terça-feira, 1 de maio de 2018

Sobre os bens públicos


                     


                      

CLASSIFICAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS




Para possamos trabalhar o tema bens públicos, cumpre que iniciemos pelo conceito. De certa forma parece simples. Seria bem público aquele que não pertence a particulares. Percebemos isso no Artigo 98 do Código civil:  São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem.

Entretanto, tentar classificar por exclusão, não é suficiente. De maneira geral, os dicionários definem “público” como aquilo que pertence ao povo ou ainda aquilo que tem interesse público e mais, pode referir-se ao que pertence ao governo. Encontramos boas dicas aqui. Os bens públicos podem ser coisas físicas ou intelectuais. Podem ser móveis, imóveis e até animais (semoventes). Estes bens possuem características especiais: impenhorabilidade, não onerabilidade e inalienabilidade relativa. Excetuando-se os bens das entidades paraestatais (como as empresas públicas e sociedades de economia mista).

          Para que fique clara a distinção, elencamos o artigo 44 do Código Civil, que define as pessoas jurídicas de direito privado.  São elas: as associações, as fundações, as entidades, as organizações religiosas, os partidos políticos e as empresas individuais de responsabilidade limitada.

Não podemos esquecer que, em determinados casos, há bens particulares que servem ao interesse público tendo, portanto, as mesmas características de bens públicos.  O artigo 20 da Constituição Federal amplia esses bens, inserindo o solo, o espaço aéreo, o mar territorial e etc. Nesse caso, entenda-se bem público no sentido de bem protegido pelo estado. 

Bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de direito público, isto é, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Púbico (estas últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem) , bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, esteja, afetados à prestação de um serviço público.[1]



Classificação:

Esses bens podem ser classificados. Para isso leva-se em conta três aspectos: titularidade, destinação e disponibilidade. Isso porque existem bens dos Entes Federativos, como as terras devolutas, bens de uso especial e uso dominial. Todos são bens públicos e nacionais, mas podem ser federais, estaduais ou municipais. Ainda podem pertencer a autarquias, fundações ou a paraestatais. Pertencem cada um a entidade pública que os adquiriu.

Quanto a destinação, podemos classificar os bens públicos em três categorias. Vejamos ipsis litteris o artigo 99 do Código Civil:

Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias; 
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades. 


Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado. 

Veja que o item I são os bens de amplo acesso público. Já o item II, bem mais restrito que o primeiro, não estão disponíveis ao público indiscriminadamente. Em princípio os rios, as ruas e as praças públicas estão disponíveis a quaisquer pessoas a qualquer tempo. Por isso se enquadram no uso comum do povo (item I). A viatura de polícia é um bem público, a arma do policial também. Entretanto, são exclusivos da administração pública. Indisponíveis ao povo, portanto (item II).  Imaginemos um prédio público desativado. Supondo que não há interesse da administração em utilizá-lo. Não tendo destinação comum ou especial, ele poderá ser vendido, pois são patrimônio da pessoa jurídica de direito público, e nesse caso, está disponível pois está sem serventia. (item III)

Em relação aos bens dominicais é possível afirmar:

(...) São os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados nem ao uso comum, nem ao uso especial, tais os terrenos ou terras em geral, sobre os quais tem senhoria, à modo de qualquer proprietário, ou que, do mesmo modo, lhe assistam em conta de direito pessoal. O parágrafo único do citado artigo pretendeu dizer que serão considerados dominicais os bens das pessoas da administração indireta que tenha a estrutura do direito privado, salvo se a lei dispuser em contrário. [2]



INSTITUTO DE AFETAÇÃO/DESAFETAÇÃO



Os bens públicos são de todos. Por consequência, têm finalidade pública, existem e são mantidos em função do interesse público. Entretanto, isso não significa que após adquiridos ou construídos, alguns não possam deixar de pertencer à administração pública. Evidentemente, que haverá características especiais no desfazimento do que é público. Não é como faz um particular. O primeiro cuidado é observar a lei. É ela que vai dizer o que é (ou não é) alienável. Não pode ser similar a tentativa de desfazer-se de um hospital público e a de desfazer-se de um imóvel público totalmente em desuso. Portanto, percebe-se que a afetação ou desafetação ligam-se ao uso do bem público, a sua destinação. Alguns bens serão alienáveis e outros inalienáveis. Segundo o artigo 101 do código civil, os bens dominicais podem ser alienados (observadas as exigências legais). Daqui podemos inferir que os bens dominicais não são afetados, ou seja, são desafetados, pois não possuem uma destinação específica.

O artigo 100 do código civil indica o inverso das situações citadas acima. O artigo 100 afirma literalmente: Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar. Isso nos remete ao art. 37 da CF/88. Nele, a administração pública é chamada a atender aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, entre outros. Os bens públicos úteis ao povo ou a administração, não podem ser alienadas sem especiais cuidados. Qualquer descuido, poderá sujeitar o administrador aos ditames da lei 8429/92 – lei de improbidade administrativa. Estes bens estão afetados. Afetado significa que o bem uso público; portanto está afetado a um determinado fim público. No início deste item, falei do hospital e de um imóvel em desuso. Evidentemente, o hospital está afetado. É, portanto, inalienável.

Um bem público dominical, como um terreno sem uso num bairro; pode ser afetado. Por exemplo, a prefeitura (dona do imóvel) cria ali uma praça de brinquedos para a população. A partir desse momento, tornou-se inalienável.

Para resumir,

Nesse sentido, afetação é a condição do bem público que está servindo a alguma finalidade pública. Exemplo: o prédio público onde funciona um hospital da prefeitura é um bem afetado à prestação desse serviço.

