domingo, 9 de setembro de 2018
domingo, 2 de setembro de 2018
terça-feira, 28 de agosto de 2018
A Filosofia na sala de aula evita o walking dead
Conceituar a Filosofia é uma tentativa milenar. O conceito
de filosofia se mantém uma questão filosófica. Uma questão irrespondível. Não
dá para conceituar, paralisar, o que é essencialmente movimento. Afinal, se é
movimento, a parada o extingue. Parar o movimento para vê-lo é uma contradição.
Assim ocorre com a filosofia. Ela não é, ela está eternamente sendo. Quando
criamos um conceito para ela, estamos imediatamente dando as condições para a
criação de outro. Este é o dilema que me atinge quando perguntam para mim sobre
a disciplina de Filosofia nas escolas. Afinal, para responder sobre este tema, há
uma natural predisposição em defini-la.
A Filosofia é um andar eterno. E ela tem dois pés. Caminha
passo a passo. Quando o pé esquerdo está no chão, o direito está indo para
frente em busca do mesmo: o chão que está sob o pé esquerdo. Mas, quando lá
chega, o chão é outro. Muito similar, mas não é o mesmo. Na sequência, quando o
pé direito toca o chão, o esquerdo já está subindo para logo descer. E quando
toca o solo, já não encontra o outro pé que já está a caminho. É sempre assim.
Movimento, solo, movimento. O movimento é eterno e o solo nunca é o mesmo, mas
sempre similar.
Algum caminheiro apressado pode estar valorando em demasia
o pé que está à frente. Seria este pé avançado o motor, a busca do novo, da
novidade, do futuro. Mas, sem o pé atrás, não é possível o movimento do pé da
frente. Aquele sustenta este. E se o principal é o passo, o movimento, não é
possível identificar o pé atrás e o da frente. Ora um está lá, ora o outro.
Depende em que momento olhamos. Caso
queiramos fixar um dos pés para melhor observa-lo, o movimento cessa. E quando
cessa, já não é mais um caminhar, mas uma parada. Estaríamos observando a
parada e não o movimento.
A Filosofia é o caminhar, as passadas. Ela é verbo. Digo
que é verbo porque gramaticalmente ele é movimento. Apesar de um verbo ser uma
palavra escrita e fixada nos dicionários, continua sendo essencialmente
movimento. O verbo é feito para ser conjugado, não para ser conceituado. E
mesmo quando vamos conceitua-lo, usamos verbos. Ele é, portanto, movimento
sempre. Para definir o verbo usamos verbos. Para definir a filosofia,
filosofamos.
Por consequência, a disciplina de filosofia nas escolas,
existe para que mantenhamos os aprendentes em estado de
crítica. Afinal, a Filosofia não tem serventia em sala de aula. Ela não
serve para nada, nem serve á ninguém. Como ela anda sempre, não dá tempo para
fazê-la serva. Por isso, ela mantém os estudantes em estado de crítica. A
Filosofia não serve para fazê-los críticos. Ela os mantem nesse estado. Os
mantém em movimento. Quando acreditam, descreem. Quando descreem, voltam
acreditar em outras coisas. Estão engajados em um movimento, mas prontos a
engajarem-se em outro. A Filosofia só aceita a fé na dignidade da pessoa humana
e no seu direito universal de ser feliz. Essa fé é inabalável. É a energia que
faz o passo, o movimento do filosofar. Afinal, sem fé no homem, filosofar (que
é para o homem) não faz sentido. Seria um passo caro demais para lugar nenhum.
Na sala de aula, talvez o pé atrás seja o conteúdo
programático. O pé à frente a reflexão crítica sobre a atualidade. E no segundo
em que pensamos a atualidade, este pensar passa a ser o pé atrás para o passo
seguinte. O passo seguinte buscará novamente o conteúdo histórico da filosofia,
o solo para pisar e sustentar o outro pé que já está a caminho do futuro. Caso
o caminheiro fixe um dos pés, ele para ou cai. Se para, não filosofa. Se cai,
causa prejuízo a si e aos outros que o acompanham na sala de aula. O professor
cai quando se prende a preconceitos. Mesmo os bonitos e justificáveis.
A briga entre o filosofar na escola e a obrigatoriedade dos
conteúdos programáticos (história da filosofia), são também os passos, o pé
ante pé do filosofar legítimo. Ao questionar o conteúdo versus o filosofar, estão
os professores filosofando porque estão andando. É uma questão dialética. Na
sala de aula não é possível filosofar sem a história da filosofia. Não é
possível a história da filosofia sem o filosofar. Assim como não é possível que
todos amem a filosofia em sala de aula. Há os que a odeiam. Basta ao professor
que filosofem contra ela e já está muito bom. Neste caso, a negativa dela é a sua
afirmação: filosofar para justificar o não filosofar!
