domingo, 12 de setembro de 2021

Contexto! Contexto! Contexto!

 


     

         O mote: Lei que resolve muitos problemas: lei-tura.

     

Em pleno domingo, acordei e já me deparo com alguns (bons) comentários sobre o compartilhamento que fiz no Facebook.  Refiro-me a frase do mote: Lei que resolve muitos problemas: lei-tura.  Gostei da conversa virtual. Fez-me pensar.

     

A frase em epígrafe propõe uma justaposição de lei e de leitura.

     

O que é, grosso modo, a lei? É um pensamento lógico que se materializou na forma escrita. Baseia-se na imposição da vontade do Estado e no código léxico em comum (para ser entendido por todos). E a leitura? É mais complexa que o conceito de lei. Ler é um processo ativo, personalíssimo, volitivo, que se baseia em conhecimentos anteriores (que desenvolveram a competência de decodificação de algo ou de uma situação). Caso seja a leitura de algo escrito, é uma decodificação/interpretação de códigos (também baseado – mas não exaurido - no léxico). Opa! Então há leitura do não escrito? Sim! De uma obra de arte, por exemplo. Outro exemplo possível: a leitura visual do corpo de alguém enfezado!

     

Portanto, o texto não é apenas algo escrito?  Não, é mais que isso. Ele é um conjunto de enunciados coerentes, uma composição de signos que tenham sentido. Uma carta, uma pintura, uma ópera.

     

Tanto a lei quanto a leitura têm muitas coisas em comum. A exegese é uma delas. Fazer uma exegese é tentar interpretar para poder explicar um texto (a lei é um texto), uma expressão, um comportamento, um ato humano, enfim.

     

Os textos estão no mundo! Estão contidos num continente: a vida.

     

Como falei em mundo e vida, posso dizer que todo o texto tem um contexto.  Sempre que falo em contextos (com-textos), vem a minha mente a possibilidade de um escrito “sem-texto”! Piadinha, claro.

     

Contexto é a inter-relação, a situação em que algo se insere. Portanto, voltando a piadinha: sem contexto não há texto inteligível!  Querem um exemplo simplório? Observem a frase:

     

O cachorro do meu vizinho me incomoda. -  A situação que não muda de sentido é o incômodo. Entretanto, a depender do contexto, podemos entender que o vizinho é um cachorro, um cachorro que incomoda. Noutro sentido, o cachorro que pertence ao vizinho, incomoda.

     

E na lei, como seria? Pensemos a tese de legitima defesa. O que define sua legitimidade é o contexto dos acontecimentos. Um sujeito desarmado contra outro armado. Em princípio, a desproporção não permitirá a tese de legítima defesa, se o sujeito desferir um tiro fatal no outro. Contexto! Contexto! Contexto!

     

Tanto para ler a lei quanto para ler o mundo, é necessário a leitura. Ler! Ler! Ler!

      

Eis uma questão que se tornou agora bem relevante: onde se aprende a ler? Onde há o letramento? Geralmente no ambiente escolar. Onde se aprende a ler/interpretar as primeiras normas além dos familiares? Em muito, na escola. Portanto, aprende-se a ler textos e normas geralmente no contexto escolar.

     

O ambiente escolar é o contexto dos textos que serão lidos pelos infantes.

     

O letramento é uma questão, percebe-se, política. Pois é orientado pela vida que o cerca, pela ideologia que sustenta a comunidade em que ele ocorre. Já questionava Paulo Freire: Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?

     

A leitura de mundo será inclusiva ou excludente. Isto definirá o tipo de leitor/cidadão que se desenvolverá.

     

Concluo que tanto a leitura da lei quanto a aprendizagem da leitura, devem eticamente primeiro responder a questão do Paulo: a base ideológica que as sustém é inclusiva ou excludente? Se excludente, teremos problemas em ambos os contextos: o legal e o da leitura/interpretação do mundo.

sábado, 4 de setembro de 2021

Meu sonho é uma escola que ensine as ciências a partir da Filosofia.

 

 

Quando falo que sou professor de Filosofia, é bem comum ser questionado sobre o porquê do ensino deste saber. Como se o ônus da prova da importância desta disciplina escolar coubesse a mim. Não basta a sua milenar existência! Após a pergunta, vem a exaltação das ciências exatas e dos seus contributos para o fazer, para o realizar do homem sobre o mundo. Como se o filosofar em sala de aula fosse algo insípido, um desvalor na comparação com os demais saberes escolares.

 

Algo como: “Quem não sabe ensina. Quem sabe faz!” Numa espécie de elogio a um ativismo puro: faça, produza, lucre.

 

Ora, a Filosofia faz em sala de aula o quê?

 

Vamos contextualizar um pouco. Percebo que nosso ambiente social é pouco propício à reflexão. Tudo é muito rápido. Não temos tempo para pensar o já pensado. Ora, tudo é o que é desde sempre. O político sempre foi ladrão. A pobreza sempre existiu. Trabalhar muito, sempre foi mais importante que muito viver.  Ser rico, desde sempre foi a única escolha. E, não menos importante: levamos nossos filhos à escola para ratificar tudo o que desde sempre sabemos, tudo que queremos que continue como está. Uma escola que seja diferente do que sempre foi, já causa imediatamente estranheza.

 

E o que a escola deve ser desde sempre? Tautologicamente: o que sempre foi. Mesmo que não saibamos o que isso quer dizer!

 

Parece haver uma decisão coletiva de evitar o diferente e, portanto, evitar a criticidade. Falar sobre o que deveria ser é coisa de final de semana no boteco. Durante a semana, em que somos sérios e adultos, o que sempre foi se sobrepõe e esmaga o diferente, a imaginação criativa. Durante os momentos de seriedade, temos o antídoto contra o pensar diferente: a persistente evitação da criticidade. Optamos pelo que é mítico e, portanto, estático. 