Desafetação, ao contrário, é a situação do bem que não está vinculado a nenhuma finalidade pública específica. Exemplo: Terreno baldio pertencente ao Estado. [3]










[1] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 25ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. Pág  807.

[2]  idem. Pág. 898.



[3] Mazza, Alexandre. Manual de direito administrativo. 2ª ed. São Paulo: editora Saraiva, 2012. Pág. 3588


segunda-feira, 30 de abril de 2018

Credibilidade e confiança: inseparáveis.







A confiança tem a ver com a estabilidade. O sujeito na sua história pessoal, sempre agiu da mesma forma. Presumivelmente, amanhã e depois agirá da mesma maneira.  A história da pessoa ou de uma instituição, conferem razoabilidade. Por consequência, propiciam a esperança de que as mudanças (se houver) serão ponderadas, processuais e previsíveis.  As autoridades públicas, notadamente as do judiciário, devem ser assim: previsíveis em suas condutas. Mais do que a mulher de Cezar, devem ser e aparentar ser. Duas faces da mesma moeda: ser e aparentar ser. A confiança vem com a experiência. O tempo faz com que eu confie. É um namoro, uma amizade delicada. Não basta apenas obter a confiança, mas mantê-la. Um deslize, uma mentira, uma oscilação e pronto, a confiança se fragiliza. Minha mãe dizia (e diz): é como um prato, quando quebra, mesmo colado, fica a rachadura.



A credibilidade me lembra ter crédito: ter disponível para meu uso um valor maior do que eu de fato possuo. A pessoa agiu sempre de tal forma, que acumulou confiança. Pode até gastar um tanto a mais, pois tem crédito moral, tem bastante ainda em depósito. Então, quando alguém diz algo depreciativo em relação a quem tem credibilidade, o ouvinte logo diz: “Não acredito. O fulano nunca foi assim. Mesmo que haja fortes indícios, não creio!” A pessoa que tem credibilidade, tem sempre o benefício da dúvida a seu favor. In dubio pro credibilidade!



Os dois parágrafos anteriores justificam a união ética entre confiança e credibilidade.  Em ambos os casos, a história no tempo da pessoa ou da instituição, induzem às demais pessoas a esperarem uma conduta mais ou menos linear: quem foi “do bem” até hoje, é esperável que amanhã também o seja. Mesmo que as verdades fáticas oscilem, mesmo que as ciências descubram a cada momento coisas novas desmentindo verdades; a crença pessoal na importância da conduta ética dá certa previsibilidade às ações futuras. 

Por consequência, o descompromisso com a reflexão ética, resulta num comportamento errante. Agir de forma egoísta, de acordo com a conveniência do momento, não cria uma história pessoal confiável. Da mesma forma, a instituição pública que age de acordo com os ventos da política eventual não enseja confiança.  Nada nos faz mais moralmente previsíveis do que o repensar contínuo sobre a ética.  Aristóteles, de um lado afirmava, que o bom hábito nos faria propensos a sermos bons. Por outro lado, Kant nos alertava que o que importa é agir de forma que nosso agir possa ser um agir universalizável.



O que os dois filósofos tinham em comum? A preocupação constante com a reflexão sobre o certo e o errado. E fico feliz em saber que a história nos conta que ambos, sempre e sempre, foram virtuosos e previsíveis em seu desejo de serem corretos.



Credibilidade e confiança: irmãos. Penso que apesar da realidade demonstrar fartamente que nos equivocamos amiúde, só seremos dignos da credibilidade e da confiança quando buscarmos ter certeza que procuramos fazer o correto. E não uma vez ou duas. Mas, como disse antes, que a história da nossa vida ou das instituições públicas seja a vontade de fazer o correto... mesmo que não saibamos exatamente o que seja.

domingo, 22 de abril de 2018

Aos colegas do Direito, minha homenagem.


 Sobre a academia, hoplitas e rapinadores.




Gosto muito da imagem do hoplita[1] grego. Forte e pronto para a guerra. Envolto em armadura de couro, protegido por armas pesadas. Eram o tanque de guerra da pré-história das guerras. Temível! Irmanado com seus iguais, se jogava às mais insanas batalhas. Algo colossal.



Quando saímos das academias, sentimo-nos como os hoplitas. Armados com princípios éticos potentes e luzidios recém-desenvolvidos para serem empunhados.  Como os guerreiros gregos, os acadêmicos ao se formarem saem para as grandes batalhas. São inúmeras. Mas a maioria não são colossais. São escaramuças. São rápidas e mortais. O ambiente é móvel e mutável. As batalhas hoje tendem a serem ganhas por ardis e espertezas.  Parece não ser possível a luta leve para guerreiros tão pesados. Blindados. A técnica atual é a da blitzkrieg! [2]



Fora da academia a moralidade nela desenvolvida, pesa. Princípios elaborados para blindar o aprendiz, hoje parecem ser pesos mortos. Fora do ambiente acadêmico, a batalha parece ser para os rápidos.  A esperteza se coloca como vencedora das certezas lineares. Os aprendizes blindados são como vitimas fáceis nas mãos dos emboscadores. Estes armadilham, argumentam rápido demais. Os hoplitas são lentos nas suas armaduras. Aguentam os impactos por algum tempo. Mas a velocidade e as mudanças cada vez mais rápidas não perdoam.  Inúmeros guerreiros caem emboscados.



Num primeiro momento, as táticas se sobrepõem à ética.  A malícia armadilha quem reflete.  O escudo dos princípios da justiça pesa nas mãos. É mais rápida a flecha treda envenenada por argumentos falaciosos. A falácia é mais fatal que os silogismos válidos com premissas verdadeiras!



