domingo, 13 de julho de 2014

Democracia e a felicidade gregas clássicas



A democracia grega clássica

Tudo que ouvimos sobre o pensamento grego clássico nos é de alguma forma familiar.
Temos a impressão que nada do que nos é relatado daquela época é novo. Isso acontece porque o pensamento ocidental é filho da Grécia clássica. Mas afinal, como ela era?
Antes do século VI a.C. os mitos explicavam, davam sentido ao universo. Além disso, os mitos tentavam esclarecer aquilo que não era imediatamente explicável. A visão mitológica cumpriu seu papel por algum tempo, mas teve que ceder espaço para outro tipo de explicação, bem mais lógica e exigente do ponto de vista dos argumentos.  O mito era mágico e baseava-se na imaginação. A Filosofia passou a utilizar essa imaginação criativa, mas a coloca sob as rédeas da razão. Era então o momento propício para que o sentido das coisas fosse dado pelo logos. Essa mudança não foi tarefa fácil. Os gregos sofreram a influência da cultura oriental onde puderam perceber os contrastes entre as idéias que predominavam na Grécia e entre outras idéias de outros povos.
A questão geográfica é relevante para entendermos porque a filosofia na Grécia desenvolveu-se. A Grécia é montanhosa fazendo com que seu litoral fosse usado para expansão em direção ao exterior. Essa expansão a colocou frente a novas culturas, economias e constituições políticas.
Foi em Atenas que a filosofia teve seu esplendor. Em Atenas as artes, a filosofia e a política estavam protegidas e cultuadas.  Sob o governo de Péricles, a capital da Grécia atingiu seu apogeu; isso no século V a.C. Nesse mesmo período o escravismo atingiu seu auge.  Alguns eram escravos por nascimento, outros obtidos pelas guerras e ainda outros se tornavam escravos por dívidas. O que tinham em comum era a ideia de que eram instrumentos de trabalho. Através da riqueza obtida pelo trabalho escravo, Atenas tornou-se o símbolo da democracia. A democracia baseava-se nos cidadãos livres. Para ser considerado cidadão a pessoa tinha que ser maior de dezoito anos, filho de pais atenienses e ser do sexo masculino. A cultura da democracia avançou tanto que foi criado inclusive um instrumento para banir temporariamente uma pessoa “nociva” a sociedade; uma espécie de plebiscito. Essa votação chamava-se ostracismo. Ele acontecia quando um cidadão era denunciado à assembleia Popular como sendo uma pessoa prejudicial à cidade. Caso fosse condenada, seria expulsa e teria seus direitos políticos cassados por até dez anos.
O que faz a polis grega ser assim tão especial? Era especial porque o centro da vida política era a praça onde se debatiam os problemas da cidade. Nessas praças também se fazia o mercado e era onde se reuniam as assembleias do povo (cidadãos). A ágora era o diferencial das cidades gregas. É na ágora que a justiça é posta em prática, onde todo o cidadão tem poder e voz.  A justiça passa a ser algo político e não mais somente moral. A palavra é o que faz a polis. O saber e a política são construídos pela reflexão dialogada. Não são os deuses que fazem a polis e sim os homens, os cidadãos.  A organização das cidades dava-se através da razão. Entenderam que se a ordem pública não tinha origem divina, os homens eram totalmente responsáveis pelas leis e pela sociedade.  Então a política assume vital importância nos debates públicos.  A figura do escravo é algo interessante: a principal característica do escravo está na ausência da fala. A escravidão estava mais na ausência da fala do que no seu direito de ir e de vir.
O que teve relevância na democracia de Atenas foi a participação direta do povo. As assembleias eram soberanas e todo o cidadão podia intervir ou propor leis Inclusive o cidadão deliberava sobre a guerra e a paz. Para que essa participação fosse possível, todo o ateniense homem deveria ser alfabetizado e dominar a aritmética. Além disso, as eleições para cargos públicos eram bem diferentes das nossas eleições atuais: era por sorteio para que todos pudessem participar. As pessoas então teriam conhecimento e experiência para poderem deliberar na ágora.
A ágora era onde aconteciam as mais variadas atividades. As pessoas podiam discutir sem medo. Desde que não infringisse as leis, tudo era permitido. Na praça havia danças religiosas, negociações para compra e venda de mercadorias além dos habituais bate papos sobre a vida política.  Inclusive era na ágora que acontecia a votação do ostracismo. Podemos dizer que a alma, a vida da cidade estava na ágora.

Somos amantes da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia sem indolência. Usamos a riqueza mais como uma oportunidade para agir que como um motivo de vanglória; entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la. [1]

A Grécia era constituída por diversas cidades-Estados. Estas eram independentes, cada uma delas tinha sua forma de governo, suas leis e sua moeda. Por isso eram chamadas de polis. Cada polis possuía seu sistema de governo próprio. No início a monarquia, depois as oligarquias (proprietários de terras) e por fim a democracia.  Como já foi dito, a democracia não prescindiu dos escravos. Eles desempenhavam desde funções de um trabalhador braçal até atividades administrativas. Mesmo assim juridicamente não existiam, não tinham direitos e pertenciam a alguém. Além dos motivos econômicos, os escravos eram importantes para que os cidadãos tivessem tempo para a política.  O cidadão podia então dedicar-se ao exercício da cidadania cuidando da política, além disso, podia dedicar-se a filosofia! Foi essa discussão pública que afastou as decisões da interpretação dos oráculos. As decisões passam a ser coletivas e produzidas por homens. Apalavra escrita e falada sai dos templos mágicos para ser usada pelos cidadãos. Esse é um grande avanço nas relações entre as pessoas. As relações passam a ser discutidas e reguladas através da argumentação.

Mas os órgãos que realmente mandavam eram o conselho, formados por 500 cidadãos sorteados (inclusive entre as classes pobres), e a assembleia, da qual todo cidadão (homem, filho de pai e mãe atenienses, com mais de 18 anos) era membro permanente. Até as decisões dos generais passavam por ela. O conselho preparava a legislação a ser submetida à assembleia, que era soberana para vetar a medida ou pedir modificações. Revista Aventuras na História, para viajar no tempo. Edição 68, março de 2009. Pág. 31

A democracia ateniense deu o governo ao povo. Mas quem era o povo? Eram poucos, pois excluía os escravos, estrangeiros, crianças e as mulheres. Além disso, para ser cidadão, era preciso ter nascido em Atenas. Apesar desses limites a democracia tornou-se um exemplo para as demais cidades gregas. Atenas era um centro político. O apogeu de Atenas aconteceu durante o governo de Péricles. Governou durante quinze anos (444 a 429 ªC). No comando de Péricles as assembleias populares conseguiram deter amplos poderes políticos. Foi o auge cultural de Atenas e o desenvolvimento do teatro. Ele cercou-se dos maiores pensadores do seu tempo como o escultor Fídias, o poeta trágico Sófocles, o historiador Heródoto e o filósofo Anaxágoras. Apesar disso a escravidão continuou durante seu governo.

 A felicidade: [2]


A questão moral fundamental em Aristóteles é a do bem supremo. E esse supremo bem é ainda e sempre a felicidade. A felicidade (eudemonia) consiste na realização perfeita da natureza humana. Entendemos natureza como sinônimo de essência.
Todas as ações são realizadas com o objetivo de atingir algum bem. Qual, então, o bem que seja desejado por ele mesmo?  Esse bem, embora não haja acordo sobre em que consiste, é a felicidade.  Podemos dizer que a eudemonia é uma atividade da alma de acordo com a excelência (excelência é a melhor forma de vida possível). A excelência é atingida através de uma sabedoria prática obtida pela aprendizagem.
A eudemonia é o estado de um homem no qual a natureza humana e suas plenas aspirações se realizaram plenamente e em conformidade com a verdade hierárquica dos fins dessa natureza. Quais são os fins da nossa natureza? Qual o sentido da vida?   Três coisas, principalmente, constituem a felicidade: a sabedoria, a virtude, o prazer. Pois a vida perfeita e feliz é a mais bela e a melhor das coisas e também a que produz mais alegria.  Aqui há uma ordem, uma hierarquia de importância: 1o a sabedoria que á a posse pelo espírito da verdade contemplada. A sabedoria é contemplativa, uma atividade de repouso e fruição. A contemplação vale mais que a ação. A vida perfeita é antes de tudo teórica. 2o a virtude. A vida segundo a virtude é, evidentemente, parte integrante da realização plena da natureza humana. 3o o prazer. Vem, por acréscimo, por assim dizer. Aparece como resultado necessário.  O homem não pode viver sem uma certa dose de alegria. Essa espécie de contentamento interior chamamos de prazer. É a recompensa natural de uma vida virtuosa. Essas três espécies de bens são interiores à alma. Outros bens externos são partes integrantes da felicidade: a amizade, a saúde, a posse de bens materiais.