O pé esquerdo prepara o andar. O pé direito à frente
suporta o impacto do solo contra si. Então, é a sua vez de preparar o andar
para o pé esquerdo colidir contra o solo. A Filosofia é isso, o andar crítico.
Não podemos ser como o walking dead, o andarilho morto. A sala de aula é um
lugar para caminhar. É o lugar perfeito para manter os aprendizes no estado
de critica. Cada momento escolar é um passo. Cada capítulo do livro didático
é um passo. Cada reflexão é um passo. Até lembrei-me de um antigo brocardo: até
a mais longa caminhada começa com o primeiro passo. Portanto, andemos.
sábado, 25 de agosto de 2018
domingo, 19 de agosto de 2018
A democracia on line e a vontade geral
As mídias são fundamentais desin/informando a população para que esta
possa posicionar-se. A des/informação e democracia fazem uma parceria
indissolúvel na gestão democrática dos países. Garantem a liberdade de expressão
e de opinião. No formato tradicional, geralmente, antes das eleições, os povos
são espectadores, uma espécie de Big Brothers das políticas nacionais. Porém,
com o advento da cibertecnologia informativa, as coisas mudam de aspecto.
Agora, interligados on line, todos tendem a se comunicar com todos o tempo
todo. Todos são textos e contextos ao mesmo tempo. Podemos dizer até que
recebemos informações já as emitindo: emitimos recebendo, recebemos emitindo!
Eu estava lendo Pierre Levy (A inteligência Coletiva) quando essas
reflexões vieram a minha mente. Segundo ele a democracia poderá ser eletrônica.
O que traz inúmeras implicações. Não precisaria haver representatividade formal/física
dos eleitores (os parlamentos por exemplo). A agilidade e a presença ubíqua das
pessoas no ciberespaço, faz com que elas possam cobrar eficácia e ações rápidas
dos entes políticos. Então a representatividade formal off line não conseguiria atender
à essas aspirações on line. Levy sugere o que ele chama de ágora virtual. Através
do acesso universal às novas tecnologias de comunicação e informação, em
especial a Internet, os cidadãos plugados discutiriam em tempo real as questões
da polis. Sem intermediários, os indivíduos se posicionariam e seriam posicionados
pelos outros cibernautas. O acúmulo de informações/decisões tomadas, este
acervo virtual (nas nuvens) criado/utilizado por todos, faria parte do que Levy
chama de Inteligência Coletiva. A conexão cada vez mais densa entre os
indivíduos criaria a inteligência coletiva irmanada à uma democracia
eletrônica. Observem que não quero explicar o pensamento do autor, mas dar
vazão a minha imaginação.
Pincei nessa leitura de Levy elementos que achei interessantes. Gostei
da ideia da participação de todos (pelo menos de todos os plugados) e da participação
política direta (sem representação) na ágora virtual. As pessoas ligadas e
discutindo produziriam boas e significativas mudanças nas sociedades. Lembrei
então do meu amigo Rousseau. Ele também entendia que a vontade do povo não pode
ser representada. Criticou a democracia quantitativa, uma espécie de contadora
de votos. Propôs a vontade geral.
Rousseau entendia que a vontade individual do homem é egoísta. Porém, ao
eliminar todos os interesses conflitantes entre os homens, restaria um
interesse comum, que ele denomina vontade geral. Essa vontade
tende sempre para aquilo que é bom à coletividade. A vontade geral são todos os
interesses, que simultaneamente, são úteis para todos os homens. Não pode ser
confundida com a “vontade de todos”, que seria a somatória de todos os
interesses particulares, egoístas e conflitantes dos homens.
Minha intenção com este escrito é trazer a questão: a vontade geral
(Rousseau) e a ágora virtual (Levy) são compatíveis e produzem sinergia?
