Para
iniciarmos o artigo, convém a reflexão sobre a ética em geral, ou a ética no
sentido filosófico. Ela não é a mesma coisa que a moral. A moral é o sentimento que temos em relação
ao que nos afeta. Na verdade, temos opiniões valorativas sobre tudo. O peso aqui é dado à expressão opinião. Ou
seja, o senso comum parece abranger sob o aspecto do certo e do errado, do bem
e do mal, toda a realidade que nos cerca.
Neste nível, apoiamos nossas concepções nas nossas experiências culturais, e nas nossas experiências de prazer e desprazer ao percebermos os
acontecimentos diários. A moral,
portanto, não pretende, sequer necessita, de um fundamento racional.
Vários
casos de crimes televisionados provocam comoção popular. Pessoas gritam por
justiça, justiceiros pululam desejando a punição imediata dos “culpados”. Nada
é processual, tudo é imediato, à flor da pele.
Os jornalistas comentam identificando a pessoa “imoral” com o veredito de culpada. Os
que estão em locais de “má reputação” são imediatamente suspeitos, e os defensores
dos suspeitos são qualificados como “dos direitos humanos”. Estes últimos são percebidos
como defensores dos bandidos, dos maus e da ralé.
Entretanto,
basta um pouco de reflexão para percebermos que as conclusões a que o senso
comum chega, não têm fundamentos lógicos (são falaciosos), não respeitam a
sequencia causa-efeito, muito menos seguem a linearidade mínima para a reflexão
plausível. A moral do senso comum salta argumentos, escolhe a faceta que acredita, evita o que
não concorda. Faz escolhas específicas de acordo com suas crenças, e então
fulmina qualquer esperança de imparcialidade ao dar seu veredito opinativo/definitivo.
Numa
mesa em frente a uma taça de café num domingo, argumentando entre amigos, não há problemas em julgar moralmente (pois não há consequências no plano fático). É uma pratica culturalmente
aceita e é milenar. Até por que, usarmos a razão sempre seria cansativo demais. Provavelmente algo impossível. Termos opinião
e sermos livres para expressa-la não é algo ruim. O problema está quando o fazemos
em momentos em que podemos ser tomados a sério, podendo provocar consequências negativas para
alguém.
Não é possível levarmos uma vida normal sem que estejamos alicerçados em
valores e convenções irrefletidas, embasadas na vivência cultural, nos liames
afetivos de uma comunidade. A identificação rápida do bem e do mal sob o ponto
de vista do senso comum, nos garante uma vida previsível e similar às demais
vidas que nos cercam. Daí vem certa
segurança e harmonia que nos permitem viver em sociedade.
Diferentemente, a ética não permite que nos mantenhamos no nível da moral. A ética é a ciência da
moral. Com isso, quero dizer que o senso comum passa a ser aferido por uma
reflexão minuciosa. Quando a razão se
debruça sobre a opinião, a devoção a determinados valores passam a ser
criticados de maneira dura. Nem tudo o que as pessoas creem são válidos para as
demais pessoas. Todo o julgamento, no momento da reflexão ética, não é aceito de imediato, mas processualmente no tempo. Terá início, meio e fim. E cada momento está sujeito a suspeições,
interrupções para reflexões e a especiais questionamentos sobre prejuízos e
contradições.
Quando
nos submetemos à reflexão ética, nossos valores morais, nossos desejos de
estarmos certos, serão educados e refinados.
Temos que educar nossa consciência, elevando-a acima das nossas paixões,
fazendo-a refletir sobre nossa vontade e, principalmente, refletir sobre os
critérios que usamos para julgar o certo e o errado. De certa forma, avaliar o
outro é avaliar a nós mesmos, pois são nossos valores que julgam. O meu julgamento espelha quem eu sou. De certa forma, nesse contexto, faz sentido
dizer que só damos o que temos, ou melhor: só julgamos com o que temos em nós para julgar.
A reflexão ética converge para o que chamamos de confiança. Essa confiança
ocorre entre as pessoas e entre as pessoas e o Estado.