A ética:

O homem é um ser racional. Consequentemente o seu bem ou a eudaimonia deve constituir na atuação da razão. A perfeita atuação da razão verifica-se na contemplação, logo, a felicidade consiste na contemplação. Como foi dito antes, não podemos esquecer que para ser feliz os bens materiais também são necessários, pois a contemplação pode ser perturbada por outras preocupações.
O meio para se conseguir a felicidade é a virtude. Por virtude Aristóteles entende o hábito de escolher o justo meio. Quem o estabelece é o sábio. A virtude é uma disposição para escolher; ela consiste na escolha do justo meio relativo a nossa natureza, efetuada segundo um princípio racional e fixado pelo homem prudente (ética a Nicômaco). Assim, a virtude é o hábito de praticar ações que estejam no meio entre dois excessos. Daí o dito: “In medio stat virtus”.
Aristóteles não identifica a virtude com o saber, como fizera Platão, mas dá importância também à escolha, a qual depende mais da vontade do que da razão.
Consoante sua doutrina metafísica fundamental, todo ser tende necessariamente à realização da sua natureza, à atualização plena da sua forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por consequência, a sua lei.      Visto ser a razão a essência característica do homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e sendo disto consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é, consegue a felicidade mediante a virtude, que é precisamente uma atividade conforme à razão, isto é, uma atividade que pressupõe o conhecimento racional. A característica fundamental da moral aristotélica é, portanto, o racionalismo, visto ser a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento absoluto, metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual o homem deve operar.
     As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; mas implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão, e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo[3] platônico. A virtude ética não é, pois, razão pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência. Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do intelecto, da filosofia, sobre a ação, a vontade, a política.
    A virtude também é concebida como hábito racional. Se a virtude é, fundamentalmente, uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão, um costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a virtude não é inata, como não é inata a ciência; mas adquire-se mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se, mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de fácil execução - como o vício.







[1] Texto de Tucídides. In: Pedro, Antônio. História da Civilização Ocidental: ensino Médio. São Palo, editora FTD, 2004,. Pág.57
[2] Maritain, Jacques. A Filosofia Moral.  Livraria Agir editora, Rio de Janeiro. 1964.
[3] Desvaloriza os aspectos corpóreos e sensíveis do homem.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Lei das 12 tábuas

Prof. Amilcar Bernardi



A lei das doze tábuas é o início de toda uma evolução no direito romano.  Pela primeira vez surgia uma lei escrita, feita por homens, clara e uniforme. É evidente sua laicidade, generalidade e impessoalidade. Nelas havia a especial preocupação em proteger a propriedade privada e a agrícola, bem como zelar pela integridade física (e moral) dos cidadãos e da ordem da cidade. Tais preocupações estão presentes em nosso ordenamento jurídico.  Nossas leis republicanas ainda guardam esse fundamento clássico. Apesar do infanticídio permitido e das penas cruéis, há uma tentativa de obter-se a equidade entre os livres (lembrando que os escravos estavam alijados da justiça, eram coisas). No que tange ainda ao direito penal e sua rudeza, convém lembrar que os tempos também eram rudes.
Quanto a brutalidade das penas das doze tábuas, é provável que gerações futuras critiquem as penalidades atuais impostas aos transgressores da lei, ainda mais quando tiverem acesso às informações de como são nossos presídios e de como tratamos nossos apenados. Portanto, resguardadas as proporções históricas que nos separam, a lei das doze tábuas (suas preocupações) e sua rudeza ainda estão presentes no ordenamento jurídico atual.
A Constituição Federal de 1988 protege a propriedade. A magna carta reconhece às pessoas o direito de serem proprietárias de algo. Evidentemente a propriedade de algo não vedada em lei. A plenitude de gozo da posse, atualmente é abrandada quando é estipulada a função social dela. Isso quer dizer que ao dono não é dada a posse absoluta e sim que há uma relação com terceiros. O grupo social não poderá ser prejudicado em nome da propriedade. O Estado, inclusive, poderá intervir na propriedade privada e nas atividades econômicas para propiciar o bem estar coletivo, desde que obedeça aos limites constitucionais que amparam o interesse público e garantem os direitos individuais. O direito sempre se preocupou com a propriedade. Provavelmente o surgimento do direito está relacionado com a questão da propriedade. Os romanos também trataram desse assunto na tábua sexta, protegendo e limitando (usucapião) a propriedade. Ela não tinha uma finalidade social (como na Constituição de 1988), porém o usucapião já era reconhecido, ou seja, a posse continuada da terra poderia gerar sua propriedade. Portanto, zelando pela estabilidade e regulando possíveis conflitos, os romanos clausularam o direito ao usucapião. Em relação ao comércio de bens moveis, a regulamentação era clara. E mais, havendo litígio, já não era permitida a violência na resolução, mas é regulada a intervenção de um terceiro, o pretor. Outro avanço era a instituição de multas ao invés de somente penas corporais. Assim como no nosso atual Código Penal, a preocupação com a relação entre delito e pena já  mostrava-se relevante. Também preocupam-se os romanos clássicos com a segurança jurídica quando no item um das doze tábuas, é reconhecido o império da promessa, que tem força de lei. O tempo do direito, sua ligação com o futuro, é garantido.
A atual Constituição Federal adotou como princípio a igualdade de direitos, ou seja, que todo o cidadão tem direito a tratamento idêntico pela lei. As diferenças feitas de modo arbitrário estão expressamente vedadas e se houver alguma diferenciação, que seja para tornar a aplicação da lei mais justa. Os constituintes de 1988 queriam que os cidadãos gozassem de tratamento isonômico pela lei. Levando em consideração o contexto histórico da lei das 12 tábuas, inclusive existindo num ambiente de escravidão e guerras, cumpre salientar que o princípio citado em nossa constituição, estava já se apresentando no ambiente da Roma antiga. Vê-se na tábua nona o imperativo que impede privilégios previstos em lei. Ainda mais, é defeso fazer lei contra indivíduos. Hodiernamente, nossa lei máxima impõe o princípio da impessoalidade, expresso no artigo 5º, no seu caput.
O código civil brasileiro, sob a égide da Constituição Federal rege, entre outras coisas, a posse de bens. Para tanto, faz distinções entre boa e má fé, regula o tempo de uso do bem e suas consequências, as vontades nas trocas, enfim, pretende a organização harmônica das posses e o exercício justo da propriedade.  A esses temas, não foram omissas as doze tábuas.  Essas questões eram cuidadas com muita rigidez e, para os moldes do século XXI, as inobservâncias eram punidas com crueldade. Diferentemente da contemporaneidade, os castigos corporais eram previstos e vistos com naturalidade. Impúberes poderiam ser açoitados com varas e alguns crimes contra o patrimônio poderiam ser castigados com a morte. Exemplificando, trazemos a tábua sétima, onde ela legaliza o açoite do impúbere e o lançamento ao fogo de quem incendiar intencionalmente uma casa ou um monte de trigo. Também havia multas e percebe-se a intenção de equalizar a extensão do dano e a punição equivalente. Essa preocupação na dosimetria da pena ainda é assunto recorrente. Tanto quanto no código civil atual, fica patente a intenção dos criadores das doze tábuas, sua intenção de proibir os atos que prejudicassem os proprietários, não só protegendo a propriedade quanto punindo (ainda hoje é assim) quem atente contra a ordem estabelecida nesse sentido.
Desde a “invenção da propriedade privada” e, por consequência, a consolidação de leis que a defendessem, o homem passou a pensar na sua descendência. A mortalidade e a propriedade deveriam, no plano jurídico, ser contempladas. Portanto, a questão da herança é inseparável da defesa e manutenção jurídica da propriedade. No Brasil o direito a herança é considerado um direito fundamental, sacramentado no artigo 5º da magna carta. Evidentemente que não só nela, mas no Código Civil e no código de processo civil. Portanto, disciplinar a herança sempre foi de suma importância. São postas questões como quem são os herdeiros e sua legitimidade, ou qual a sucessão desses herdeiros no direito a usufruir da herança. O direito hereditário é muito complexo e fartamente ordenado nos documentos legais já citados. Evidentemente que os romanos clássicos também tiveram que superar esse problema e organizá-lo. A tábua quinta trata disso. Ela regimentava com tanta preocupação quanto é hoje, as disposições testamentárias do genitor (hoje, dos genitores) sobre seus bens ou sobre a tutela de seus filhos. Evidentemente há filtros legais hodiernos que modificam a normatização dessa tábua; mas em essência, mantêm-se o direito do possuidor de bens destinar sua herança (mesmo que de forma limitada). Inclusive o legislador romano atentou que os descendentes herdassem as dívidas também. Demonstrando perspicácia, esses legisladores previram até que se alguém for “louco ou pródigo” que não tenha livre acesso aos bens herdados.