Entendo que sim. A percepção atual que
temos das vantagens da eterna e sempre criativa discussão on line no espaço virtual heraclítico, é o elemento que faltava ao
analógico Rousseau. A tecnologia está nos dando a chance de criarmos um novo
jeito de lidar com a política no mundo. Não dá para sabermos (provavelmente
nunca saibamos) onde este caminho nos levará. Mas, o melhor mesmo, é saber que
ainda há caminhos possíveis. Infinitos caminhos (mesmo que tecnológicos) que crescentemente
garantam a crescente qualificação da liberdade e da responsabilidade das nossas
escolhas políticas.
quarta-feira, 15 de agosto de 2018
As organizações internacionais e o Brasil
Em tempos remotos, vivíamos em cavernas. Nossos problemas
eram limitados: alimentação e segurança. Nossas preocupações giravam em torno
do local onde vivíamos e caçávamos. Com o tempo, os espaços da ação humana cresceram
junto com a necessidade de mais alimentação. Podemos imaginar os grupos
crescendo em número e em necessidades. Podemos igualmente ver pelos olhos da
imaginação as populações de humanos crescendo, o surgimento das nações, do
comércio, das navegações e das tecnologias. Até o ponto em que os humanos
passaram a dominar todo planeta. O que era inimaginável para os moradores das
cavernas, a modernidade conseguiu: o mundo se tornou um lugar pequeno,
conhecível e por todos habitável. Descobriu-se, contra nossa vaidade, que a
terra é pequena, modesta e gira humildemente em torno do sol.
Na mesma proporção em que dominávamos o planeta, crescia exponencialmente
o problema de conseguir dominar a nós mesmos. Somos criaturas inteligentes,
criativas, egoístas e muito problemáticas. Agora o problema é a convivência
comunitária de todos por todo o planeta. Os países não conseguem resolver
sozinhos os dilemas da nossa espécie. Na modernidade éramos cidadãos de nossos
países. Agora somos cidadãos do mundo e no mundo.
A partir do século XIX começam a surgir às organizações
internacionais. As tecnologias da informação permitiram o surgimento dessas
organizações. Podemos afirmar que o que as limita não são as distâncias
físicas, mas as distâncias entre as moralidades e as culturas. O homem ainda é o principal obstáculo para os
problemas criados por ele mesmo.
As organizações internacionais se apresentam como entes
formados por um acordo concluído entre Estados, e são dotadas de personalidade
jurídica própria. [1]
Elas podem, em tese, circular pelos países mesmo quando em guerra. Há acordos
internacionais que garantem a atuação e a segurança das pessoas a elas
associadas. Notadamente no século XX
elas crescem. Não por benevolência dos governos, mas por necessidades globais
reais e urgentes. Em contrapartida, o direito internacional passou a considerar
estas organizações como pessoas jurídicas que possuem direitos e deveres,
podendo apresentar reclamações nas cortes internacionais. Protegidas, podem
agir de forma mais independente. Elas possuem como característica a associação
voluntária de seus membros e, sendo autônomas, o poder se autogerirem. Como
exemplo, podemos citar as que mais se destacam hoje, como a ONU, a OMC, a Otan,
o FMI, o Banco Mundial, a OIT e a OCDE.
Para o exercício de suas atividades no plano internacional,
as organizações internacionais possuem imunidades e privilégios em relação aos
seus bens, pessoal, estabelecimentos e representantes dos Estados que se
encontram acreditados junto ao Organismo Internacional. Essa situação se
explica em razão da necessidade de garantir liberdade e segurança da missão
desenvolvida.[2]
A diplomacia e os países são conclamados a repensar as
relações humanas internacionais como algo presente e real. É fato: os humanos
se relacionam pelo mundo todo. Portanto, mais que estruturas administrativas
que auxiliam pessoas, as organizações internacionais forçam uma política
planetária mais comunitária e solidária.
Entretanto, a força dessas organizações é relativa. Se para
os países economicamente hipossuficientes, elas são importantes; contrário
senso, para as nações poderosas, as organizações internacionais são frágeis e,
não raro, impotentes. O mundo, no seu aspecto político, é um jogo de xadrez.
Vale mais que a força bruta a estratégia e a cooperação. Se uma organização
internacional é frágil como um peão no tabuleiro de Xadrez global, se amparada
por outro peão, no contexto do jogo, essa peça frágil se empoderará muito. Como
exemplo, podemos imaginar uma ação da organização Médico sem fronteiras num
país conflagrado por guerra. Seu poder de ação é ampliado quando amparado pela
ONU ou por vários organismos internacionais.