A academia resiste. Quer combatentes éticos, fortes e coerentes.  Prepara os guerreiros para as grandes lutas. Simula os ambientes possíveis das guerras estrangeiras ao ambiente escolar.  Escudam seus hoplitas.  Forjam espadas éticas duras, inflexíveis.  Delimitam horizontes éticos. As viseiras de couro impedem ao combatente ver opções indignas do bom combate.



Então o guerreiro sai pronto para o embate. Mas tudo é muito diferente. Ele tem armas possantes, mas na maioria das vezes o inimigo é pequeno e rápido.  Belisca e não morde. Envenena mas não dilacera. Então o combatente fica desnorteado. A moralidade parece pesar demais. Os maliciosos são mais rápidos e não tem nada a perder. Não precisam de justificativas nem da justiça.  Agem por cobiça e por instintos.



Mas, por que os hoplitas são lembrados e os demais não?



A história rejeita os emboscadores.  As medalhas são grandes demais para os peitos pequenos. O embuste, a fraude, a rapina rápida e a emboscada são inglórios. Os moralmente pequenos não lutam os grandes confrontos.  As academias produzem grandes guerreiros para espetaculares batalhas. Não querem menos que isso.



Lembro aos inglórios, rápidos e vorazes, que brigam por migalhas e despojos: a história é seletiva por querer heróis de espírito. A história ama os espiritualmente fortes.  Os livros e os louvores pertencem aos hoplitas éticos.   Os ventos que ventam para os heroicos são tempestades para os ratos. Ratos não foram feitos para serem lembrados. Existem apenas para se multiplicarem e desaparecerem.



Os hoplitas vivem para mudar as sociedades. Existem para fazerem história, criarem teorias e novos princípios éticos. As almas desses hoplitas voltam para serem ensinados nas academias. Voltam machucados e heróis. Voltam e são ensinados aos jovens. Agora, servem para blindar os novos guerreiros. A história não pode parar. Ela está à espera de novos guerreiros para forjarem novos tempos. 



Reflitam: rapinadores, ratos, vendilhões e guerrilheiros não sabem nem podem fazer história. 





[1] [1] Hoplita era o soldado de infantaria da Grécia clássica. Seus componentes eram cidadãos treinados para serem soldados. No mundo grego, os Hoplitas eram a melhor infantaria. Dominaram os combates por séculos.

[2] O Blitzkrieg (guerra-relâmpago): Tática militar alemã que consistia em atacar rapidamente, sem chances de revide. Tinha como tática: a surpresa, a velocidade e a força.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

A ética e a ética processual no CPC


Para iniciarmos o artigo, convém a reflexão sobre a ética em geral, ou a ética no sentido filosófico. Ela não é a mesma coisa que a moral.  A moral é o sentimento que temos em relação ao que nos afeta. Na verdade, temos opiniões valorativas sobre tudo.  O peso aqui é dado à expressão opinião. Ou seja, o senso comum parece abranger sob o aspecto do certo e do errado, do bem e do mal, toda a realidade que nos cerca.   Neste nível, apoiamos nossas concepções nas nossas experiências culturais, e nas nossas experiências de prazer e desprazer ao percebermos os acontecimentos diários.  A moral, portanto, não pretende, sequer necessita, de um fundamento racional.

Vários casos de crimes televisionados provocam comoção popular. Pessoas gritam por justiça, justiceiros pululam desejando a punição imediata dos “culpados”. Nada é processual, tudo é imediato, à flor da pele.  Os jornalistas comentam identificando a pessoa “imoral” com o veredito de  culpada. Os que estão em locais de “má reputação” são imediatamente suspeitos, e os defensores dos suspeitos são qualificados como “dos direitos humanos”. Estes últimos são percebidos como defensores dos bandidos, dos maus e da ralé.

Entretanto, basta um pouco de reflexão para percebermos que as conclusões a que o senso comum chega, não têm fundamentos lógicos (são falaciosos), não respeitam a sequencia causa-efeito, muito menos seguem a linearidade mínima para a reflexão plausível. A moral do senso comum salta argumentos, escolhe a faceta que acredita, evita o que não concorda. Faz escolhas específicas de acordo com suas crenças, e então fulmina qualquer esperança de imparcialidade ao dar seu veredito opinativo/definitivo.

Numa mesa em frente a uma taça de café num domingo, argumentando entre amigos,  não há problemas em julgar moralmente  (pois não há consequências no plano fático). É uma pratica culturalmente aceita e é milenar. Até por que, usarmos a razão sempre seria cansativo demais. Provavelmente algo impossível. Termos opinião e sermos livres para expressa-la não é algo ruim. O problema está quando o fazemos em momentos em que podemos ser tomados a sério, podendo provocar consequências negativas para alguém.



Não é possível levarmos uma vida normal sem que estejamos alicerçados em valores e convenções irrefletidas, embasadas na vivência cultural, nos liames afetivos de uma comunidade. A identificação rápida do bem e do mal sob o ponto de vista do senso comum, nos garante uma vida previsível e similar às demais vidas que nos cercam.  Daí vem certa segurança e harmonia que nos permitem viver em sociedade.



Diferentemente, a ética não permite que nos mantenhamos no nível da moral. A ética é a ciência da moral. Com isso, quero dizer que o senso comum passa a ser aferido por uma reflexão minuciosa.  Quando a razão se debruça sobre a opinião, a devoção a determinados valores passam a ser criticados de maneira dura. Nem tudo o que as pessoas creem são válidos para as demais pessoas. Todo o julgamento, no momento da reflexão ética, não é aceito de imediato, mas processualmente no tempo. Terá início, meio e fim.  E cada momento está sujeito a suspeições, interrupções para reflexões e a especiais questionamentos sobre prejuízos e contradições.