Fica claro que as legislações ocidentais foram fortemente influenciadas pela história do direito romano. Mesmo que essa conclusão nada tenha de novidade, serve mais para aclarar essa influência, ficando mais nítidas as raízes históricas dos nossos ordenamentos jurídicos contemporâneos.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Dicas sobre Comte

Dicas sobre Comte (1798 – 1857)

- Preocupava-se com os efeitos da Revolução Francesa (desordem social).
- Para aprimorar a sociedade achou necessária uma nova ciência (a Sociologia).
- Criou uma ciência aplicando o método científico à sociedade (ciência positiva – Física Social).
- “Pai” do positivismo. A metafísica é impossível. Só o sensível é objeto o conhecimento, só o sensível é real.
- Lei dos três Estados:
Teológico
Metafísico
Positivo
- Como dinâmica social ele reconhecia a ordem e o progresso (inseparáveis).
- Divide a sociologia em duas partes:
Estática: Ordem. Condições de vida da sociedade.
Dinâmica: Progresso. Movimento, evolução.
- Segundo este autor as revoluções violentas são prejudiciais ao progresso.
- A necessidade de ordem inviabiliza os conceitos de soberania popular. O ideal de liberdade é outra ilusão. Prevalece a ordem e a hierarquia.




terça-feira, 27 de maio de 2014

SÓCRATES “Sei que nada sei”

Prof. Amilcar Bernardi

Para os Cristãos, Cristo é um divisor de águas. Existe a história antes de Cristo e a depois de Cristo. Para a filosofia ocidental, temos os pré-socráticos e os pós-socráticos. Também Sócrates é um divisor nas águas revoltas da história da filosofia.  Com esse pensador a preocupação grega passa a ser a ética e a política e não mais a natureza, como nos pré-socráticos.
Sócrates argumentava de maneira forte contra os que acreditavam saber algo. Acaba confrontando com o Estado, pois sua ironia colidia contra as práticas dos políticos da época. Acaba por ser condenado à morte. A acusação: desrespeitar os deuses e corromper a juventude. Na verdade o que havia contra Sócrates era seu cruel questionamento dos valores da época. Manda-lo à morte foi imortaliza-lo, pois seu desaparecimento naquelas circunstâncias marcou seus contemporâneos. Quando estava em frente aos 501 cidadãos do júri, ironiza os acusadores e pouco se defende. O júri então o condena a morrer bebendo cicuta.

Esse brilhante pensador optou por manter diálogos com as pessoas. Dialogava com qualquer um em qualquer lugar. O ponto alto desses diálogos era a refutação. As afirmações dos interlocutores eram desqualificadas por Sócrates. O Filósofo levava as pessoas a se contradizerem. A dificuldade está em que Sócrates não escreveu tais diálogos. Ele valorizava mais a fala viva do que a letra morta.  Seu principal discípulo, Platão, registrou seus ensinamentos. Isso trará outro problema: estamos estudando Sócrates ou Platão?
Platão nos mostra Sócrates nas praças de Atenas ironizando e questionando as pessoas. Esse questionamento era cruel, muitas vezes acontecia de forma grosseira.  Iniciava suas questões muitas vezes pela definição: “O que é isso que falas?” As idéias e as virtudes deveriam ser definidas com exatidão. Descobriu Sócrates que as pessoas não sabiam do que falavam! Ele faz uma espécie de análise de conceitos em seus diálogos.


Os sofistas também agiam semelhantemente ao Sócrates, porém, intencionavam diretamente preparar uma elite, futuros governantes. Para isso ensinavam de maneira enciclopédica e com ênfase na eloquência.


Sócrates nas suas indagações quer se afastar do senso comum e aproximar-se dos conceitos mais precisos e ricos. Podemos dizer que ele parte do que já sabemos (senso comum) para um conhecimento mais elaborado. Essa busca pelo conhecimento mais elaborado é pessoal, ninguém pode fazer pela pessoa. Por isso esse filósofo perguntava sempre, nunca respondia. A pessoa, através da própria reflexão, devia achar as respostas. Ele motivava o aprendiz com seus diálogos em praça pública.
A introspecção é característica da filosofia socrática. Exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo. – isto é, torna-te consciente da tua ignorância.
Sócrates não gostava que o chamassem de sofista. Mas é fato que tinha uma vida semelhante a eles. Não recebia dinheiro por seus ensinamentos, mas semelhantemente aos sofistas, falava nas praças públicas. Os jovens adoravam ouvi-lo. Ele queria falar sobre coisas práticas, não sobre metafísica. Assim falava sobre autoconhecimento (um dos pontos fundamentais da sua filosofia), política e ética.
Interessou-se sobre o conhecimento de si e dos homens.  Refletia sobre esse tema em público, isso fez com que surgissem muitos curiosos a sua volta, que acabaram tornando-se seus discípulos.  Acreditava que o conhecimento vem da discussão, ou seja, da partilha entre as pessoas que querem aprender e ensinar. O saber é construído em conjunto.
Sócrates interrogava as pessoas sobre o que elas acreditavam saber. O resultado era interessante. As pessoas desconheciam o que falavam! Então Sócrates percebe que a sabedoria começa pelo reconhecimento da própria ignorância.  Mesmo sendo esse processo muito doloroso. Quanto mais orgulhosa e preconceituosa for a pessoa, tanto mais difícil será a superação da ignorância. Para estas ele reservava a ironia e a refutação.  A ironia e a refutação levavam as pessoas a aceitarem e confessarem suas próprias contradições e ignorâncias. Só assim estavam livres para descobrirem coisas novas. Ajudava seus discípulos a conceberem suas próprias idéias.  A educação vem de dentro para fora da pessoa. É uma autoeducação que leva ao conhecimento de si mesmo através das discussões (diálogos). 
Não podemos confundir os diálogos com o cultivo da eloquência. Sócrates não queria levar as pessoas a se convencerem através de palavras bonitas, sonoras e atraentes. Utilizava-se da dialética. Buscava através de perguntas e respostas o esclarecimento do que é a vida virtuosa na pólis. Ele queria eliminar a ignorância das almas não confundi-las com sofismas.

O mundo humano

A filosofia de Sócrates volta-se para o mundo humano, psicológico, com finalidades práticas, morais. É cético com relação a metafísica. A única ciência possível e útil é a ciência da prática. Vale dizer, o agir humano – bem como o conhecer humano – se baseia em normas objetivas e transcendentes à experiência.
A gnosiologia de Sócrates baseia-se nesses pontos fundamentais: ironia, refutação, introspecção, ignorância, indução, definição. Antes de tudo, temos que desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões; é este o momento da ironia, isto é, da crítica. A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro (a ciência) mediante a razão.  O mestre deve tirar a instrução da mente do discípulo. O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do particular ao universal, da opinião a ciência, da experiência ao conceito.