As organizações internacionais, como já enfatizamos,
desfrutam de limitada ou de escassa autonomia. Se para os países débeis, as
organizações internacionais tendem a representar uma garantia de independência
política e uma forma de buscar o desenvolvimento econômico, para os países
poderosos elas significam, na maioria das vezes, tão somente um terreno
suplementar – o da diplomacia parlamentar- onde atuará o seu poder nacional; as
organizações internacionais são para estes simples apêndices de sua política
externa.[3]
No Brasil atual, após o impeachment da Presidente Dilma Rousseff,
a influência das organizações internacionais decaiu fortemente. Isso evidencia
o despoder delas em determinadas situações, como já foi referido no parágrafo
anterior. Um bom exemplo é a atual situação conflituosa estabelecida entre a
Organização internacional do Trabalho (OIT) e o governo brasileiro (em relação à
“reforma trabalhista”). De forma similar, o desconforto entre nosso governo e o
Mercosul pelo mesmo motivo. Apesar do questionamento internacional em relação à
fragilização dos direitos trabalhistas, não há motivo para acreditarmos que
alguma mudança acontecerá em âmbito nacional. Evidentemente que a conjuntura geopolítica
explica tal fenômeno brasileiro. Cabe novamente a metáfora do jogo de xadrez
global. É preciso, na América latina, o empoderamento entre os “peões internacionais”.
O jornal O ESTADO DE
SÃO PAULO em fevereiro deste ano comentou na página Economia & negócios[4]:
Provocados
por uma denúncia da CUT, um comitê de técnicos nomeados pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT), sem poder deliberativo, apresentou duas
críticas à reforma trabalhista do Brasil no Report of the Committee of Experts
on the Application of Conventions and Recommendations, 2018.
1. O Comitê entendeu que a prevalência do
negociado sobre o legislado, consagrada pela Lei 13.467/2017, é contrária ao objetivo de promover
negociações coletivas livres e voluntárias, constante da Convenção 98 da OIT.
Essa crítica demonstra um total desconhecimento da realidade brasileira. A nova
lei reafirmou como inegociáveis 30 direitos garantidos pela Constituição e
abriu a possibilidade de se negociar livremente 15 direitos, determinando que o
negociado seja respeitado pela Justiça do Trabalho. Trata-se, portanto, de uma
inegável valorização da negociação coletiva, como querem a citada Convenção e o
artigo 7.º, XXVI da Constituição Federal do Brasil. (grifo nosso).
O site WWW.O VALOR.COM.BR
escreveu[5]:
O Uruguai demonstrou preocupação com os impactos da reforma
trabalhista do Brasil e pretende pressionar pela organização de uma reunião no
Mercosul que debata o assunto. "Não vamos interferir na legislação interna
dos países, mas queremos marcar preocupações, porque assim vai ser muito
difícil competir", declarou o ministro de Relações Exteriores do Uruguai,
Rodolfo Nin Novoa. "O salário dos trabalhadores não pode ser a variável de
ajuste para a concorrência nos mercados", acrescentou. (...)
No Brasil a informação é dominada por grupos da mídia
tradicional. Por consequência, ocorre por ideologia, a desinformação popular
quanto às forças internacionais que interferem nacionalmente. Não é comum as
pessoas terem consciência que as organizações internacionais podem influenciar
as políticas internas. Geralmente, ou não sabem delas ou as desvalorizam. Por
outro lado, com o revés político que enfrentamos, as mídias alternativas
virtuais vem tratando das repercussões internacionais da prisão do
ex-presidente Lula, da morte da vereadora Marielle e da intervenção militar nos
morros do Rio de Janeiro, entre outros eventos que marcam a anormalidade
institucional em que vivemos. Tenho
especial apreço pelo canal TV 247, mantido no YouTube[6].
Nesse sentido, acredito que é possível que as pessoas passem a entender e a
reconhecer a importância do Direito Internacional Público e, em especial, das
organizações internacionais.
[1]
Guerra, Sidney. Curso de direito internacional público. 9ª edição. São Paulo,
editora Saraiva, 2015. Página56.
[2]
Idem. Página 257
[3]
Seitenfus, Ricardo Antônio Silva. Manual das organizações internacionais. 6ª
edição. Porto Alegre. Editora Livraria do Advogado, 2016. Página 53
[4] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,a-oit-e-a-reforma-trabalhista,70002199033 - 22/02/2018. Visitado em 15/08/2018
[6] https://www.youtube.com/channel/UCRuy5PigeeBuecKnwqhM4yg
domingo, 12 de agosto de 2018
O resto é o resto. Simples assim.
Imagina fortemente a situação que vou descrever.
Tu estás na rua quando és assaltado por uma fulminante
amnésia. Não sabes mais quem és, nem o que fazes para sobreviver. Muito menos
tua história de vida! Percebes que tuas posses reais são apenas tuas roupas e
pertences pessoais.