Quando nos submetemos à reflexão ética, nossos valores morais, nossos desejos de estarmos certos, serão educados e refinados.  Temos que educar nossa consciência, elevando-a acima das nossas paixões, fazendo-a refletir sobre nossa vontade e, principalmente, refletir sobre os critérios que usamos para julgar o certo e o errado. De certa forma, avaliar o outro é avaliar a nós mesmos, pois são nossos valores que julgam.  O meu julgamento espelha quem eu sou.  De certa forma, nesse contexto, faz sentido dizer que só damos o que temos, ou melhor: só julgamos com o que temos em nós para julgar.

A reflexão ética converge para o que chamamos de confiança. Essa confiança ocorre entre as pessoas e entre as pessoas e o Estado.

Reduzindo a hesitação nas relações sociais, a confiança atua como um mecanismo protetor hábil a evitar o caos e a desordem. Serve para conter a insegurança por meio da filtragem e organização do grandioso volume de informação complexa que recebemos. A confiança de uma pessoa na concretização das suas próprias expectativas é, portanto, um fator elementar da vida social. Ela vai viabilizar as relações sociais por meio de uma estabilidade que é alcançada pela existência de expectativas recíprocas. Com ela, o passado se estende para o futuro e o potencial de modificação inesperada das relações sociais é reduzido, o que torna possível o convívio entre os seres humanos. [1]



A segurança e a estabilidade num estado de direito é fundamental. As pessoas precisam confiar umas nas outras. Ou seja, a história da pessoa X justifica eu confiar que amanhã ela se comportará como sempre se comportou. As mudanças são mínimas e se ocorrem, espera-se que ocorram num intervalo de tempo razoável. Há, eu diria, um processo de transformação processual. Na mudança, podemos identificar razoavelmente os motivos da transformação. Em relação ao Estado (na sua relação com  as pessoas)  a questão é mais complexa. Entretanto, em relação a ele, os cidadãos devem esperar coerência e mudanças na esteira do tempo (nunca algo imotivado e instantâneo).  A previsibilidade e a confiança no Estado são, portanto, essenciais. A reflexão ética é fundamental para mantermos a estabilidade, já que a moral do senso comum não consegue faze-lo.



O filósofo moderno Thomas Hobbes, encontrou uma solução estranhável para nós contemporâneos. Como, segundo Hobbes, somos maus e egoístas, somente nos manteríamos em sociedade e confiaríamos no outro, em função do Leviatã. O Leviatã representa o príncipe, o Estado, com poderes absolutos. O medo, por consequência, faria com que o povo se mantivesse cordato em relação às leis. Ninguém mataria por medo do estado vingar o crime cometido, talvez matando o assassino. Ninguém faria o mal com medo do mal que sobre ele se abateria através da punição estatal. O príncipe pode tudo, convém teme-lo, portanto. Não haveria processos nem direitos. O que haveria é a certeza da punição exemplar e, com certeza, sem o respeito ao princípio da proporcionalidade.



Na verdade, Hobbes não defende propriamente a monarquia absolutista, baseado nas teorias tradicionais do direito divino dos reis, mais sim a ideia de que o poder, para ser eficaz, deve ser exercido de forma absoluta. Este poder absoluto resulta, no entanto, da transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, e é em nome deste contrato que deve ser exercido, e não para a realização da vontade pessoal do soberano. É nesse sentido que Hobbes é um contratualista – a sociedade civil organizada resulta de um pacto entre os indivíduos – sem ser um liberal, já que defende o poder absoluto, poder considerado legítimo enquanto assegura a paz civil.  É a esse soberano dado todo o traço poderoso que Hobbes denomina “Leviatã”, recorrendo a um nome de um monstro bíblico. [2]



A evolução da ciência jurídica, evidentemente, não pode aceitar em nome da paz social, a preponderância do Estado sobre o indivíduo através medo, pela dor e pela independência das decisões do príncipe em relação aos procedimentos legais.  A história dos homens em sociedade, fez com que a justiça do Estado passasse a se materializar no processo racional dos julgamentos. A confiança das pessoas entre si e entre o Estado nas questões de litígio, passam a se basear na ideia de um processo justo, racional e isento.



Podemos perceber que a ética avança sobre as concepções de justiça e, por consequência, sobre os procedimentos durante os julgamentos e sobre os limites das condenações. O processo para ser justo, passa a seguir princípios que o orienta internamente (quando os valores éticos se tornam normas do processo) ou externamente (pelos princípios éticos  constitucionais e internacionais).



O Código de processo civil segue, portanto, princípios éticos.  Um dos pilares valorativos do processo é o dever de boa-fé entre todos os envolvidos. No art 77 do CPC surge a expressão “dever” (de boa-fé), indicando o caráter valorativo. Estes deveres apontam para a necessidade das partes, seus advogados e o Ministério público serem probos e leais (em relação ao processo). Pretende-se com essa valoração conduzir os participantes a agirem segundo a verdade, a fundamentarem de maneira crível suas pretensões, a não produzir provas protelatórias ou inúteis. As partes teriam, portanto, uma credibilidade ética.



Com a expressão boa-fé,  o legislador quer se contrapor aos que conduzem seus procedimentos durante o processo com má intenção, com interpretações deturpadas das leis ou que ajam de maneira antiética.  Não são bem–vindas as atitudes que desarmonizam o ambiente processual. Inclusive podendo o litigante de má-fé, estar impedindo o direito a ampla defesa e ao contraditório da outra parte. O artigo 80 do CPC não deixa dúvidas quanto a esses impedimentos. Nele lê-se:




Considera-se litigante de má-fé aquele que:

 I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.