A ironia, a refutação e a maiêutica

Entre os gregos a ironia era considerada uma atitude do espírito detestável. Segundo Aristóteles, o irônico peca contra a veracidade porque, em seus discursos, se recusa a revelar as suas qualidades, oculta seu saber sob a capa de uma ignorância fingida e se protege atrás de um comportamento negativo. Os contemporâneos de Sócrates o condenaram por ela. A ironia e a refutação acabam, nas mãos de Sócrates, se tornando uma atitude pedagógica e filosófica.  Essa atitude tem a finalidade de pôr a descoberto a vaidade, de desmascarar a impostura e de seguir a verdade. Ao desprezar o que a sociedade preza, ameaça as opiniões correntes e os valores consagrados. Era, dessa forma, um cidadão crítico ao questionar o que se tinha como verdade.
Com suas perguntas Sócrates deixava embaraçado e perplexo aquele que está seguro de si mesmo. Conceitos até então estáveis são vistos como problemas. Atiçava a curiosidade e a reflexão. A sua arte educativa pode ser comparada com a de sua mãe, porque ele é como o médico que ajuda nos partos do espírito. Por causa deste aspecto o método de Sócrates é chamado de maiêutica.
Por razões de método (e não por incapacidade), seus diálogos levantavam uma questão, mas não davam a solução. Servem para pôr o interrogado no caminho da solução e para que ele mesmo a encontre.

Ensinamentos filosóficos:

 Sócrates não se interessa pelos princípios supremos do universo, mas pelo valor do conhecimento humano. Não questiona o cosmos, antes de tudo examinava se os homens haviam aprofundado suficientemente os conhecimentos humanos, para se ocuparem de tais assuntos.
Na psicologia, a doutrina socrática gira em torno da imortalidade da alma. Para ele a alma é superior ao corpo e encontra-se nele como numa prisão. A morte libera a alma desta prisão e lhe abre a porta de uma vida melhor. Deve-se cuidar da alma e não temer a morte.
Quanto ao conhecimento, faz uma distinção entre opinião e verdade. O conhecimento sensível por si só não pode fazer-nos conhecer a verdade, mas somente opiniões mais sólidas. O homem é dotado só de conhecimento sensitivo. Mas, além disso, existe outro conhecimento, o intelectual. Este vai além das aparências sensíveis, porque extrai das coisas a sua verdadeira natureza, formando na mente uma noção, um conceito, de valor universal.
Sócrates foi o primeiro filósofo que procurou determinar a natureza do conceito universal e que mostrou que ele é muito diferente da opinião. A opinião varia de individuo para individuo, ao passo que o conceito universal é necessariamente o mesmo para todos.
O procedimento para chegar a aquisição do conceito universal é o indutivo.

Indução: Raciocínio cujas premissas têm caráter menos geral que a conclusão.
        
Das definições de valor limitado passa-se para definições menos imprecisas até chegar-se à definição adequada. Quando Sócrates quer definir a justiça, por exemplo, pede aos interlocutores uma definição e demonstra que ela é insuficiente. Pede outra definição e faz o mesmo... até chegar a uma definição mais satisfatória.
Para Sócrates a moralidade identifica-se com o conhecimento: a sabedoria é virtude e a virtude identifica-se com a sabedoria. Se o homem peca, é por ignorância, porque não é admissível que, conhecendo o bem o mal, escolha o mal e não o bem. Os homens que fazem o mal ignoram o bem ou não sabem que o que escolheram é mau. Ele incita seus ouvintes a procurarem a verdade e a sabedoria, porque somente a verdade e a sabedoria tornam o homem livre e virtuoso.


sexta-feira, 2 de maio de 2014

Resenha: Jean Jaques Rousseau

 JEAN JACQUES ROUSSEAU

Prof. Amilcar Campos Bernardi


Rousseau nasceu em Genebra, a 28 de junho de 1712, morre em 02 de julho de 1778. É nascido em Genebra, mas na França é que produz suas grandes obras.  Tem em seus escritos um tema dominante: a relação entre a natureza e a sociedade, a moral fundada na liberdade, primazia dos sentimentos sobre a razão, a teoria da bondade natural do homem e a doutrina do contrato social. Foi um dos pensadores que mais se aproximou dos anseios populares, pois defendia a soberania do povo. Espantoso para a época foi Rousseau criticar o individualismo burguês antes da burguesia se consolidasse no poder. Influenciou e foi influenciado pelo iluminismo. A Revolução Francesa teve influência dos escritos de Rousseau.
Rousseau defende os valores oriundos da vida natural. O estado de natureza é a garantia de dois princípios inalienáveis: a liberdade e a igualdade; princípios esses violados com a formação da sociedade civil e a instituição da propriedade. Tal violação é descrita por Rousseau em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754.  Ele vai dizer que a sociedade civilizada é vil, corrupta e avara.  Não critica toda a sociedade, mas aquela que acorrenta o homem. Acredita que a liberdade que o selvagem desfrutava (em seu estado de natureza) era o oposto dos liames sociais que hoje nos une (uma sociedade artificial). Os homens renunciaram a seu estado de natureza através de um pacto social. O pacto faz com que todos se submetam a uma vontade geral; cada pessoa deve obediência apenas ao Estado. Essa obediência só é livre enquanto o Estado representar a vontade geral. Somente o povo é fonte da legitimidade do Estado.  Ninguém está submetido à vontade individual, o cidadão vai obedecer somente às leis que, por sua vez, representam a vontade geral. A vontade geral não é a soma das vontades particulares. “Se, quando o povo suficientemente informado delibera, não tivessem os cidadãos nenhuma comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa”. Caso as pessoas se agrupassem em associações, haveria o risco de uma associação crescer tanto que sua vontade dominaria, tornando-se então uma vontade particular. 
A civilização é vista por Rousseau como a responsável pela degradação das exigências morais da natureza humana. Essa moral humana é substituída por uma cultura intelectual. Em seu estado de natureza o homem tem tudo. Tudo o que quer é a satisfação das suas necessidades básicas: alimento, algum conforto contra as intempéries e sexo. As paixões que o move são o querer, o desejar e o temer. A ignorância dos vícios e a tranqüilidade de seu coração são condições favoráveis para o surgimento da virtude. Já a uniformidade artificial de comportamento, imposta pela sociedade às pessoas, leva-os a ignorar os deveres humanos e as necessidades naturais. Assim como a polidez e as demais regras da etiqueta podem esconder o mais vil e impiedoso egoísmo, as ciências e as artes, com todo o seu brilho exterior, freqüentemente seriam somente máscaras da vaidade e do orgulho. É a civilização que provoca a desigualdade entre aos homens, portanto, a desigualdade não é algo natural. A vida do homem primitivo seria feliz porque ele sabe viver de acordo com suas necessidades inatas. As necessidades impostas pelo sentimento de autopreservação – que impele o selvagem a ações agressivas – são contrabalançadas pelo inato sentimento de piedade que o impede de fazer mal aos outros desnecessariamente. Evidente que Rousseau não quer o retorno do homem a sua vida nas florestas. O autor quer salientar apenas a sensibilidade perdida com o avanço da artificialidade da civilização.  São os excessos civilizatórios que são denunciados.
Assim como Hobbes e Locke, Rousseau procura resolver a questão da legitimidade do poder fundado no contrato social. No entanto, sua posição é, num aspecto, inovadora, na medida em que distingue os conceitos de soberano e governo, atribuindo ao povo a soberania inalienável. Ele cria a hipótese dos homens em estado de natureza, vivendo sadios, bons e felizes enquanto cuidam de sua apropria sobrevivência. Isso até o momento em que é criada a propriedade e uns passam a trabalhar para os outros, gerando escravidão e miséria. O bom selvagem é feliz até o momento em que é introduzida a desigualdade entre os homens, a diferenciação entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo e a predominância da lei do mais forte.
O homem natural é dotado de livre-arbítrio. A corrupção começa com o início das sociedades civilizadas.  A corrupção começa no momento em que surge a propriedade privada. Para Rousseau o bem máximo é a liberdade. Todos nascemos livres.  Na medida em que a ela renunciamos, renunciamos também a nossa humanidade. A liberdade é um imperativo.
Rousseau sempre pretendeu ressaltar a mais profunda humanidade do selvagem em relação ao homem civilizado.  Mas, embora privado no estado social de muitas vantagens da natureza, na sociedade o homem adquire outras: capacidade de desenvolver-se mais rapidamente, ampliação dos horizontes intelectuais, enobrecimento dos sentimentos e elevação total da alma. Se os abusos do estado social civilizado não o colocassem abaixo da vida primitiva, o homem deveria bendizer sem cessar o instante feliz que o arrancou para sempre da animalidade e fez de um ser estúpido e limitado uma criatura inteligente. O propósito de Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores humanos. Os abusos ocorrem no culto ao refinamento, das mentiras convencionais, da ostentação da inteligência e da cultura. O filósofo concebe dois tipos de desigualdades: uma natural ou física, fruto da natureza.  Essa desigualdade pode ser de robustez, saúde ou de qualidades do espírito. A outra desigualdade – moral ou política – vem pela convenção social e consentida pelos homens. Como não é possível modificar o que é de natureza, resta denunciar as desigualdades por convenção.  Rousseau faz essa denúncia no Discurso sobre a desigualdade. O “conserto” das discrepâncias da vida em sociedade ocorrerão num novo Contrato . Nesse contrato a liberdade deve ser garantida. A obediência ilegítima é aquela que tem como fundamento a força. Da força não podemos extrair moralidade, o poder físico por si só é irracional. A liberdade natural está sempre ameaçada pela força e pela dominação. Por esse motivo a liberdade natural é infensa à coerção. É necessária uma nova liberdade,  a liberdade civil.

