Imagina fortemente a situação que vou descrever.
Tu estás na rua quando és assaltado por uma fulminante
amnésia. Não sabes mais quem és, nem o que fazes para sobreviver. Muito menos
tua história de vida! Percebes que tuas posses reais são apenas tuas roupas e
pertences pessoais.
O fato é o seguinte: quem tu és moralmente, é exatamente o
que pensas e sentes neste exato momento.
Podes até conjecturar a possibilidade de teres outras
posses ou outras características de personalidade anteriores, mas serão apenas
conjecturas (enquanto durar a amnésia). Se o possuis o carro que está a teu
lado, não tens acesso. Se tens contas em bancos, não tens nem ideia disso. No
teu bolso há apenas trocados. Não tens documentos.
Portanto, és exatamente o que tu portas, pensas e sentes
nesse momento. És totalmente presente. Sem passado, não podes imaginar um
futuro!
Sentes fome. Vais até uma lancheira. Ficas na porta e não
entras. Percebes que és incapaz de entrar sem ter dinheiro para comprar o
lanche. Não podes explicar este sentimento, o porquê, pois não tens história. Olhas
as pessoas inocentes comendo seus lanches de forma distraída. Fácil furtar-lhes
o alimento. Entretanto, uma força interna e inexplicável, misteriosa, impede-te
disso.
Percebes que, de forma automatizada, dás licença para os
mais idosos passarem. Tens o cuidado instintivo de não colidir com os demais
transeuntes e se o faz, pedes desculpas sem refletires. Sorris para uma criança
e sentes pena de um pedinte na rua. Dás a ele teus únicos trocados. Uma moça
derruba um pacote pequeno e tu junta-o do chão e o entrega num ato reflexo. De
onde vêm essas ações reflexas?
Então tu sentas numa praça já cansado. Observas um cidadão
lendo um jornal. As manchetes te trazem desconforto, pois falam de corrupção e
violência. Entretanto, admira a vestimenta do homem que lê. As cores combinam.
Usa gravata. Acha-o uma pessoa chique. Então olhas para ti mesmo. Também estás
vestido de forma elegante. Sapatos impecáveis. Roupas novas. Sentes que
entendes todas as manchetes do jornal, mesmo as mais complexas sobre economia.
Tens opinião pronta sobre tudo o que lês. Percebes que podes opinar com
coerência sobre os temas tratados. Ouve-te mentalmente criticar as mazelas
sociais e a corrupção. Serias, por consequência, uma pessoa estudada e honesta?
Tudo sugere que sim. As coisas que pensas e que sentes são pistas sempre atuais.
Forças a memória para te lembrares da tua identidade. Como
não lembras, percebes uma grande verdade: somos exatamente o que pensamos, sentimos
e portamos nesse momento.
A verdade é filosófica e fatal: tu és aquilo que portas,
sentes e compreendes do mundo no exato momento em que estás agindo/reagindo nele.
O ontem não existe de forma consciente quando estamos em ação. Não importa
títulos ou posses. Mesmo com a memória
apagada, se és um mau caráter, assim continuarás sendo. Se és um obtuso, assim continuarás.
Se fores amoroso, amarás. Se fores odiento, odiarás. Simples assim. A amnésia
não pode disfarçar o que és. Ao contrário, o esquecimento salientará tua essência.
Não importa o que dizes que és. Muito menos os certificados
que afirmam tuas qualidades. Quando tiveres de agir, no segundo exato da
necessidade da ação, agirás conforme tua essência construída no tempo, mas
sempre atualizada. Na ação tua essência será visível. As justificativas são
sempre a posteriori.
A pergunta do sujeito com amnésia se mantém: quem sou? Para
responder, os fatos:
Mesmo com fome, não furtaste. Na rua, procuraste não bater
em ninguém. Foste gentil. Deste passagem aos mais velhos. Pediste desculpas. Sorriste
para crianças. Tiveste pena das pessoas desvalidas e, mesmo com fome, doaste
teus últimos trocados. Devolveste o que não te pertencias. Admiraste uma pessoa
de bom gosto no vestir. Também tuas vestimentas são de bom gosto. Interpretaste
bem as notícias do jornal. Fizeste juízo moral negativo em relação às
imoralidades sociais. São pistas reais, materiais. Pistas evidentes.
Estas são tuas verdades. Não importa outras coisas: só os
fatos. Agora podes saber quem és. Saberás melhor agora do que sabias antes da
amnésia!
Tu és sujeito honesto e gentil. Amoroso com crianças e
idosos. És uma pessoa sensível às desigualdades sociais. Tens bom gosto e és
bem informado. Concluo isso das tuas ações. Não preciso saber tua história de
vida.
Após esse exercício de imaginação, podemos concluir que nós
somos apenas o que possuímos junto a nós, o que sentimos e como agimos. O resto
é o resto. Simples assim.