sábado, 22 de maio de 2021

Abovinamento, linearidade, verdade e crença. Mito: na versão contemporânea é uma mentira

 

 


 


 

Quando eu era criança acreditava que a verdade estava em meus pais. A questão era simples. Assim como os gregos clássicos iam aos oráculos na esperança de falarem com os deuses, eu ia até meus pais. Eles diziam diretamente o que era verdadeiro ou falso. Também profetizavam sobre o futuro dizendo sobre verdades que ainda iriam acontecer.  Eu, criança, acreditava.

 

Como era apaziguador ter em casa quem sabia a verdade!

 

Quando adolescente, a objetividade juvenil mandava avaliar empiricamente os fatos. Quente ou frio? Lá ia o jovem colocar a mão e queimá-la... ou não. Na sorte. Beber faz mal! Será? Após o porre podia avaliar por mim mesmo a bebedeira. Mais que meus pais, os meus cinco sentidos tendiam a resolver as questões do dia a dia.

 

Pensava: fora dos fatos nada há.

 

Entretanto, as questões metafísicas – e inverossímeis sob o ponto de vista da empiria – em mim conviviam perfeitamente. Minha objetividade primitiva e juvenil (experimentação pessoal das coisas) convivia bem com os mitos.  Era possível me emocionar com o longínquo e falecido Gandhi. Minha alma se aquecia com a sua fé na não violência, mesmo sem poder tocá-lo ou sequer conhecer pessoalmente o indiano. Contradições que podemos ainda perceber em vários adultos. Vemos hoje pessoas tão envolvidas por explicações metafísicas longínquas e inalcançáveis, que perderam o contato com a ciência e a racionalidade.

 

São exemplo destas contradições os médicos cloroquineiros!

 

A minha inocente busca pela verdade, no final da adolescência, levou-me aos bancos universitários. Calouro (novato) no curso de Filosofia, sentia-me pronto para compreender o mundo e o sentido absoluto da vida humana! Eis que a Verdade brilharia!

 

Evidentemente a verdade não estava à minha espera, apesar de estudar o mais radical dos saberes: o filosófico!

 

Logo percebi quão utópico (e esperançoso) é o desejo de encontrar alguma verdade verdadeira! No máximo convivemos bem com verdades passageiras. Algumas tão confortáveis quanto difíceis de desacreditar: queremos que sejam eternas! Já outras tão desagradáveis que queremos nos livrar logo!

 

As versões da realidade que são agradáveis acabam por virarem mitos veneráveis. Criam-se cultos para elas.

 

Ao jovem que virou adulto, foi difícil aceitar que não há oráculos confiáveis para consultas certeiras. O que temos de melhor é a ciência. Compreendi que a ciência é confiável justamente por que ela desconfia, por que trabalha com hipóteses (e não com certezas). Hipóteses sempre refutáveis por novas. Percebi que tudo aquilo que tende a criar crenças (e raízes dogmáticas) é para se desconfiar. Aprendi que a pergunta é mais eficiente que a resposta! Melhor é perguntar eternamente pela verdade do que encontrar alguma para venerar!

 

A veneração impede a mudança, a pesquisa, a descoberta do novo. A veneração mente.

 

Hoje encontro pessoas a procura de uma verdade para venerar. Querem de preferência verdades amenas, confortáveis e conservadoras.  Mas não nos enganemos: eles querem é a própria veneração, o conforto da não mudança.  Todo o conservador é um defensor do que já experimentou como bom para si mesmo. Pensa ele: Se foi bom para mim, também será para meus iguais. Logo, há de se manter assim para todos. Toda a crença que ratificar este pensamento, será validada e acreditada.  E se for ruim para os outros? Responderão: Os outros ainda não perceberam a veracidade do que dizemos!

 

O conservador quer uma verdade que corrobore com suas experiências agradáveis. Quer uma verdade afável para chamar de sua. Verdades afáveis mentem.

 

Os crentes ideológicos procuram algo para crer. Crendo, querem mais estabilidade. Querem oráculos para que possam prever o futuro. Querem sábios que digam coisas que se adaptem à sua necessidade de crer. Querem respostas e evitam as perguntas (tão incômodas!). Não buscam a racionalidade ou a ciência. Buscam a estabilidade de uma crença. Então, nada melhor que seguir um mestre mitômano (ou vários). Nada melhor que aceitar teorias improváveis de conspirações mundiais, comunismos comedores de gente e grupos internacionais anticristãos homicidas. Teorias que, justamente por serem improváveis, são mais fáceis de crer e de criar grupos que normalizam suas próprias crenças:  fraternidades que se autocuidam e se autojustificam.