A referência ética que perpassa o CPC enaltece a dignidade humana, inclusive impede o uso de expressões ofensivas. Ora, a cordialidade, o respeito à pessoa e a necessidade de cooperação não coexistem com a violência, mesmo que verbal. O artigo 88 refere in verbs:



É vedada às partes, à seus procuradores, aos juízes, aos membros do ministério público e a qualquer pessoa que participe do processo empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados.



Mas, não podemos esquecer que na realidade:


O sistema processual brasileiro é um ambiente no qual prevalecem os interesses não cooperativos de todos os sujeitos processuais. O juiz imerso, na busca por otimização numérica de seus julgados, e as partes (agir estratégico) com a finalidade de obtenção de êxito.  Esta patologia de índole fática não representa minimamente os comandos normativos impostos pelo modelo constitucional de processo, nem mesmo os grandes propósitos que o processo, como garantia, deve ofertar.[3]



O valor que norteia o processo não é mais o do litígio quase beligerante. A imagem de advogados gladiadores, golpeando com suas espadas verbais, não é mais condizente com o ideal ético do CPC.  Mesmo as partes sendo opostas em relação às suas pretensões, e o juiz sendo o mediador estatal poderoso, todos estão juntos sob a égide do “mesmo” judiciário e do mesmo Estado: são eles (judiciário e Estado), queiramos ou não, os que garantem a estabilidade nas relações sociais. Então, quanto mais o espírito for de colaboração, mais a ênfase na harmonização se dá. Mesmo que haja sempre um vitorioso e um não vitorioso, as relações sociais continuam e o judiciário também. Estas afirmações estão expilicitadas no art. 1º do CPC, onde se lê:



Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 



O respeito do juiz pelos advogados e seus clientes, seu incentivo ao diálogo e a transparência na relação com as partes, é explicitada no artigo 10 do código já citado:



O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.



A tendência  é, sempre, a mitigação dos litígios. Esta intenção fica clara no ideal de autocomposição.  O artigo 190 do CPC nos diz:



Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.



Percebamos que a beligerância, de certa forma, é amenizada pela possibilidade aqui descrita.  A mesma linha de pensamento segue o artigo 3º do mesmo diploma. Acrescento na íntegra o caput do Art. 334 do mesmo código:



Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.



Conclui-se em sequência que os princípios éticos estão fortemente presentes, se irradiando por todo o Código de Processo Civil. Evidentemente que não é por acaso, afinal, a Constituição Federal de 1988 predispõe todo o ordenamento jurídico do país a uma exegese democrática e humana das leis, com apelo pela participação ética de todos. Inclusive, e principalmente, das autoridades que representam o Estado.



[1] Araújo, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. RJ. Impetus, 2009. Pág.13.
[2] Marcondes, Danilo. Iniciação à Filosofia: dos pré-socráticos à Wittgeinstein. 8ª edição. RJ, Jorge Zahar. 2004. Pág. 198
[3]  Júnior, Humberto Theodoro – e outros. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. 3ª edição RJ. Editora Forense. 2015. Pág. 87.










domingo, 8 de abril de 2018

Princípio da presunção de inocência e as decisões do STF sobre a condenação em segunda instância - para pensar o caso Lula



     


      Hobbes, o renomado contratualista, criou a figura do Leviatã. Já que os homens são egoístas e sedentos por prazeres, tendentes à guerra, faz-se necessário o surgimento por contrato da sociedade civil. Segundo este filósofo, a sociedade será regulada por um Estado absoluto. Entendendo que o homem é naturalmente cruel, somente o medo da morte o contém em seus instintos.  O “deus mortal” Estado, seria conduzido por um rei com poderes absolutos, acima da lei.  Evidentemente, nesse contexto, que a discussão da justiça não era relevante para o monarca, muito menos o princípio da inocência. Para evitar um mal maior (dissolução da sociedade civil), o monarca poderia fazer o que quisesse (pois está acima da lei). Então, para manter o contrato social, tudo seria justo. Hoje, alegam, em nome de um mal maior – a corrupção – os togados estão cima da Constituição Federal. Uma espécie de reis hobbesianos. O judiciário seria um Leviatã acima da constituição e dos homens.

     

      Diversamente do ideal de Hobbes, hoje há princípios e garantias constitucionais. Uma proteção da “natural” inocência do cidadão. As pessoas nascem inocentes (sem crime algum) e, inercialmente, deveriam assim permanecer. Assim como não há um pecado original (nasceríamos já pecadores), não há pessoa culpada a priori. Os juristas chamam isso de princípio da inocência. Em consequência, para alguém ser considerado culpado é garantido um julgamento justo, imparcial, com ampla defesa e contraditório. Claro que isso dá trabalho. É demorado e custoso. Não é fácil provar que alguém cometeu um crime de maneira consciente e livre. Há sempre o risco de o estado tentar apressar as coisas. A celeridade a cima de tudo!

     

      A história é farta em exemplos de atuações do Estado em que o sujeito era culpado até provar o contrário. Vimos torturas, bruxas queimadas e pelotões de fuzilamento.  No Brasil tivemos mais de vinte anos de ditadura. A constituição de 1988 foi uma resposta ao excessivo arbítrio do Estado. Especificamente encontramos nela o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". O que não foi uma inovação em termos históricos.  Afinal já tínhamos a Declaração dos Direitos do Homem (1789) e a Declaração Universal dos direitos Humanos (1948), entre outros pactos e acordos internacionais. Hobbes, portanto, perde de dez (ou mais) a zero.  Hobbes perdeu, mas não morreu. Veremos.