Reduzindo a hesitação nas relações
sociais, a confiança atua como um mecanismo protetor hábil a evitar o caos e a
desordem. Serve para conter a insegurança por meio da filtragem e organização
do grandioso volume de informação complexa que recebemos. A confiança de uma
pessoa na concretização das suas próprias expectativas é, portanto, um fator
elementar da vida social. Ela vai viabilizar as relações sociais por meio de
uma estabilidade que é alcançada pela existência de expectativas recíprocas.
Com ela, o passado se estende para o futuro e o potencial de modificação
inesperada das relações sociais é reduzido, o que torna possível o convívio
entre os seres humanos. [1]
A
segurança e a estabilidade num estado de direito é fundamental. As pessoas
precisam confiar umas nas outras. Ou seja, a história da pessoa X justifica eu
confiar que amanhã ela se comportará como sempre se comportou. As mudanças são
mínimas e se ocorrem, espera-se que ocorram num intervalo de tempo razoável. Há,
eu diria, um processo de transformação processual. Na mudança, podemos identificar razoavelmente
os motivos da transformação. Em relação ao Estado (na sua relação com as pessoas) a questão é mais complexa. Entretanto, em relação a ele, os cidadãos devem esperar coerência e mudanças na
esteira do tempo (nunca algo imotivado e instantâneo). A previsibilidade e a confiança no Estado
são, portanto, essenciais. A reflexão ética é fundamental para
mantermos a estabilidade, já que a moral do senso comum não consegue faze-lo.
O
filósofo moderno Thomas Hobbes, encontrou uma solução estranhável para nós
contemporâneos. Como, segundo Hobbes, somos maus e egoístas, somente nos
manteríamos em sociedade e confiaríamos no outro, em função do Leviatã. O
Leviatã representa o príncipe, o Estado, com poderes absolutos. O medo, por consequência, faria com que o povo se mantivesse cordato em relação às leis. Ninguém mataria
por medo do estado vingar o crime cometido, talvez matando o assassino. Ninguém
faria o mal com medo do mal que sobre ele se abateria através da punição
estatal. O príncipe pode tudo, convém teme-lo, portanto. Não haveria processos nem
direitos. O que haveria é a certeza da punição exemplar e, com certeza, sem o
respeito ao princípio da proporcionalidade.
Na verdade, Hobbes não defende
propriamente a monarquia absolutista, baseado nas teorias tradicionais do
direito divino dos reis, mais sim a ideia de que o poder, para ser eficaz, deve
ser exercido de forma absoluta. Este poder absoluto resulta, no entanto, da
transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, e é em nome deste
contrato que deve ser exercido, e não para a realização da vontade pessoal do
soberano. É nesse sentido que Hobbes é um contratualista – a sociedade civil
organizada resulta de um pacto entre os indivíduos – sem ser um liberal, já que
defende o poder absoluto, poder considerado legítimo enquanto assegura a paz
civil. É a esse soberano dado todo o traço
poderoso que Hobbes denomina “Leviatã”, recorrendo a um nome de um monstro
bíblico. [2]
A
evolução da ciência jurídica, evidentemente, não pode aceitar em nome da paz
social, a preponderância do Estado sobre o indivíduo através medo, pela dor e pela
independência das decisões do príncipe em relação aos procedimentos legais. A história dos homens em sociedade, fez com que a justiça do Estado passasse a se materializar no processo racional dos julgamentos. A confiança das pessoas
entre si e entre o Estado nas questões de litígio, passam a se basear na ideia de um processo justo,
racional e isento.
Podemos
perceber que a ética avança sobre as concepções de justiça e, por consequência,
sobre os procedimentos durante os julgamentos e sobre os limites das condenações. O processo para ser
justo, passa a seguir princípios que o orienta internamente (quando os valores
éticos se tornam normas do processo) ou externamente (pelos princípios éticos constitucionais e internacionais).
O
Código de processo civil segue, portanto, princípios éticos. Um dos pilares valorativos do processo é o
dever de boa-fé entre todos os envolvidos. No art 77 do CPC surge a expressão
“dever” (de boa-fé), indicando o caráter valorativo. Estes deveres apontam para
a necessidade das partes, seus advogados e o Ministério público serem probos e
leais (em relação ao processo). Pretende-se com essa valoração conduzir os
participantes a agirem segundo a verdade, a fundamentarem de maneira crível
suas pretensões, a não produzir provas protelatórias ou inúteis. As partes
teriam, portanto, uma credibilidade ética.