 

Estabilidade. Linearidade. Terra plana. Uma maravilha. O outro é o inimigo.

 

Estas almas desejosas de crer acabam seduzidas e morrem pelo sedutor. Dão a vida em troca da fé em mitos e em explicações alucinadas. Para manter a estabilidade do abovinamento, vale até morrer. A democracia não é ambiente saudável para os ruminantes de crenças ideológicas. A democracia é complexa demais, pois há inúmeras (e cansativas) variantes.

 

A estabilidade das crenças não é o ponto forte da liberdade democrática. A estabilidade das crenças mente.

 

Já o fascismo é perfeito para os crentes ideológicos: há regras, distribuição moral do poder, punição e linearidades previsíveis. O fascismo diz do certo e do errado. Diz do amigo e do inimigo. O fascismo tem a verdade. E a explica inúmeras vezes criando e ratificando uma narrativa. Mesmo com explicações contraditórias.

 

Para o crente ideológico, a contradição não é problema. Assim como no mundo jurídico a última lei revoga a anterior; uma explicação mítica nova prevalece sobre a mais antiga! Desfaz-se a contradição automaticamente.

 

O crente que quer uma verdade explicável e definitiva, acredita na hierarquia. Portanto, se há vários profetas, sempre procurarão o mais importante. Isto numa gradação de valores morais ou numa hierarquia institucional (o cargo mais alto). Em consequência desta visão vertical, ficam felizes quando também sobem na hierarquia do conto mítico. Ao ascenderem, percebem que há outros abaixo de si e que, por serem “menos”, acolhem e seguem quem está subindo hierarquicamente.

 

Admira-se o superior. Subjuga-se o inferior.

 

Nessa hierarquia o crente ideológico se entende sempre como classe média. Sente-se um tanto abaixo dos de cima. Entretanto, percebe-se como mais acima dos de baixo. Desta forma tem sempre mais um degrau para subir. Também haverá sempre alguém abaixo para satisfazer a vaidade de quem sobe. A crença na meritocracia satisfaz a vontade de ter sempre algum poder sobre o outro. A crença na meritocracia mente.

 

Mito! Mito! Mito! – Gritam

 

Esquecem que mito é uma narrativa apenas. Uma narrativa que tenta trazer ao presente heróis passados. O mito é uma história requentada que agrada apenas a alguns, mas é contado como se fosse uma verdade universal. Mito, mentira e crença hoje se confundem.

 

Amigo leitor, proponho menos crenças. A busca é melhor que o que encontramos. A pergunta é melhor que as respostas. A coragem de descrer em mitos é essencial aos corajosos.

 

Sabe-se que a verdade absoluta é uma utopia. O que não invalida os esforços em busca-la. É a busca que nos aperfeiçoa. Entretanto, o motivo que me fez escrever não é discutir a questão filosófica sobre a verdade. O que aponto é que o sonho humano de encontrar respostas para tudo foi envenenado. O veneno foi a implantação de uma busca por mitos para se crer. A busca pelo que está à frente e no futuro, mudou para a busca pela manutenção do passado e pela estabilidade conservadora.

 

A estabilidade conservadora mente.


 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Texto para complicar o conceito de Política. Uma experiência em Marte.

 


Ao observar as pessoas falando sobre Política como se soubessem do que falavam, resolvi escrever um texto para complicar e não para simplificar esse tema. Isso por que o que se entende por Política já está por demais empobrecido no seu uso diário. Posso afirmar isso porque percebo que este termo tão caro à Sociologia, à Ciência Política e à Filosofia foi subsumido à corrupção, às pessoas que buscam o poder e ao enriquecimento (não raro, ilícito).

 

Seria a Política apenas isso? Não!

 

Podemos afirmar que a resposta à pergunta sobre o conceito de Política, já é uma questão política. Quanto mais o conceito se aproximar da gestão do Estado ou do bem comum, tanto mais se aproximará da ideia de poder, de cooperação, de conciliação e da redução de conflitos. Nada mais político que estes quatro elementos! Há que se discutir muito para reunir estes conceitos – tão marcados pela polissemia - em um só.

 

A definição de Política é uma ação política. Negá-la também é.

 

Vamos refletir sobre o que quer a Política como ação prática. Podemos dizer que as ações que se dizem políticas querem (ou devem querer) o bem comum das sociedades envolvidas em um conflito. As sociedades não se reuniriam para discutir algum desacerto para tornar as coisas piores do que já estão.  Há aqui um problema escondido.