     

      Conforme o CPP no Art. 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. O que se harmoniza com o art. 5º da CF/88, art. LVII (já citado). Parece muito claro. Mas a claridade ofusca. Somente os condenados em sentença transitada em julgado, poderão perder a liberdade. Límpido. Mas a questão é profunda. Quando há o trânsito em julgado? Enquanto as provas são possíveis de serem questionadas ou quando a questão é o mérito? Aqui se vê algo que não é apenas aspecto jurídico, mas outra coisa (acima da lei). Afinal, quem decide essa questão? Os aspectos filosóficos? (O que é justo?) Ou os aspectos políticos? (O que valerá para o momento?) Ao decidir-se acima da lei, tornam-se os decisores togados uma espécie de poder constituinte. (ao gosto do Hobbes).

      

      Ao mudar o entendimento sobre a prisão em segunda instância (agora sendo esta possível), o artigo 283 do CPP é (ou era) a melancia que não se ajustava ao andar da carroça do STF.  Ora, então mudou-se a carroça! Ou seja, o STF acatou a votação em que se mantinha o artigo 283 do CPP, mas com nova (carroça) interpretação. Agora ele (o artigo) cabia na carroça. No meu entendimento, não se respeitou o garantismo explicitado por toda a Constituição Federal de 1988. Esse garantismo impede o início da execução da pena antes de esgotados todos os recursos possíveis. Lembremos estes dois artigos da CF/88 (um já citado):

“LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”; e o “LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”



Discutir se o trânsito em julgado ocorre na segunda instância ou no STF, não faz sentido. A resposta já está estabelecida na magna carta! Onde nela? Em todo seu artigo 5º e em vários outros momentos. O “espírito constitucional” aliado às convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, indicam que a inocência permanece até o fim de toda a persecução penal. Portanto, apesar dos adeptos saudosos do Hobbes, somente após esgotadas todas as instâncias, a ultima ratio se estabelece. Lembrando que a expressão corriqueira no direito, ultima ratio, se refere a proteção do direito penal ao que é essencial à vida. Sendo, portanto, a última opção aquela que restringe o bem mais relevante para a vida humana. Nesse caso, a liberdade.

terça-feira, 20 de março de 2018

A Vida Ética segundo Peter Singer




Como havemos de viver?

Peter Singer

Universidade de Princeton



Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que valha a pena dedicarmo-nos, além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa família? Falar de "algo pelo qual viver" tem um certo travo vagamente religioso, mas muitas pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma sensação incomoda de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que conferiria às suas vidas uma importância que de momento lhes falta. E estas pessoas também não têm qualquer compromisso profundo com uma cor política. Ao longo do último século, a luta política ocupou frequentemente o lugar consagrado à religião noutros tempos e culturas. Ninguém que reflita acerca da nossa história recente pode agora acreditar que a política, por si só, bastará para resolver todos os nossos problemas. Mas para que outra coisa poderemos viver? Neste texto, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia, mas tão necessária nas circunstâncias atuais como sempre foi. A resposta é que podemos viver uma vida ética. Ao fazê-lo, passaremos a integrar uma vasta tradição que atravessa culturas. Além disso, descobriremos que viver uma vida ética não constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.

Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há tanto que precisa de ser feito. Quando este livro estava prestes a concluir-se, as tropas das Nações Unidas entraram na Somália numa tentativa de assegurar que os alimentos chegavam às populações famintas. Apesar de esta tentativa ter corrido muito mal, constituiu, pelo menos, um sinal positivo de que as nações ricas estavam preparadas para fazer alguma coisa acerca da fome e do sofrimento em áreas distantes. Podemos tirar as devidas lições deste episódio, de modo a que as tentativas futuras sejam mais bem sucedidas. Talvez estejamos no início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar sentados à frente dos nossos televisores a ver crianças morrer e depois continuar a viver as nossas vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência. Mas não são apenas as grandes crises dramáticas e com honras de noticiário que requerem a nossa atenção: há inúmeras situações, numa escala mais reduzida, que são tão horríveis e evitáveis como as maiores. Por imensa que esta tarefa se nos afigure, trata-se apenas de uma das muitas causas igualmente urgentes às quais se podem dedicar as pessoas que buscam um objetivo digno.

O problema é que a maior parte das pessoas tem somente uma ideia vaguíssima do que poderá ser viver uma vida ética. Compreendem a ética como um sistema de regras que nos proíbem de fazer coisas. Não a entendem como base para pensar acerca do modo como havemos de viver. Essas pessoas levam vidas eminentemente centradas nos seus interesses, não por terem nascido egoístas, mas porque as alternativas parecem inaptas, embaraçosas ou simplesmente inúteis. Não conseguem descortinar um modo de provocar impacto no mundo, e mesmo que conseguissem, para que se incomodariam? Não encarando uma conversão religiosa, não veem nada por que viver que não seja os seus próprios interesses materiais. Mas a possibilidade de viver uma vida ética fornece-nos uma saída para este impasse. Essa possibilidade é o objeto da presente reflexão. Aflorar meramente esta possibilidade será suficiente para desencadear acusações de extrema ingenuidade. Alguns dirão que as pessoas são naturalmente incapazes de ser outra coisa que não egoístas. Os capítulos 4, 5, 6 e 7 abordam esta convicção, de várias formas. Outros afirmarão que, seja qual for a verdade acerca da natureza humana, a sociedade moderna ocidental há muito deixou para trás o ponto em que a argumentação racional ou ética conseguiria alcançar fosse o que fosse. A vida atual pode parecer tão louca que é possível perder a esperança de a melhorar. Um editor que leu o manuscrito deste livro indicou com um gesto a rua de Nova Iorque que se avistava da janela e disse-me que, ali em baixo, os condutores tinham começado a ignorar os semáforos vermelhos só porque sim. Como, dizia-me ele, pode esperar que o seu livro faça qualquer diferença, num mundo cheio de pessoas assim? Na verdade, se o mundo estivesse mesmo cheio de pessoas que cuidassem tão pouco da sua vida - quanto mais das vidas dos outros - nada haveria que se pudesse fazer e provavelmente a nossa espécie não andaria por cá muito mais tempo. Mas a ordem natural da evolução tende a eliminar os que são assim loucos. Pode haver uns quantos em determinada altura e não há dúvida de que as grandes cidades americanas albergam mais do que a sua quota-parte destes indivíduos. Mas o que é verdadeiramente desproporcionado é o destaque que este comportamento tem nos meios de comunicação social e na mente pública. É a velha história daquilo que faz a notícia. Um milhão de pessoas a fazer todos os dias alguma coisa que revele preocupação pelas outras não é notícia; um atirador furtivo num telhado, é. Este livro não ignora a existência de pessoas malévolas, violentas e irracionais, mas foi escrito na convicção de que as restantes não deverão viver as suas vidas como se todos as outras fossem sempre inerentemente, com toda a probabilidade, malévolas, violentas e irracionais.

