igualdade só é compatível com a repartição justa das benesses sociais. A fraternidade é inversamente proporcional a competição. A cooperação na igualdade só é possível sem o estímulo à cobiça ou a satisfação de interesses individuais. E por último, quanto mais a competição é estimulada num ambiente de escassez de benesses, tanto mais a hierarquia e a coerção se tornam necessários.
Afinal, há que se gerenciar fortemente os conflitos implícitos a escassez.
Podemos agora olhar a nossa volta: o mundo real competitivo, liberal, escasso em benesses sociais, excludente, hierárquico e cruel. Onde haverá espaço para o máximo de igualdade que nossa humanidade irrepetível permite? É para pensar.
Fica a dica.