Com a expressão boa-fé, o legislador quer se contrapor aos que
conduzem seus procedimentos durante o processo com má intenção, com interpretações deturpadas das leis ou que ajam de maneira antiética. Não são bem–vindas as
atitudes que desarmonizam o ambiente processual. Inclusive podendo o litigante de má-fé, estar
impedindo o direito a ampla defesa e ao contraditório da outra parte. O artigo
80 do CPC não deixa dúvidas quanto a esses impedimentos. Nele lê-se:
Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto
expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a
verdade dos fatos;
III - usar do
processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser
resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder
de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI - provocar
incidente manifestamente infundado;
VII -
interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
A referência ética que perpassa o CPC enaltece a dignidade humana, inclusive impede o uso de expressões ofensivas. Ora, a cordialidade, o respeito à
pessoa e a necessidade de cooperação não coexistem com a violência, mesmo que
verbal. O artigo 88 refere in verbs:
É vedada às partes, à seus procuradores,
aos juízes, aos membros do ministério público e a qualquer pessoa que participe
do processo empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados.
Mas,
não podemos esquecer que na realidade:
O sistema processual brasileiro é um
ambiente no qual prevalecem os interesses não cooperativos de todos os sujeitos
processuais. O juiz imerso, na busca por otimização numérica de seus julgados,
e as partes (agir estratégico) com a finalidade de obtenção de êxito. Esta patologia de índole fática não
representa minimamente os comandos normativos impostos pelo modelo
constitucional de processo, nem mesmo os grandes propósitos que o processo,
como garantia, deve ofertar.[3]
O valor que norteia o processo não é
mais o do litígio quase beligerante. A imagem de advogados gladiadores, golpeando
com suas espadas verbais, não é mais condizente com o ideal ético do CPC. Mesmo as partes sendo opostas em relação às
suas pretensões, e o juiz sendo o mediador estatal poderoso, todos estão juntos sob a
égide do “mesmo” judiciário e do mesmo Estado: são eles (judiciário e Estado), queiramos ou não, os que garantem a
estabilidade nas relações sociais. Então, quanto mais o espírito for de
colaboração, mais a ênfase na harmonização se dá. Mesmo que haja sempre um
vitorioso e um não vitorioso, as relações sociais continuam e o judiciário
também. Estas afirmações estão expilicitadas no art. 1º do CPC, onde se lê:
Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si
para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
O respeito do
juiz pelos advogados e seus clientes, seu incentivo ao diálogo e a transparência na relação com as
partes, é explicitada no artigo 10 do código já citado:
O
juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar,
ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
A tendência é, sempre, a mitigação dos litígios. Esta intenção fica clara no ideal de autocomposição.
O artigo 190 do CPC nos diz:
Versando
o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes
plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às
especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades
e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Percebamos que a beligerância, de
certa forma, é amenizada pela possibilidade aqui descrita. A mesma linha de pensamento segue o artigo 3º do
mesmo diploma. Acrescento na íntegra o caput do Art. 334 do mesmo código:
Se
a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de
improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou
de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o
réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.
Conclui-se em sequência que os
princípios éticos estão fortemente presentes, se irradiando por todo o Código
de Processo Civil. Evidentemente que não é por acaso, afinal, a Constituição
Federal de 1988 predispõe todo o ordenamento jurídico do país a uma exegese
democrática e humana das leis, com apelo pela participação ética de todos. Inclusive, e principalmente, das autoridades que representam o Estado.
[1]
Araújo, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova
forma de tutela do cidadão diante do Estado. RJ. Impetus, 2009. Pág.13.
[2]
Marcondes, Danilo. Iniciação à Filosofia: dos pré-socráticos à Wittgeinstein.
8ª edição. RJ, Jorge Zahar. 2004. Pág. 198
[3] Júnior, Humberto Theodoro – e outros. Novo
CPC: Fundamentos e sistematização. 3ª edição RJ. Editora Forense. 2015. Pág. 87.
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