De qualquer modo, e mesmo que esteja errado e as pessoas loucas sejam muito mais comuns do que creio, que alternativa nos resta? A demanda convencional do interesse próprio é, por razões que aduzirei num capítulo posterior, individual e coletivamente prejudicial. A vida ética constitui a alternativa mais fundamental à demanda convencional do interesse próprio. Decidir viver eticamente é simultaneamente mais ambicioso e mais poderoso do que um compromisso político do tipo tradicional. Viver uma vida eticamente refletida não é uma questão de observar estritamente um conjunto de regras que determinam o que devemos e não devemos fazer. Viver eticamente é refletir de uma forma particular sobre o modo como vivemos e tentar agir de acordo com as conclusões dessa reflexão. Se o argumento deste livro é sólido, não podemos viver uma vida não ética e permanecer indiferentes à quantidade imensa de sofrimento desnecessário que existe no mundo atual. Pode ser ingênuo esperar que um número relativamente pequeno de pessoas que vivem de uma forma refletida, ética, possa revelar-se uma massa crítica capaz de alterar o clima de opinião acerca da natureza do interesse próprio e da sua relação com a ética; mas quando olhamos para o mundo e vemos a confusão que nele grassa, parece valer a pena conceder a essa esperança otimista a melhor hipótese possível de sucesso.

Todos os livros refletem uma experiência pessoal, independentemente do número de camadas de ilustração que a filtram. O meu interesse pelo tema deste livro começou quando era estudante de pós-graduação na Universidade de Melbourne. O tema da minha tese de Mestrado foi "Por que devo ser moral?" A tese analisava esta questão e examinava as respostas a ela dadas pelos filósofos nos últimos dois mil e quinhentos anos. Concluí relutantemente que nenhuma das respostas era completamente satisfatória. Depois, passei vinte e cinco anos a estudar e a ensinar ética e filosofia social em universidades inglesas, norte-americanas e australianas. No início desse período, participei na oposição à guerra no Vietname. Isto forneceu o contexto ao meu primeiro livro: Democracy and Disobedience, acerca da questão ética da desobediência a leis injustas. O meu segundo livro, Libertação Animal, defendia que o tratamento que dispensamos aos animais é eticamente indefensável. Esse livro teve importância no nascimento e crescimento daquele que agora é um movimento mundial. Trabalhei nesse movimento não apenas como filósofo, mas também como membro ativo de grupos empenhados na mudança. Estive envolvido, novamente tanto como filósofo acadêmico como de formas mais quotidianas, numa variedade de causas com uma forte base ética: ajuda aos países em vias de desenvolvimento, apoio a refugiados, legalização da eutanásia voluntária, preservação dos espaços selvagens e problemas ambientais mais gerais. Tudo isto me possibilitou conhecer pessoas que doam o seu tempo, o seu dinheiro e por vezes grande parte das suas vidas privadas a uma causa de base ética; e deu-me um sentido mais profundo daquilo que é tentar viver uma vida ética.

Desde a redação da minha tese de Mestrado, escrevi sobre a questão "Por que agir eticamente?" no capítulo final de Ética Prática e aflorei o tema da ética e do egoísmo em The Expanding Circle. Ao debruçar-me novamente sobre a relação entre ética e interesse próprio, posso agora recorrer a um passado sólido de experiência prática, assim como à investigação e a obras de outros estudiosos. Se me perguntarem por que devemos agir moralmente ou eticamente, poderei dar uma resposta mais ousada e positiva do que aquela que dei na minha tese anterior. Poderei apontar pessoas que escolheram levar uma vida ética e conseguiram ter impacto no mundo. Ao fazê-lo, investiram as suas vidas de um significado que muitas pessoas não creem alguma vez conseguir alcançar. Como resultado, aquelas pessoas consideram que as suas vidas são mais ricas, mais satisfatórias, e mesmo mais empolgantes do que eram antes de elas terem decidido dessa forma.

Peter Singer

Tradução de Tradução de Fátima St. Aubyn

Prefácio de Como Havemos de Viver?, de Peter Singer (Dinalivro, 2005).


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A liberdade de expressão e a "mão invisível" do mercado


Sob o ponto de vista do liberalismo, a liberdade é a ausência de contenção, é o livre fluir
do mercado. A história econômica nos apresenta a expressão Laissez-faire, que simboliza principalmente o ideal da liberdade econômica. No liberalismo, se há algum limite às liberdades, este só é tolerável se vier a favor da manutenção da propriedade privada.

Lendo Stuart Mill encontramos a ideia da “mão invisível do mercado”.