O contrato social:

 Rousseau imagina a gênese das primeiras comunidades a reunião de pessoas para a realização de algum trabalho. Talvez alguma tarefa que fosse impossível de ser feita por um só.  Talvez a defesa contra algum animal. Essa união, tendo sucesso, proporcionou que se repetisse. Até que formou hábito. O grande problema é que o refino cultural provocou a desigualdade. Os mais hábeis ou fortes se sobressaíram dos demais. Então se criou a propriedade, a inveja, o orgulho e a falsidade. Rousseau tinha uma questão bastante crucial: o contrato deve garantir a segurança e o bem estar das pessoas mantendo-os livres. Para isso afirma que a soberania política deve manter-se no conjunto dos membros da comunidade. A vontade particular e individual diz respeito a interesses particulares. Estes interesses devem submeter-se ao interesse coletivo materializado no contrato social. O homem natural não tinha a consciência daquilo que possuía, nem tampouco do que possuía o semelhante. Isso parece fazer parte da idéia de que tudo era de todos. E, se tudo era de todos, o egoísmo, a vaidade e a ambição eram sentimentos inexistentes. Mas não é a propriedade em si o grande problema da civilização. A questão é a ambição em querer ficar acima dos outros. Assim os homens produzem não mais para suprir suas necessidades básicas, mas para lucrar à custa dos outros.
Diz Rousseau:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembro-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.
O único fundamento possível para a construção e a manutenção do poder político é o pacto social. Os contratos existentes são um falso contrato, coloca os homens sobre grilhões. Numa espécie de dever ser, um ideal, diz que o contrato social para ser legítimo, deve se originar do consentimento necessariamente unânime.  Cada associado se aliena totalmente, ou seja, abdica sem reserva de toso os seus direitos em favor da comunidade. Mas, como todos abdicam igualmente, na verdade cada um nada perde, pois este ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e vontade. Ou seja, pelo pacto, abdicamos de nossa liberdade, mas sendo nós mesmos partes integrantes e ativas do todo social, ao obedecermos à lei, obedecemos a nós mesmos e, portanto, continuamos livres.  Assim o povo não perde a soberania, pois não é criado um Estado separado dele mesmo. O Estado é uma livre associação de pessoas reacionais. São elas que livremente resolvem criar uma sociedade contratual. Será um contrato que obriga a todos, mas também mantém a liberdade, pois foi legitimamente criado.
 O soberano é para Rousseau o corpo coletivo e expressa, através da lei, a vontade geral. A soberania é do povo, manifestada pelo legislativo, e é inalienável. A democracia rousseauísta considera que toda lei não ratificada pelo povo em pessoa é nula. O povo não está submetido ao governo. Ao contrário, não há um superior, já que os depositários do poder não são senhores do povo, mas seus oficiais, podendo ser eleitos ou destituídos conforme a conveniência. Os magistrados que constituem o governo estão subordinados ao poder de decisão do soberano e apenas executam as leis, devendo haver inclusive boa rotatividade na ocupação dos cargos. Encontramos aqui a democracia direta ou participativa, mantida por assembléias freqüentes de todos os cidadãos. Somente o povo é fonte legítima da soberania do Estado.
Enquanto soberano, o povo é ativo e considerado cidadão. Mas há também uma soberania passiva, assumida pelo povo enquanto súdito. Então o mesmo homem, enquanto faz a lei é um cidadão e, enquanto a ela obedece e se submete, é um súdito.
Importante lembrar que Rousseau trata a democracia de maneira diferente dos demais contratualistas. Ele exige a participação direta  do povo no ato legislativo. A forte crítica ao Estado representativo permite uma interpretação de Rousseau como um crítico do liberalismo, teoria emergente em sua época. A crítica refere-se ao Estado liberal, como uma instituição que surgiu para converter em direito o que os burgueses já possuíam enquanto força, através da instituição da propriedade privada.

A vontade geral:

Rousseau imagina os homens originariamente isolados em um estado de natureza. Daí surge historicamente o Estado como escravidão, depois o despertar-se e o chocar-se dos egoísmos particulares. Este Estado tirânico deverá ser substituído pelo Estado como liberdade, isto é, como expressão da vontade geral, dos interesses comuns, humanos, universais.  A fundamentação do Estado rousseauniano é a vontade geral, que surge do conflito entre as vontades particulares dos cidadãos. A tendência humana em defender os interesses privados acima da vontade coletiva, faz com que a assembléia, enquanto um processo de decisão, seja o espaço da destruição das vontades particulares em proveito do interesse comum. A vontade geral é diversa da vontade de todos, como valor qualitativo é diferente do valor quantitativo, como o povo é diverso da multidão. A soberania política não compete ao soberano, mas a vontade geral, ao povo. O governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular. O soberano é o povo, entendido como vontade geral. Ela é uma força superior ao indivíduo. É uma obediência ao bem comum, portanto, é uma obediência livre, pois o individuo está abrangido pela vontade coletiva. Assim o individuo passa a pertencer a um corpo moral em obediência a uma lei que foi criada por ele mesmo. Assim agindo os homens se guardam dos vícios e o leva em direção a virtude, a bondade genuína que só existe na vontade geral. É papel da educação ensinar desde criança a vontade geral aos cidadãos.
Para que a vontade geral seja genuína, no pacto social, cada um dos indivíduos se entrega totalmente à comunidade. Como todos se entregam, cada um nada perde. Nas palavras de Rousseau: cada um dando-se a todos não se dá a ninguém. O individuo deu tudo que tinha, mas recebeu tudo o que os outros tinham. E assim que recebeu, devolveu. O que de fato ganhou foi a força de pertencer a um corpo político coeso e livre. A vida e a força desse corpo são a união de seus membros. Por conseqüência, as leis seguidas pelo povo são reflexo dessa vontade geral. E essa vontade que dá legitimidade a lei. Assim será garantida o respeito ao interesse público. Uma vez estabelecida a vontade geral, está estabelecido o verdadeiro Direito. A lei é o povo que faz, ao mesmo tempo em que o próprio povo lhe é submetido. O Direito deve ter como meta a utilidade pública e o bem-estar dos cidadãos. Isso difere da simples democracia, onde a lei vem da vontade da maioria.
Ensina o Filósofo no Contrato Social, livro II, cap. 7:
Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir com capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo completo e solitário, em parte de um todo maior, do qual de certo modo deste individuo recebe sua vida e seu ser; alterar a constituição do homem para fortificá-la; substituir a existência física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma existência participativa e moral. Em uma palavra, é preciso que se destitua o homem de suas próprias forças para lhe dar outras, não próprias, das quais não possa fazer uso sem socorro alheio.