 

O que é o bem comum para grupos em conflito? É preciso que os envolvidos se reúnam - antes de qualquer ação - para definirem o que será bom (ou menos pior) para todos. Antes das negociações políticas para resolver dissensos, é preciso uma discussão política sobre o que é o bem comum naquela situação.

 

Política antes da política? Sim, é bem isso.

 

Vamos pensar mais um pouco. Há situações em que a ação Política é desnecessária?  Sim. Imaginemos duas pessoas que não se conhecem e não mantém relações alguma, nem tem pessoas conhecidas em comum. Portanto, não havendo nenhum vínculo não há o que discutir, não há o que negociar, não há desavenças nem projetos para o futuro. Logo, não há relações políticas possíveis. Também podemos imaginar duas pessoas hipotéticas totalmente concordantes entre si. Há total confiança que no futuro não haverá conflitos entre elas. Nesta relação fantástica, uma é reflexo da outra quando tomam decisões. Uma faz o que a outra faria. Se não faz, é por que a outra não faria. Nessa relação onírica, a Política não faria sentido, pois não haveria o que discutir, o que negociar. Na harmonia absoluta e perene, não há Política por desnecessidade.

 

A Política é necessária nas relações reais, conflitivas hoje ou possivelmente no futuro. Há que existir a possibilidade de dissensos.

 

Percebamos que o sentido que trabalhamos aqui não se resume a partidos políticos ou a gestão de Estados. Evidentemente que não excluímos estas realidades, mas estamos mostrando que são apenas partes de um todo.

 

O todo da Política contém as partes. As partes não invalidam o todo.

 

Já que estamos usando a imaginação, vou optar por imaginar a situação de um brasileiro, um astronauta. Ele é o primeiro homem a pisar em Marte. Ao pousar lá, percebeu que teve problemas na sua nave e ficará sozinho no planeta por no mínimo vinte e quatro horas. Na pior das hipóteses, para sempre.

 

Ao descer, levado por um impulso nacionalista, retira da nave uma bandeira do Brasil e uma haste de aço e lá coloca nosso símbolo nacional. Sorri nosso astronauta satisfeito. Percebe-se como um grande personagem na história do Brasil e do mundo (Terra).

 

Nosso homem ao colocar uma bandeira lá, realizou de fato um ato Político? Não! Por quê?  Não houve oposição nem reconhecimento ao seu ato. Ninguém presenciou. Não houve comunicação com nenhum outro ser consciente humano, nem alguma reciprocidade. Sequer houve legalidade ou ilegalidade. A humanidade não tem consciência deste fato. Observando todas estas negativas, percebe-se que a ação é inócua por não existir para a humanidade. Não tem valor algum pelo menos nas vinte e quatro horas em que não terá contado com a Terra. Caso não possa mais voltar ao nosso planeta, a inexistência do ato será definitiva.

 

É necessário para a ação ser Política o reconhecimento do ato (e reação a ele), a linguagem (comunicação), alguma reciprocidade, legalidade (nacional ou internacional) e consciência. É algo bem complexo!

 

Desta situação imaginária podemos tirar algumas conclusões. Só há Política quando há (ou poderá haver no futuro) conflitos. Então temos que negociar problemas atuais ou temos que negociar possíveis problemas futuros (preventivamente). Situação esta que não se apresentou em Marte. Não havia interlocutores para dialogar nem havia problemas humanos para se resolver. Sequer havia a hipótese de problemas humanos futuros. Por que citei problemas humanos? A Política só trata de problemas que envolvam expectativas e necessidades de pessoas. Ela não trata de problemas entre os micos-leões dourados ou entre animais que lutam por comida.  Em Marte não há problemas humanos. Talvez algum problema entre um humano e a tecnologia para o manter vivo: insuficiente para a Ciência Política.

 

Política é uma relação entre pessoas que conflitam (ou que podem conflitar no futuro) porque tem problemas para resolver.

 

Digamos que surgissem marcianos e o questionassem. Aqui haveria outro problema humano e Político: a legitimidade. O fato do astronauta ser humano e brasileiro o coloca no patamar de representante da humanidade? Creio que não. A Política é muito mais que apenas sujeitos brigando por algo. É preciso legitimidade. Imaginemos: O trabalhador de uma fazenda brigando a tapas com o trabalhador de outra. O conflito em questão são os limites das propriedades. Ambos não têm procuração dos proprietários. Ora, que utilidade fática terá tal briga? Nenhuma!

 

Para haver Política, é preciso legitimidade dos atores. Reflita: tu que a criticas, tem legitimidade moral/ética para tal?