Sob o ponto de vista do capitalismo concorrencial, a "mão invisível do mercado" dá os limites ao próprio mercado, sem impedir a liberdade dos indivíduos. Isso por que no mercado quando todos podem tudo, tendo um poder absoluto, acabam os agentes por se (auto)limitarem. Stuart Mill oferece um exemplo para o entendimento da mão invisível. Imaginemos que queremos comer pão no café da manhã. Para nos satisfazer, o padeiro pode fazer o pão do jeito que quiser e pôr o preço que quiser, pois é livre. O outro padeiro do bairro, também faz do jeito que quer seu pão, e livremente impõe seu preço. Entretanto, o segundo padeiro pode fazê-lo melhor e por um preço menor. Então, um padeiro será limitado pelo outro. Afinal, escolheríamos o pão de melhor qualidade pelo menor preço, ignorando a opção desvantajosa. A lei que rege essa situação é onipresente, implacável e invisível. Simplesmente essa lei existe e se impõe;

Queremos sempre o que é melhor e mais vantajoso e rejeitamos o contrário disso.

No contexto do (neo)liberalismo, como fica a liberdade de expressão? Estaria sujeita também a “mão invisível” da concorrência, os sujeitos que querem livremente se expressar?

Percebamos as seguintes questões sob o ponto de vista da “mão invisível”:

Cada cidadão pode livremente se expressar, sendo limitado apenas pela igual liberdade do outro? Numa sociedade ideal, onde cem por cento das pessoas são cem por cento livres para dizerem o que querem dizer; as pessoas poderiam escolher os melhores argumentos negando os piores? E isso da mesma forma como escolhemos os pães melhores e ignoramos os piores? Podemos discernir os argumentos bons e baratos dos ruins e caros? Seria possível, nessa sociedade ideal, “arruinar” (por não ter consumidores) os produtores de maus argumentos? Sempre a mesma resposta: não!

Numa sociedade utópica de pessoas cem por cento livres para se expressar, haverá o risco dos sujeitos escolherem os “melhores” argumentos somente segundo seus gostos pessoais. Pães e escolhas a gosto do freguês. Então, critérios como coerência, verossimilhança e cientificidade correriam o sério risco de serem preteridos. É um perigo sério. É bem mais fácil o gosto do dia a dia do que o gosto mais refinado. O refinamento exige reflexão, esforço, custo pessoal e intencionalidade clara.

Num mundo de liberdade de expressão absoluta, o alto preço para a qualidade dos argumentos é a reflexão e o cuidado no consumo das verdades ditas.

Na nossa sociedade que assiste o Big Brother e o discute com afinco; é possível a liberdade com qualidade para decidir/escolher as melhores opiniões? Não. A liberdade está viciada. Como o discurso apurado e denso não é palatável de imediato, provavelmente será preterido por discursos mais rasos e fáceis. Só é verdadeiramente livre a pessoa acostumada à reflexão profunda sobre temas complexos. 

Há o risco de acreditar que ser livre para se expressar, é uma espécie de banalização do relativismo niilista.

Num ambiente hipotético de liberdade extrema, as pessoas tenderão (não é uma fatalidade, mas é tendência!) a aceitar as falas desairosas sobre seus desafetos e a rejeitá-las se forem sobre seus amores. Acrescente-se que corriqueiramente as pessoas escolhem o que já conhecem, saborearam e o que já gostam. Saborear gostos diferentes não é fácil. Experimentar sabores indigestos, pior ainda! É preciso esforço.

Portanto, a liberdade total de expressão é um paradoxo num ambiente de livre concorrência das falas.

Há muita oferta de expressões livres nas democracias. A oferta de ideias é tanta que não é possível aferir a qualidade. Se fosse possível, as melhores seriam preferidas e as demais, preteridas. Como não é possível, não funciona a “mão invisível do mercado”. É preciso algo “acima” dessa “mão”.

Podemos ainda imaginar a dificuldade de um consenso mínimo sobre o que é uma expressão de qualidade (boa/má). Sem consensos, escolhas pessoais sempre permanecessem. Sucesso do relativismo, fracasso nas escolhas.

No mundo real do neoliberalismo econômico, as sabotagens na livre concorrência são um fato. Não apenas um risco, mas uma realidade. Fraudes, ilegalidades de toda ordem, monopólios, oligopólios e manipulações fiscais. A concorrência sempre nasce viciada. O desejo de lucro e vantagens são irrefreáveis, de tal forma que invalidam a concorrência leal. Como estamos fazendo um paralelo entre a liberdade concorrencial no âmbito econômico e a "liberdade concorrencial" no direito de expressão, pode-se imaginar que os vícios em ambas as esferas são similares. As pessoas se expressam querendo sempre ganhar o jogo dos argumentos livres. Querem sobrepujar os demais, fazendo prevalecer (por qualquer meio) o que expressam sobre as demais expressões livres. 

Então, é de suma importância a educação, o estímulo à reflexão democrática e a vivência da partilha fraterna. Estes elementos estão hierarquicamente acima do jogo da livre concorrência. Eles têm outra dimensão. São elementos de cunho ético; orientadores, portanto.

Posso afirmar que liberdade extrema sem orientação ética é cativeiro: ficamos presos em nós mesmos. A livre expressão sem contenções éticas, é uma forma de impedir a liberdade para se expressar. A liberdade pura, sem intenção fraterna, sem intenção de partilha, é egoística, é imperialista e é enganosa.

Liberdade de expressão, comunidade e fraternidade são elementos inseparáveis. Este tripé é em tudo diferente do liberalismo clássico e do neoliberalismo. Quanto mais ética é a comunidade que quer se comunicar, mais verdadeiramente livre é. Simples assim.

A livre concorrência absoluta, em qualquer âmbito, impede as liberdades! Paradoxal: são principalmente as limitações éticas que fomentam a fraternidade que possibilita a expressão na forma de diálogo. Por consequência, permitem que sejamos cada vez mais livres, mesmo que nunca em cem por cento.

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?