A vontade geral pode ser representada?

A vontade não pode ser representada. Não é possível a representação da vontade de um cidadão para o outro. A vontade só será geral se tiver a participação de todos os cidadãos.  A soberania só existe se for de todo um povo. Essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei.  O poder ser transmitido, porém, não a vontade. Nas palavras de Rousseu alienar significa dar ou vender. Nenhuma pessoa se dá ou se entrega gratuitamente.  Só um louco faria isso e loucura não constitui direito: Renunciar à liberdade  é renunciar à qualidade de homem.
O corpo político sé é sólido quando baseia-se na vontade geral. Então, todos os cidadãos do Estado devem estar presentes nas deliberações. Aqui Rousseau afirma algo semelhante a polis grega.  A ausência nas deliberações enfraqueceria o caráter da vontade geral. Segundo o filósofo o corpo político é composto de tantos membros como a assembléia de votantes, o qual recebe deste mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Aqui todos precisam participar sob o princípio da igualdade. Isso é importante porque o interesse de um representante sempre é privado e não poderá expressar o que os outros têm a dizer. Quando as questões públicas deixam de ser as principais preocupações dos cidadãos, os interesses particulares se sobressaem arruinando o Estado.





Bibliografia:

Chalita, Gabriel.  Vivendo a Filosofia.São Paulo, editora Atual.2004.
Marcondes, Danilo. Iniciação à história da Filosofia: dos pré-socráticos a           Wittgenstein.   Rio de Janeiro, editora Jorge Zahar. 2004.
Padovani, Humberto. História da Filosofia São Paulo, editora Melhoramentos. 1967.
Rousseau, Jean-Jaques. Do contrato social e Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Coleção Os pensadores, Volume 1. Editora Nova cultural, 1997.





 




Imagem: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMfe_rLE7k7sBMqPOw5OhyphenhyphenmTHb1kt-BWcLI0NNC8k0EZW7kBB1MZLpzubF_R4ovhRO-T9AoUDL1riSDPRN6jW7CTIZuiLfHC89V3BLQWq-GlLHZT2g0QLb5oDxO_d6qhcWbCYRw2McvBM/s1600/ROUSSEAU+(1).jpg (em 02/05/2014)

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Direito penal e as regras de convivência nas escolas






Pesquisei, de maneira muito breve, quase irresponsável, os sites de várias escolas particulares e públicas. Todas que pesquisei, ao se manifestarem sobre as regras de convivência dos alunos, concebiam apenas duas possibilidades para trabalharem a indisciplina: puniam (suspensão e expulsão) ou advertiam (numa espécie de prevenção, avisando do comportamento inapropriado). As regras de convivência apresentavam-se de maneira bem genérica. Genérica para atingir o maior número possível de alunos, tornando-se – as regras – onipresentes. Tais normas acabam por atingir o aluno mais frágil, os “pobres” de notas e os “desviantes" (raramente atingirá o aluno de boas notas (“rico” de notas), ordeiro e com uma família equilibrada, por exemplo). Assim como no direito penal, um grupo (no caso as equipes diretivas) estabelece regras e, por consequência as punições e advertências. As punições, que na lei penal tem seu ponto alto no afastamento da pessoa da sociedade, tem similaridade nas escolas, que também propõem afastamento/expulsão do aluno do espaço social da sala de aula. As advertências nada mais são que avisos sobre a possibilidade dessas mesmas expulsões! As escolas ensinam matemática, português, ciências, enfim, ensinam conteúdos, tendo muita dificuldade em ensinar o respeito à vida em comum. Tanto as regras de convivência escolar quanto o direito penal existem mais para o medo do que para educar cidadãos.


O direito penal cuida das normas jurídicas estabelecidas pelo Estado. Tem como finalidade proibir ou prevenir condutas consideradas ilícitas. Faz isso através das sanções penais. A mais pesada no nosso país é a privação da liberdade. Em contrapartida a prevenção, grosso modo, baseia-se na coação psicológica. Afinal, a possibilidade de ser apanhado pelo Estado é muito grande, então o medo nos põe nos trilhos. As sanções atingem primordialmente os pobres e os diferentes. As regras de convivência escolar fazem semelhante, punem os “pobres” de notas e os destoantes.



Com o amplo reconhecimento hoje dos direitos humanos, da dignidade das pessoas, do direito à liberdade, ao convívio familiar e à igualdade pelo fato de todos sermos humanos, há uma tendência a limitar o arbítrio dos “fazedores” das leis e (por consequência) limitar o apelo às punições (como primeira opção). As escolas também seguem o mesmo caminho, porém, de forma mais lenta. As regras disciplinares das escolas ainda apresentam soluções monocórdias para o problema do desvio dos padrões disciplinares: a exclusão ou a ameaça de exclusão da sala de aula (e exclusão da aprendizagem, portanto).  De maneira similar, quando o juiz determina a prisão de alguém – que não sabe viver em sociedade -, o priva dessa mesma vivência em sociedade.



Se a escola ensina a gente a ser gente, não pode ameaçar irrefletidamente os alunos, quando estes se equivocam no duro caminho de tornarem-se cidadãos. Assim como a Justiça restaurativa está possibilitando novos caminhos ao direito penal, nós educadores, temos que nos modernizar. Temos que encontrar caminhos menos violentos para ensinar as crianças e jovens a serem adultos políticos (que administram suas vidas na polis), ou seja, adultos não violentos e respeitadores dos direitos e deveres de ser gente em sociedade.

sábado, 30 de novembro de 2013

Hojeficação (o passado que se torna hoje)

Prof. Amilcar Bernardi

Hoje eu estava relendo uma poesia de Castro Alves, meu poeta predileto. A poesia era Navio Negreiro. Absorvido pela grandiloquência e pelas rimas altissonantes, parecia que um filme de um navio cheio de escravos sofrendo, passava nitidamente na minha mente. E percebam que nunca vi um escravo nem viajei em navios negreiros. Imaginem comigo esta cena:


Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...


Numa dicotomia adolescente, quando li estes versos pela primeira vez, queria bater nas pessoas más e salvar as boas! Como se estivessem acontecendo aquelas coisas enquanto eu as lia! Mesmo hoje, ainda sinto como se os poemas estivessem sendo escritos agora. Imagino o trabalho escravo e o tráfico de seres humanos ainda hoje existentes. Quase grito: o poeta Castro Alves tinha/tem razão no seus versos de fogo! Então, percebo que o ontem e o hoje se confundem quando leio o passado no presente. O ontem é hoje. É isso que sinto.

Então o que significa o termo “distância”? Segundo o que eu senti ao ler a poesia passada/presente, distância não pode ser um intervalo de tempo ou um afastamento. Pelo menos não pode ser isso no sentido convencional, de uso diário. A escrita, notadamente a poesia e os romances, trazem o passado à atualidade espiritual/psicológica. “Hojeitifica” o ontem.

Quando reflito sobre a cibertecnologia, fica mais evidente ainda que não podemos afirmar que distante é o que está longe.  Isso porque, também não podemos facilmente definir “longe”. Quando vejo a expressão facial, quando sinto as palavras nos meus ouvidos, quando percebo pela linguagem corporal o que a pessoa está sentindo ao dizer o que diz, porém, está a milhares de quilômetros de mim, o que é então, o “longe”? Isso acontece na tela do meu computador quando minha webcam junto com auto-falantes, captura a pessoa que está no outro continente. Então, posso inclusive, intuir o que a pessoa sente ao se expressar! Se consigo uma empatia com a pessoa longe, ela está psicologicamente perto. Ler a pessoa longínqua como se estivesse ao meu lado, presentifica e atualiza a pessoa. Assim como um poema é sempre atual quando o leio e tenho sensibilidade para senti-lo, a comunicação on-line faz o mesmo.