O fato é o seguinte: quem tu és moralmente, é exatamente o
que pensas e sentes neste exato momento.
Podes até conjecturar a possibilidade de teres outras
posses ou outras características de personalidade anteriores, mas serão apenas
conjecturas (enquanto durar a amnésia). Se o possuis o carro que está a teu
lado, não tens acesso. Se tens contas em bancos, não tens nem ideia disso. No
teu bolso há apenas trocados. Não tens documentos.
Portanto, és exatamente o que tu portas, pensas e sentes
nesse momento. És totalmente presente. Sem passado, não podes imaginar um
futuro!
Sentes fome. Vais até uma lancheira. Ficas na porta e não
entras. Percebes que és incapaz de entrar sem ter dinheiro para comprar o
lanche. Não podes explicar este sentimento, o porquê, pois não tens história. Olhas
as pessoas inocentes comendo seus lanches de forma distraída. Fácil furtar-lhes
o alimento. Entretanto, uma força interna e inexplicável, misteriosa, impede-te
disso.
Percebes que, de forma automatizada, dás licença para os
mais idosos passarem. Tens o cuidado instintivo de não colidir com os demais
transeuntes e se o faz, pedes desculpas sem refletires. Sorris para uma criança
e sentes pena de um pedinte na rua. Dás a ele teus únicos trocados. Uma moça
derruba um pacote pequeno e tu junta-o do chão e o entrega num ato reflexo. De
onde vêm essas ações reflexas?
Então tu sentas numa praça já cansado. Observas um cidadão
lendo um jornal. As manchetes te trazem desconforto, pois falam de corrupção e
violência. Entretanto, admira a vestimenta do homem que lê. As cores combinam.
Usa gravata. Acha-o uma pessoa chique. Então olhas para ti mesmo. Também estás
vestido de forma elegante. Sapatos impecáveis. Roupas novas. Sentes que
entendes todas as manchetes do jornal, mesmo as mais complexas sobre economia.
Tens opinião pronta sobre tudo o que lês. Percebes que podes opinar com
coerência sobre os temas tratados. Ouve-te mentalmente criticar as mazelas
sociais e a corrupção. Serias, por consequência, uma pessoa estudada e honesta?
Tudo sugere que sim. As coisas que pensas e que sentes são pistas sempre atuais.
Forças a memória para te lembrares da tua identidade. Como
não lembras, percebes uma grande verdade: somos exatamente o que pensamos, sentimos
e portamos nesse momento.
A verdade é filosófica e fatal: tu és aquilo que portas,
sentes e compreendes do mundo no exato momento em que estás agindo/reagindo nele.
O ontem não existe de forma consciente quando estamos em ação. Não importa
títulos ou posses. Mesmo com a memória
apagada, se és um mau caráter, assim continuarás sendo. Se és um obtuso, assim continuarás.
Se fores amoroso, amarás. Se fores odiento, odiarás. Simples assim. A amnésia
não pode disfarçar o que és. Ao contrário, o esquecimento salientará tua essência.
Não importa o que dizes que és. Muito menos os certificados
que afirmam tuas qualidades. Quando tiveres de agir, no segundo exato da
necessidade da ação, agirás conforme tua essência construída no tempo, mas
sempre atualizada. Na ação tua essência será visível. As justificativas são
sempre a posteriori.
A pergunta do sujeito com amnésia se mantém: quem sou? Para
responder, os fatos:
Mesmo com fome, não furtaste. Na rua, procuraste não bater
em ninguém. Foste gentil. Deste passagem aos mais velhos. Pediste desculpas. Sorriste
para crianças. Tiveste pena das pessoas desvalidas e, mesmo com fome, doaste
teus últimos trocados. Devolveste o que não te pertencias. Admiraste uma pessoa
de bom gosto no vestir. Também tuas vestimentas são de bom gosto. Interpretaste
bem as notícias do jornal. Fizeste juízo moral negativo em relação às
imoralidades sociais. São pistas reais, materiais. Pistas evidentes.
Estas são tuas verdades. Não importa outras coisas: só os
fatos. Agora podes saber quem és. Saberás melhor agora do que sabias antes da
amnésia!
Tu és sujeito honesto e gentil. Amoroso com crianças e
idosos. És uma pessoa sensível às desigualdades sociais. Tens bom gosto e és
bem informado. Concluo isso das tuas ações. Não preciso saber tua história de
vida.
Após esse exercício de imaginação, podemos concluir que nós
somos apenas o que possuímos junto a nós, o que sentimos e como agimos. O resto
é o resto. Simples assim.
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