quinta-feira, 20 de novembro de 2025

 



                      Obesidade espiritual

 

Desde sempre teve aquela sensação estranha. Sentia que sua alma era maior que o corpo. Difícil explicar. É como quando alguém coloca uma blusa de tricô pequena. A blusa fica estranha, a malha fica esgarçada e pode-se ver a pele por baixo. Pois é, sentia algo assim. O corpo comprimia a sua alma. Ela ficava visível, vazava pelos olhos e pela fala.  

E o pior, o corpo crescia na velocidade X e a alma na velocidade 2X.  Queria diminuir a alma, mas essa missão, amputar o espírito, é impossível.  Tentava sonhar menos. Ler menos. Amar menos. Imaginar menos. Porém a vida não pode ser reprimida. O mundo é leitura. A beleza é inspiração. A mulher é para ser amada. Então, crescia por dentro. Um horror, um obeso espiritual. Então o corpo não aguentava, esgarçava-se e seu conteúdo intelectual vazava pelos olhos, pela boca e pelas mãos. Enfim, a malha corporal esticava até aparecer o que tinha dentro. Essa sensação era muito estranha para ele.

Queria esconder o fenômeno. Queria ser mediano. Sentar no fundo da sala de aula. Queria esquecer as palavras bonitas e dizer palavrões. Queria não admirar as moças delicadas, preterindo as desejáveis. Queria não fazer a diferença. Mas o que fazer? Todos o achavam estranho! Gostava mais de poesia do que de jogar bola.  Gostava mais de literatura do que do recreio. Apaixonou-se pela colega de óculos grossos, sem graça, mas super delicada. Amou a guria apesar dela nunca saber disso. Era fato: a alma dele estava saindo pelos poros e o colocando nessa situação difícil.

Tentou ser igual aos demais. Como todos tentou amar a guria mais bonita da sala de aula. Tentou bagunçar e colar na prova. Tentou vestir roupas da moda e falar gírias. Não deu. A sua alma era como fermento e crescia demais. Via o interior das pessoas, queria estudar e ser escritor.  Queria transar mais tarde.  Queria ler dicionário e escutar músicas do tempo da mãe dele.  Gostava do passado e sonhava com o futuro. Seu corpo era o presente, mas a alma vazava sempre para o ontem ou para o amanhã.

Riram dele. Bateram nele. Desamaram-no. Porém, o corpo ficava cada vez menor.  Um horror! Algo muito engraçado: uma alma vestindo um corpo vários números menor.  Um dia desistiu de ser igual aos outros.

A Academia Brasileira de Letras teve que mandar ampliar algumas salas para acomodar os que admiravam aquela alma. As editoras tiveram que contratar mais gente para dar conta daquele espírito que transbordava letras e rimas. Uma pessoa só não pode amar aquela alma enorme, não davam conta! Foi necessário milhares de almas apaixonarem-se por ele.

O moço está por aí ainda, cada vez mais obeso por dentro. Hoje ele está ensinando como engordar os anoréxicos espirituais! Entendeu que os espíritos magérrimos estão cada vez com corpos maiores.  Corpões fantásticos que ocupam muito espaço e são muito caros.  Um desperdício.  Alimentando as almas, sobrará mais espaço no planeta. Afinal, almas não ocupam lugar nem precisam de riquezas e do consumo.

Esse moço criou um problema. Para termos mais obesos intelectuais, será preciso uma super produção de alimentos para as almas! Pois é, esse produto (para as almas) está em falta.

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