Não vamos nos iludir que a pessoalidade dos contatos físicos será substituída. Não creio nem na possibilidade disso. O que me encanta são as possibilidades. Uma espécie de energia potencial está nos assombrando. Podemos muito e poderemos cada vez mais. Somos uma civilização potencial. Potencialmente melhores, potencialmente piores. O futuro próximo/longínquo dirá da nossa escolha.

domingo, 10 de novembro de 2013

Enterrar indiozinhos vivos e o encarceramento

Prof. Amilcar Bernardi

Enterrar indiozinhos vivos e o encarceramento
Segundo a revista Isto é (www.istoe.com.br/reportagens/1006_O+GAROTO+INDIO+QUE+FOI+ENTERRADO+VIVO) algumas tribos indígenas ainda enterram vivos seus filhos. Os fortes candidatos a esse fim terrível são os filhos de mães solteiras e os portadores de deficiências físicas ou mentais. Esta prática causa algum espanto nos seus moradores, mas não o suficiente para que seja abolida. A questão cultural é muito forte, a ponto da FUNAI ainda não ter conseguido impedir estes infanticídios.  Eu, como cidadão morador da cidade, cidadão altamente escolarizado, sinto-me mal ao saber desses fatos, porém, sinto-me assim porque vejo a situação culturalmente “de fora”, quase que vejo como se eu fosse um alienígena julgando outro mundo.
Seriam nossas prisões no século XXI uma cova social feita de concreto, para que possamos enterrar vivos nossos párias sociais? Se algum visitante espacial, visse nossas prisões não sentiria o mesmo horror quando nos deparamos com os indiozinhos enterrados vivos pelo seu próprio povo?
Ainda paira sobre as pessoas um sentimento de vingança. Sente-se um ímpeto de aumentar a rigidez das leis e ampliá-las, para que as mais diversas situações de conflito sejam previstas e reguladas pelo estado. Se por um lado, nas questões da liberdade econômica há um desejo de afastamento do estado (liberalismo), nas questões de segurança pessoal e patrimonial, o desejo contrário surge. Percebe-se uma aposta perigosa: o estado teria as condições materiais para encarcerar todos e também de alguma forma, seria capaz de fazer isso com justiça. Forçando um pouco minha imaginação, penso que seria o mesmo que imaginar que o chefe da comunidade indígena poderia enterrar confortavelmente o indiozinho e o faria com justiça. E não preciso forçar muito não, afinal, há o desejo da pena de morte e a redução da maioridade penal para os dezesseis anos. Logo teremos a pena de morte para adolescentes. 
Foucault no Resumo dos cursos do Collège de France, discorre sobre o desejo histórico de resolver o problema das pessoas que se diferenciam do sistema (ou afrontam o sistema), ou seja, como castigá-las. Evidentemente que com o tempo, passou-se a apostar nas prisões e não mais nos flagelos. Da tortura às prisões, parecia termos nos tornado mais “civilizados”. Mas, mesmo o encarceramento evoluiu. Hoje o cárcere não pode mais ser uma punição, mas sim, um local de ressocialização, uma espécie de escola de bons modos, de aculturamento e de estudos para quem, obviamente, queira estudar. Evidentemente que Foucault critica o “invento” do cárcere. Um dos argumentos desse pensador que é genial é o seguinte, se prendemos alguém porque ele lesou a sociedade rompendo o pacto social, a pena de encarceramento estaria “voltada para o exterior e para o futuro”, para impedir que o crime recomece. Portanto, e é aqui que acho que é fantástico o argumento, ao termos certeza que a pessoa fez seu último crime, porque encarcerá-lo se não prejudicará mais a sociedade? Se o crime é o último, não precisaremos prendê-lo, pois a prisão existe para prevenir crimes futuros e não para punir o que já aconteceu.
Foucault sabia que a ordem e a regularidade baseada na sociedade industrial e capitalista, faz parte do que fundamenta a origem do encarceramento. Punir e controlar são a gênese. Entretanto, penso, punir e encarcerar o corpo, que relação terá com a alma, com a (de)formação da pessoa que está à ferros submetida? Posso dizer que o que está escancarado hoje ainda é a vontade popular e governamental de produzir sujeitos dóceis, porém, o caminho escolhido já não é mais o ideal de ressocializar, mas atingir a docilidade pela punição, pela dor infligida aos corpos encarcerados (retrocesso histórico). A questão pedagógica da sociedade “civilizada” que deve ensinar aos “incivilizados”, já não é questão relevante. O desejo da pena de morte é a decretação da morte do ideal da ressocialização. Talvez a função de adestramento e docilização do individuo hoje esteja a cargo da escola. Caso esta falhe, talvez, já aos dezesseis anos (ou seja, aos falhantes no Ensino Médio) o cárcere ou a pena de morte seja a reprovação esperada e desejada pela maioria.
Parece-me que vivemos com a seguinte questão: assim como não é possível uma vida saudável fora da sociedade, de igual forma, viver em sociedade é um problema não menos complexo. A construção das instituições é inseparável da construção da vida entre muitos. O caráter normativo surge na mesma medida em que negociamos os limites da liberdade. Estas instituições mesmo que surgidas na sociedade e pela sociedade, são sentidas com algo externo, acima, pois reguladoras. Foucault as questiona, assim como outros assim o fizeram como Hobbes, Locke e Rousseau. O enfoque adotado por Foucault é novo, mas não as questões por ele apresentadas. Entendo que a questão viver entre muitos X liberdade individual é um problema insolúvel. Também posso afirmar que (em sequencia ao problema anterior) o dilema punir X educar é uma crise eterna da sociedade. Crise essa que parece, sempre, tender á dissolução dessa mesma sociedade.
Foucault sabia que desde sempre houve a tentativa de controlar os corpos. Talvez, por uma inércia no imaginário coletivo, essa tentativa de controle corporal, ainda persiste num atavismo inconsciente. Apesar dos avanços dos Direitos Humanos e dos acordos internacionais, no Brasil (não que seja menos no mundo), a mídia embala esse imaginário coletivo com cantigas de “Prende, prende e mais prisões sempre”. Não podemos diabolizar as mídias, afinal, elas em muito dizem o que as pessoas querem ouvir. O resultado disso é o encaixotamento de corpos em celas. Muitos corpos juntos, onde uns punem os outros se matando nas disputas de espaços físicos e de poder pelas facções.  A punição que o povo quer aí acontece de maneira “natural”, apenas pela ausência do estado nas cadeias.
Não menos importante, e para mim muito estranhável, é a tentativa de mensurar o dano da ação criminal através de uma medida temporal. Ou seja, um crime X tem como resposta X tempo de enclausuramento. O crime Y terá Y tempo de enclausuramento. No imaginário social, manter uma pessoa no inferno carcerário por mais tempo é justo, na medida em que sofrerá por mais tempo. Por isso, a ressocialização e uma filosofia de matiz pedagógica inexistem na prática. A lógica é: mais dor por mais tempo quanto mais dor causou o delinquente. Alem disso, mesmo que não haja prisão perpétua no nosso país, institui-se além da dor por muito tempo, a infinitização da dor de ter uma mácula para sempre. O ex-presidiário dificilmente será incorporado à sociedade. Uma espécie de ostracismo grego ampliado ao máximo na sociedade contemporânea.  A mácula é uma tentativa de “prisão perpétua intangível” onde os recém-libertos, estarão presos para sempre a um passado que nunca passa. Por consequência, grande parte desses segregados vão delinquir novamente fechando o ciclo voltando às masmorras.  Foucault sabia que “os jovens delinquentes aprendem rapidamente a serem tão hábeis quanto os habitantes antigos das celas em burlar a lei; as masmorras são escolas também”.
Seria enfadonho eu discorrer sobre o insucesso da política carcerária, do abandono dos prédios e dos presos, dos inocentes presos, enfim, falar das mazelas das penitenciárias é falar o óbvio. E o pior, quanto mais é falado sobre o insucesso do encarceramento, empodera-se por consequência os desejos da implantação da pena de morte. É discurso corrente que a violência contra o patrimônio e contra as pessoas é revoltante e injusto. Entretanto, resolver o problema social que gera a violência e o crime não é uma discussão diária, ao contrário, é uma exceção. Isso porque a solução é cara (ninguém quer pagar a conta), é complexa (ninguém tem tempo para pensar em crimes), é uma questão política, social e perigosa ao sistema capitalista.
Fica a questão: vamos resolver o problema e pagar o preço ou enterrar os presos vivos nas cadeias? Quem quer responder?





quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Ser correto...

