Quando eu era criança acreditava que a verdade estava em meus pais. A questão era simples. Assim como os gregos clássicos iam aos oráculos na esperança de falarem com os deuses, eu ia até meus pais. Eles diziam diretamente o que era verdadeiro ou falso. Também profetizavam sobre o futuro dizendo sobre verdades que ainda iriam acontecer. Eu, criança, acreditava.
Como era apaziguador ter em casa quem sabia a verdade!
Quando adolescente, a objetividade juvenil mandava avaliar empiricamente os fatos. Quente ou frio? Lá ia o jovem colocar a mão e queimá-la... ou não. Na sorte. Beber faz mal! Será? Após o porre podia avaliar por mim mesmo a bebedeira. Mais que meus pais, os meus cinco sentidos tendiam a resolver as questões do dia a dia.
Pensava: fora dos fatos nada há.
Entretanto, as questões metafísicas – e inverossímeis sob o ponto de vista da empiria – em mim conviviam perfeitamente. Minha objetividade primitiva e juvenil (experimentação pessoal das coisas) convivia bem com os mitos. Era possível me emocionar com o longínquo e falecido Gandhi. Minha alma se aquecia com a sua fé na não violência, mesmo sem poder tocá-lo ou sequer conhecer pessoalmente o indiano. Contradições que podemos ainda perceber em vários adultos. Vemos hoje pessoas tão envolvidas por explicações metafísicas longínquas e inalcançáveis, que perderam o contato com a ciência e a racionalidade.
São exemplo destas contradições os médicos cloroquineiros!
A minha inocente busca pela verdade, no final da adolescência, levou-me aos bancos universitários. Calouro (novato) no curso de Filosofia, sentia-me pronto para compreender o mundo e o sentido absoluto da vida humana! Eis que a Verdade brilharia!
Evidentemente a verdade não estava à minha espera, apesar de estudar o mais radical dos saberes: o filosófico!
Logo percebi quão utópico (e esperançoso) é o desejo de encontrar alguma verdade verdadeira! No máximo convivemos bem com verdades passageiras. Algumas tão confortáveis quanto difíceis de desacreditar: queremos que sejam eternas! Já outras tão desagradáveis que queremos nos livrar logo!
As versões da realidade que são agradáveis acabam por virarem mitos veneráveis. Criam-se cultos para elas.
Ao jovem que virou adulto, foi difícil aceitar que não há oráculos confiáveis para consultas certeiras. O que temos de melhor é a ciência. Compreendi que a ciência é confiável justamente por que ela desconfia, por que trabalha com hipóteses (e não com certezas). Hipóteses sempre refutáveis por novas. Percebi que tudo aquilo que tende a criar crenças (e raízes dogmáticas) é para se desconfiar. Aprendi que a pergunta é mais eficiente que a resposta! Melhor é perguntar eternamente pela verdade do que encontrar alguma para venerar!
A veneração impede a mudança, a pesquisa, a descoberta do novo. A veneração mente.
Hoje encontro pessoas a procura de uma verdade para venerar. Querem de preferência verdades amenas, confortáveis e conservadoras. Mas não nos enganemos: eles querem é a própria veneração, o conforto da não mudança. Todo o conservador é um defensor do que já experimentou como bom para si mesmo. Pensa ele: Se foi bom para mim, também será para meus iguais. Logo, há de se manter assim para todos. Toda a crença que ratificar este pensamento, será validada e acreditada. E se for ruim para os outros? Responderão: Os outros ainda não perceberam a veracidade do que dizemos!
O conservador quer uma verdade que corrobore com suas experiências agradáveis. Quer uma verdade afável para chamar de sua. Verdades afáveis mentem.
Os crentes ideológicos procuram algo para crer. Crendo, querem mais estabilidade. Querem oráculos para que possam prever o futuro. Querem sábios que digam coisas que se adaptem à sua necessidade de crer. Querem respostas e evitam as perguntas (tão incômodas!). Não buscam a racionalidade ou a ciência. Buscam a estabilidade de uma crença. Então, nada melhor que seguir um mestre mitômano (ou vários). Nada melhor que aceitar teorias improváveis de conspirações mundiais, comunismos comedores de gente e grupos internacionais anticristãos homicidas. Teorias que, justamente por serem improváveis, são mais fáceis de crer e de criar grupos que normalizam suas próprias crenças: fraternidades que se autocuidam e se autojustificam.
Estabilidade. Linearidade. Terra plana. Uma maravilha. O outro é o inimigo.
Estas almas desejosas de crer acabam seduzidas e morrem pelo sedutor. Dão a vida em troca da fé em mitos e em explicações alucinadas. Para manter a estabilidade do abovinamento, vale até morrer. A democracia não é ambiente saudável para os ruminantes de crenças ideológicas. A democracia é complexa demais, pois há inúmeras (e cansativas) variantes.
A estabilidade das crenças não é o ponto forte da liberdade democrática. A estabilidade das crenças mente.
Já o fascismo é perfeito para os crentes ideológicos: há regras, distribuição moral do poder, punição e linearidades previsíveis. O fascismo diz do certo e do errado. Diz do amigo e do inimigo. O fascismo tem a verdade. E a explica inúmeras vezes criando e ratificando uma narrativa. Mesmo com explicações contraditórias.
Para o crente ideológico, a contradição não é problema. Assim como no mundo jurídico a última lei revoga a anterior; uma explicação mítica nova prevalece sobre a mais antiga! Desfaz-se a contradição automaticamente.
O crente que quer uma verdade explicável e definitiva, acredita na hierarquia. Portanto, se há vários profetas, sempre procurarão o mais importante. Isto numa gradação de valores morais ou numa hierarquia institucional (o cargo mais alto). Em consequência desta visão vertical, ficam felizes quando também sobem na hierarquia do conto mítico. Ao ascenderem, percebem que há outros abaixo de si e que, por serem “menos”, acolhem e seguem quem está subindo hierarquicamente.
Admira-se o superior. Subjuga-se o inferior.
Nessa hierarquia o crente ideológico se entende sempre como classe média. Sente-se um tanto abaixo dos de cima. Entretanto, percebe-se como mais acima dos de baixo. Desta forma tem sempre mais um degrau para subir. Também haverá sempre alguém abaixo para satisfazer a vaidade de quem sobe. A crença na meritocracia satisfaz a vontade de ter sempre algum poder sobre o outro. A crença na meritocracia mente.
Mito! Mito! Mito! – Gritam
Esquecem que mito é uma narrativa apenas. Uma narrativa que tenta trazer ao presente heróis passados. O mito é uma história requentada que agrada apenas a alguns, mas é contado como se fosse uma verdade universal. Mito, mentira e crença hoje se confundem.
Amigo leitor, proponho menos crenças. A busca é melhor que o que encontramos. A pergunta é melhor que as respostas. A coragem de descrer em mitos é essencial aos corajosos.
Sabe-se que a verdade absoluta é uma utopia. O que não invalida os esforços em busca-la. É a busca que nos aperfeiçoa. Entretanto, o motivo que me fez escrever não é discutir a questão filosófica sobre a verdade. O que aponto é que o sonho humano de encontrar respostas para tudo foi envenenado. O veneno foi a implantação de uma busca por mitos para se crer. A busca pelo que está à frente e no futuro, mudou para a busca pela manutenção do passado e pela estabilidade conservadora.
A estabilidade conservadora mente.