 

Podemos apreciar outra questão. Os marcianos e o humano brasileiro não estão em igualdade de direitos. A espécie humana não representa nada em outro planeta. A Política eficaz ocorre entre dialogantes iguais no direito de fala. Podem até terem poderes diferentes, mas possuem direitos iguais a se manifestarem. Na ONU todos as Nações membros tem direitos iguais a fala, apesar de serem diferentes em poderes e em riqueza. Alguém pode dizer que mesmo sendo iguais, estão em desvantagem as nações mais frágeis. Até pode ser verdade, mas a necessidade desta igualdade formal é inequívoca. Pior seria sem ela.

 

A importância do direito de igualdade/equanimidade é determinante.

 

Sem uma linguagem acessível ao entendimento das duas espécies e sem ser possível saber a intenção marciana, não há como fazer Política. Como fazer acordos e buscar o bem comum dos envolvidos? Acredito que o problema tende a ser resolvido pelo uso da força ou pela eliminação do humano. Ainda mais se os marcianos souberem do histórico da existência dos humanos na terra. Como confiar em povos que produzem guerras e provocam mortes por diversas formas? Como ter esperança em povos humanos que escolheram um sistema econômico que destrói o planeta, as espécies vivas e que é promotor de constantes traições e quebras de acordos?

 

Sem confiança, não há Política!

 

Vamos a outra argumentação viável. O astronauta ao colocar a bandeira brasileira em solo marciano não realizou um ato Político? Não. Teve motivação política (interna) consciente ou inconsciente, isso sim.  Vejamos que o brasileiro já é um adulto. Tem história. Tem (pré)conceitos e ideologias. Tem principalmente linguagem. Nós falamos e pensamos através da linguagem. Acontece que a linguagem é política. É escolha. As palavras e conceitos que aprendemos são filhos das formas políticas de pensar da nossa sociedade, dos nossos pais e da comunidade. Posso dar um exemplo apelando mais uma vez para minha imaginação.

 

Nosso astronauta ao ver marcianos - anatomicamente diferente de nós -  não consegue perceber seu sexo. Machos ou fêmeas? Ele não consegue decifrar este enigma. Fazendo gracinha, ele registra no seu diário que estes seres não são homens nem mulheres. São gays – ele brinca. Há que se observar se ele vai registrar (linguagem!) o suposto homossexualismo (visão patológica relativa a sexualidade. O “ismo” se refere a patologia) ou homossexualidade (orientação sexual inata). Percebamos que antes do registro, já haveria uma predisposição na escolha das palavras.

 

As palavras são políticas e politizáveis.

 

Portanto, ao fixar a bandeira brasileira sua consciência política pré-estabeleceu este procedimento. Para o astronauta tem sentido o que fez. Tem sentido porque suas ações foram politizadas na sua formação. A ação é tanto mais política para ele quanto mais for consciente dela. Mas, relembro, fora da consciência do astronauta, nada é. Talvez agora com marcianos observando, tenha alguma consequência. Mas, não é possível prevê-la ou compreendê-la. Marcianos sabem o que é uma bandeira e o que significa? Provavelmente não. Então, não é possível prever qualquer reação (ou nenhuma reação) deles.

 

Sem entendimento e alguma previsibilidade, não há Política.

 

Após termos lido até aqui, não creio ser mais possível restringir a Política a partidos, a agremiações ou a gestão de Estados. Ficar preso ao senso comum, agindo como se esta expressão tivesse único sentido, é o empobrecimento imperdoável do conceito de Política.

 

Empobrecer o conceito é imperdoável!

 

Recuso-me a aceitar bordões do tipo: todo o político é ladrão, o Congresso Nacional só faz politicagem, votem em quem não é político, o Supremo Tribunal Federal só faz política e, mais essa, a democracia tem política demais!

 

Ufa! Quantos horrores!

 

Meu amigo leitor, prefira sempre pensar a Política no seu sentido mais amplo e histórico. Pensa sempre que a Política busca o bem comum (politicamente normatizado). Somente por último, reflita o que as pessoas que obram na seara da política fazem de errado. 

 

Errar é humano, justificaria o astronauta aos marcianos!

 

Então meus amigos leitores corrijam, orientem e até punam (no Judiciário, claro). Mas nunca queiram um mundo sem diálogo, acordo, entendimento, cooperação e fraternidade.  Sem estes elementos tão humanos, optaremos sempre pela barbárie e pelo fim das civilizações.

 

É isso.

 

 

 

 

 

 

 

Quêm lê muito não faz nada. Verdade?