Prof Amilcar Bernardi

A vida me constituiu como um sujeito correto. Pouco mérito tenho por ser assim, pois não tive chance de ser diferente. É uma questão atávica: meu pai era alguém muito correto. Meu avô paterno era irredutivelmente correto. Meus tios são militares, todos. Meu irmão também é. Minha irmã é perfeita estudiosa. Atavismo bárbaro! Não tive chance alguma de ser diferente. Não pude ser indolente nos meus afazeres nem indulgente com quem arranhava a moral socialmente aceita. Esse parágrafo já depõe contra mim, pois alguns já estão imaginando-me um reacionário e moralista da estrema direita. É verdade que eu tinha tudo para ir por este caminho. Mas, o fato de estudar Filosofia mexeu com tudo que eu pensava. Mas, a retidão de caráter ficou firme. Espero que, ter um caráter reto num mundo onde tudo muda, não me prejudique. Ser retilíneo num contexto mutante é um perigo. Tomara que ninguém peça para eu definir o que é um caráter reto. Eu não sei. Apenas espero que seja um bom caráter. Somos esperança, sempre!
Não gosto de fazer o que eu considero errado. Amo fazer o que considero correto. Algo em mim estala quando percebo a má-fé, o desejo de enganar, de abusar de alguém. A hipocrisia me dá urticária. Pura verdade. Posso errar muito, mas não quero errar. Posso ser injusto, mas não o quero ser. Tudo que tenho de ruim é por ignorância, pois na clareza da minha alma não permito a maldade. Então, meus erros são culposos, nunca dolosos. Sinto-me melhor ao crer que sou do bem e que a maldade em mim é exceção. Como disse antes, essa vontade de fazer o certo veio junto com minha mamadeira, junto com as cantigas da minha mãe e do amparo do meu pai. O mérito é deles!
A vida de quem quer ser, ou ao menos dos que tentam ser corretos, não é fácil. Dirigir o carro na velocidade da placa de trânsito é perigoso. Os caminhões querem passar por cima. Outros motoristas ficam furiosos. Aí vem a viatura da polícia e passa acima da velocidade permitida. É um stress. Parar no sinal amarelo, nem pensar! Aí me matam. Como tendo a optar pelo certinho, sou chamado de otário. Já estou acostumado. Mas o pior é quando vejo alguém fazer o errado. Então o bicho pega.  Denuncio? Calo? Sou dedo duro ou omisso? Intervenho aconselhando e torno-me um “metido”? Então, acredito que é melhor eu nem ver para não ter que decidir.  Mas tenho olhos e vejo. Logo, decido. Decidir é envolver-se. Envolver-se é algo complexo onde o certo e o errado estão por debaixo da espessa neblina da opinião.
Opinar. Decidir. Posicionar. Ser humano. Coisas inseparáveis.

Gostaria de ter uma chácara cheia de árvores e plantas. Uma cascata de fundo. Um lugar frio. Cheio de bichos do mato. Gostaria de escrever minhas coisas de dentro da casa confortável vendo o ambiente externo por enorme janela. Pelo tempo que na chácara eu estiver, gostaria de deixar de ser gente. Ou seja, tiraria férias de decidir. Uma folga das questões éticas que me afligem. Não tendo gente para julgar, deixo de ser gente também, afinal, os outros é que me definem como gente através da linguagem. O mato e os bichos não falam a língua de gente. Então ficarei no silêncio sem optar, ou melhor, farei a opção de permanecer em silêncio. 


Imagem: da internet

terça-feira, 23 de julho de 2013

A terrível experiência na floresta


Prof. Amílcar Bernardi 


Achei que conhecia aquela floresta. Muitas vezes por ela andei e acreditava conhecê-la. Coisa de gente jovem e inexperiente, confesso. Porém, ficou a lição: nunca subestime os perigos da floresta. Sempre há surpresas e de cada canto algum animal pode saltar e ferir.

Naquela floresta de palavras, as árvores de sílabas eram altas, quase tapavam o sol. Era difícil guiar-se. Então eu me perdi.  Cachoeiras verbais, enormes, saciaram minha sede, mas o perigo de cair nelas, ser tragado e morrer sem saber nadar, era enorme.  Resolvi, para sair daquela selva perigosa, seguir as águas do rio. Pareceu-me mais fácil.  Mera ilusão! Concordâncias verbais nadavam perigosamente naquelas águas. Mesmo eu ficando nas margens, elas olhavam-me a espera da queda fatal. Era aterrador. Uivos das concordâncias nominais surgiam da selva densa. Fiquei terrificado. Se caísse nas águas sem saber nadar, seria devorado ou afogado. Se optasse por ficar às margens, poderia ser atacado a qualquer segundo, pois não conhecia bem essas concordâncias verbais. Como seriam? Talvez, pelo medo que sentia, fossem criaturas enormes a espera do meu erro. Fatalmente eu iria morrer nos dentes delas.

Já era tarde. Ia anoitecer. Então pensei em fazer uma fogueira para assustar as feras. Percebi que iria ficar a noite na floresta das palavras. Acalmei-me. Respirei fundo. Era só fazer fogo. As feras e insetos fogem do fogo.  Juntei galhos de dicionários já mortos pelo tempo ou derrubados por tempestades gramaticais.  Os ventos sempre derrubam das árvores dicionários, galhos que são úteis aos perdidos. Juntei vários deles e fiz uma estrutura para por fogo.   Após as chamas, fiquei mais aquecido. As trevas da noite estavam rapidamente tomando a floresta.  O medo era terrível. Eu ouvia as acentuações gráficas rastejarem pelo mato. Se fossem venenosos eu estava perdido! Era uma picada só e eu morreria sem ajuda. Tremi ao lembrar-me que nas selvas não existem gramáticos para salvar os incautos perdidos! Era meu fim, com certeza.

Ditongos voavam e picavam minha pele. Os hiatos eram os piores, pois eram maiores. Qual repelente seria forte o suficiente para afastá-los? Nenhum! Minha pele ardia, mas eu era jovem e podia suportar. Ao fundo da paisagem negra da noite, tritongos rugiam. Creio que caçavam a noite, nem sei. Eu sabia que, quando o dia amanhecesse, alguém viria salvar-me! Muitas pessoas sabiam que eu adorava perambular pela selva de palavras. Com certeza eu seria salvo!

O frio era muito intenso.  Ainda bem que eu havia juntado alguns morfemas gostosos, eram frutinhas de aparência horrorosa, mas após agente se acostumar, ficam aceitáveis ao paladar. Não podia negar que os morfemas são úteis nessa floresta terrível! Vejam bem, é bom ter cuidado. As desinências são frutinhas que podem provocar dor de barriga, e como todos sabem, na mata a desidratação pode ser fatal!  É preciso conhecer bem a floresta das palavras para sobreviver. Por isso que a maioria das pessoas não sobrevivem nela.

O sono era tão intenso que amontoei adjetivos para travesseiros. Pedaços de substantivos cobriam-me. Sem fome e um pouco aquecido, iria sobreviver ao medo e aos animais perigosos. Com muita sorte os advérbios fatais e preposições assassinas nem perceberiam que eu estava ali, indefeso. Eu sou um sujeito de sorte, sempre fui. Já tinha sobrevivido muitas vezes naquela floresta complexa e perigosa. Eu era forte, iria ficar vivo e contar para os outros minha experiência!

Acordei ouvindo gritos! Haviam me encontrado! Quanta alegria! Eram corajosos policiais da guarda sintática! Armados com períodos simples, estavam seguros contra os terrores da selva. Finalmente estava feliz. Finalmente sairia bem da minha aventura. Aprendi muito. Quando eu voltar, e sempre voltarei, estarei mais preparado. Nenhum adjunto adnominal ou complemento verbal fará com que eu desista da selva.

Ufa! Estou cansado.  Mas aguardem-me! Logo terei mais aventuras para contar.



Imagem:  http://florestacomagil.blogspot.com.br/