 

Melhor é sabermos muito do que já sabemos: isso resulta em bons salários e em bons rendimentos nos negócios.

 

Conscientemente (ou não) acreditamos que as escolas devem seguir a mesma lógica. Uma educação parmenídica. (Parmênides acreditava que tudo é necessário e imutável. A mudança é apenas uma ilusão.)

 

Já me perguntaram qual a utilidade do Ensino da Arte (pois inútil – o que seria do mundo só com artistas?), da História (Inócua: já passou!), da Literatura (Ora, quem conhece alguém que enriqueceu com poemas e  crônicas?) e, finalmente, da Sociologia e da Filosofia (inúteis pois nada fazem e, pior, são ideológicas!). Respondo afirmando o que estes saberes têm em comum, a necessidade de se contrapor ao que já foi exposto nos parágrafos anteriores: a decisão coletiva de não sermos críticos!

 

Ser crítico?

 

Ser crítico é ser habitualmente um sujeito que julga os acontecimentos que nos rodeiam. Também é julgar os próprios julgamentos. Julgar é tomar decisões deliberadas racionalmente e justificadamente. Não é um achismo de alguém com eterno mau humor.

 

A Filosofia em sala de aula está mais para o cismar do que para o repetir o já dito.

 

 Eu gostaria de abolir as provas tradicionais de Filosofia no Ensino Médio. Aquelas de marcar apenas uma resposta certa. As avaliações, na minha imaginação, seriam através das técnicas de redação. O aluno redigiria um texto dissertativo. Fico imaginando os professores de História, Redação e Filosofia pensando juntos suas aulas. Reunidos estabeleceriam o tema para a redação. O que estas áreas têm em comum? Elas trabalham com a interpretação.

 

Ouço muito a reclamação de que as pessoas não sabem intrepretar textos

 

História e redação: indispensáveis para a interpretação de texto. E a Filosofia?  A Filosofia quer interpretar o mundo: o mundo é um grande e prolixo texto escrito pelos humanos.

 

Há quem diga que interpretar o mundo é o melhor que há. Então, a Filosofia trata do melhor que há. Simples assim.

 

Há muitos pais, alunos e professores que apostam na prevalência do indivíduo sobre o coletivo. Como prega o ideal da meritocracia. Provas individuais. Estudos individuais. Explicações exclusivas como um diferencial na propaganda das Escolas. O aluno aprende para si e para o seu sucesso. Tudo depende do esforço de cada um para o sucesso de cada um. Quanto mais o professor conseguir ser um “professor particular” em sala de aula, mais elogiado será. Não é permitido relativizar o que é particular. O que é de cada um é sagrado. O coletivo só existe para o sucesso do indivíduo.  Mais democrático é o ambiente onde a opinião de cada um se mantiver assim, uma opinião de propriedade absoluta: cada um tem a sua, faz o que quiser com ela e pronto. Não é bem assim?

 

Aí vem a Filosofia na sala de aula falando de Moral e ética! Um dever ser coletivo! Um saber que se atreve a discutir a pólis, a coisa pública, a cooperação e a política! Vem este saber tentando desmistificar o eu solipsista e valorizar o nós, o social! Um horror digno de um mundo socialista!

 

Então na aula o aluno X é questionado pelo aluno Y. A questão vira debate, que talvez vire um consenso. Debater! Que estranho isso! Argumentar sem apenas repetir uma opinião inumeras vezes! E por fim, o mais assustador: há o perigo de alguém mudar de ideia. Mudar! Acrescer! Transformar! E tudo feito coletivamente.  Não é mais o aluno X e o aluno Y. Agora é X + Y + coletividade. Qual o resultado desta equação? Sempre um “mais”.  O aluno X é agora X+. O aluno Y é agora Y+. E a coletividade? É coletividade +.   

 

Viva à comunidade aprendente!

 

Criticar o que é sempre igual para poder fazer o diferente. Pode (re)interpretar o texto (mundo). Pode fazer com que alguém saia do eu para vivenciar o nosso. Pode fazer com que saiamos da opinião para consensos argumentados. Pode habituar o aluno a ser politicamente sempre um somatório de gentes, num mundo escolar que tende a ser unidimencional.

 

Ufa! Coisa de filósofo. Não é fácil.

 

Como ensinar a “suspender” a linearidade do pensar diário, para (re)pensar o já pensado? Como ensinar a (re)ver o já visto? Como ensinar a mudar de ideia, uma ideia mitificada, rotinizada, hipertrofiada? Na verdade, não se ensina. Exemplifica-se. Pratica-se. Ensinar/aprender a história da Filosofia só se jutifica se for para experienciar o prazer do filosofar.

 

A história da filosofia exemplifica. Propicia o tempo mental necessário para questionar o que tem a aparência de ser inquestionável. Justamente por isso precisamos conhecer a história da Filosofia!

 

Meu sonho é uma escola que ensine as ciências a partir da Filosofia. 

 

No meu imaginário, a coordenação pedagógica com os professores, organizaria todas as disciplinas em função da Filosofia. Por exemplo, se o assunto filosófico fosse a lógica, a disciplina de Matemática seria apresentada aos alunos. Caso o assunto fosse a filosofia medieval, a disciplina de História trabalharia este período e assim por diante.

 

Uma escola filosófica! Um engenheiro filosofante! Um gerente heraclítico! Um pastor socrático! Um banqueiro marxista! Enfim, como dá para ver, é apenas um sonho ou um delírio...  já nem sei.

Quêm lê muito não faz nada. Verdade?