domingo, 7 de setembro de 2025

Entre ilogidades, melancias e bandeiras americanas no dia sete de setembro.

 


Após assistir as imagens das manifestações nada patrióticas do sete de setembro, chocado, resolvi imediatamente escrever este texto. Vamos por partes para entender o meu assombro.

O fascismo nunca foi amante da lógica e da coerência em seus discursos. Por leituras acadêmicas e psicologicamente neutras, de maneira tranquila entendi o porquê da necessidade da ilógica fascista. Ora, para manter o líder e convencer os liderados, vale tudo. A ilógica discursiva oscila entre o amoralismo dos indiferentes e a imoralidade dos ativistas fascistas. O fascista ilógico pode pregar a justiça do povo massacrando a população. Tranquilamente pode falar de justiça em tribunais viciados. Entretanto, a estética fascista é (ou era!) bem coerente: sempre arrogante, masculina/homofóbica, empoderada e violenta. Entretanto o fascismo brasileiro rompeu totalmente com qualquer coerência, seja nas falas, seja na aparência. Vou explicar.

O fascismo pátrio arroga para si o exclusivo e verdadeiro amor à pátria. Diz amar nosso país e seus símbolos. O pátrio extremista se veste de verde e amarelo e afirma: nossa bandeira jamais será vermelha. Não são, de maneira nenhuma, melancias (verdes por fora, vermelhas por dentro). As melancias são o perfeito exemplo dos vermelhos comunistas, que se vestem de patriotas, mas que traem a nação em surdina. Os comunistas são traidores covardes da pátria!

Segundo os extremistas nacionais, o amor fascista patriótico não é explicável. Sente-se e pronto. É como quando alguém ama outro alguém de forma repentina. Cai-se enamorado! Não há explicação. Por isso, não há que procurar explicações científicas para o amor patriótico. A ciência macula este amor quando expõe este sentimento ao microscópio da sociologia. O patriótico extremista não se explica, ele é e pronto. O genuíno fascista odeia livros e a ciência. Afinal, estão inexplicavelmente enamorados da pátria!

Mas até para o extremista brasileiro há um limite para sua ilógica mental! No dia sete de setembro, entre nossos fascistas, a bandeira verde e amarela oscilava graciosamente em forte abraço com a bandeira vermelha: a americana! A postura visual máscula do fascista nacional estava no auge! Majestosamente admirava seu novo amante! O vermelho trumpista! Como disse o ex-líder nacional mega hétero: “I love you Trump!” Exaltados, os amantes das loucuras do líder americano, saudavam a bandeira vermelha. Mas não só isso, gozavam a expectativa de que seu amor estrangeiro logo massacre economicamente o Brasil. Na verdade, gostariam mesmo de uma invasão estadunidense! 

Aqui está a ilógica fatal!

Agora, caberá aos fascistas nacionais arranjar uma explicação (i)lógica para tal amor pelo inimigo econômico do nosso país! Haja argumentos insanos! Haja imaginação execrável para ajustar sua conduta traiçoeira ao verdadeiro patriotismo e ao amor à pátria genuíno.

Confesso: repugnou-me! Afinal, não estou apenas estudando em livros sobre as ilógicas fatais dos extremados. Estou vendo diariamente os fatos ocorrendo. Parentes, conhecidos e ex-amigos estão por aí envoltos em verde e amarelo nacionais, mas também vestem orgulhosamente o vermelho estadunidense.

Como explicar a algum incauto viajante alienígena tais contradições? Melhor nem explicar e manda-lo embora logo. Afinal, os fascistas poderiam ama-lo, traírem a Terra e acabariam por ostentarem a bandeira de seu planeta para poderem desfilar com ela.

 

O professor e o saber da História nas redes sociais.

 

A História como fatos vívidos num tempo que já passou, já não existe mais. Há vestígios, documentos, depoimentos e fragmentos. De certa forma, vivemos presos no presente pesquisando o passado para poder planejar o futuro. Portanto, somos eternos observadores ativos do passado. Na contemporaneidade, interpõe-se entre os fatos mais uma camada que pode impedir a visão clara do que foi e do que é. As redes sociais podem “nublar” nossa visão. Entretanto, também podem ser utilizadas a nosso favor quando nos conectam trazendo novas informações, tendo o potencial de irmanar internautas em busca da clareza e do conhecimento. Há quem utilize as redes sociais para criar “neblina” e confundir horizontes. Mas também há pesquisadores, jornalistas e até cidadãos comuns que fazem de tudo para bem utilizar esta tecnologia, ou seja, para melhorar as vivências cognitivas das pessoas. Cabe ao profissional da História, utilizar esta fantástica tecnologia, dominando-a e pondo este saber a favor dos estudantes. Caso o professor não entre neste campo de batalha virtual, deixará seus pupilos sozinhos, numa batalha desigual no mundo virtual.

Os humanos produzem história inexoravelmente, só por existirem. Mas, o historiador se esforça tecnicamente para organizar os fatos, dar sentido a eles, fazer com que todos tenham acesso a este fazer humano diuturno e de produção inexorável. O historiador conectando-se, simplificando seus saberes e compreensões para ser entendido, aliado às redes, estará ajudando a sociedade. Ajudando a sociedade a compreender seus contextos e a compreender-se como enredada num mundo complexo, historicamente não linear.

O trabalho do historiador não pode mais resumir-se ao âmbito das salas de aulas ou dos espaços acadêmicos físicos. Afinal, se de um lado precisamos ampliar as oportunidades de trabalho para este profissional, por outro lado, as universidades e os locais típicos para o estudo, já não comportam o tamanho e a complexidade da sociedade. Portanto, as redes sociais de acesso amplo, como projeto de futuro, poderiam ser uma gigante sala de aula. Um enorme lugar virtual para pensar os contextos históricos que nos impelem a agir como agimos. As redes fatualmente já existem com seu bem e com o seu mal. Dominá-las e fazer com que ajam a favor da sociedade é mais um desafio. Também é um desafio acadêmico.

Tenho um canal no YouTube (@prof.amilcarbernardi). Esta experiência me fez perceber as vantagens das redes. A linguagem é mais ágil, é crítica, ajuda a (re)interpetar os eventos. Mais que livros e simples leitura, quem apresenta o conteúdo, apresenta-se também, ou seja, mostra empolgação, humaniza o saber, engaja, energiza quem o assiste. Impõe movimento à reflexão, interliga os fatos e os torna mais inteligíveis, mesmo a quem não esteja por ofício interessado.

Por outro lado, há perigos. A vida virtual é espelho da vida real, física, humana, sensorial. Ou seja: se há embustes na vida diária, haverá na vida virtual. Podemos ser vítimas ou vitimar alguém. Afinal, podemos informar algo equivocamente sendo vítimas de nós mesmos, envaidecidos com nossos saberes. Há as pessoas de má fé, buscando sensacionalismo, vivendo disso. Também há bandidos pelos caminhos virtuais, assaltando os caminheiros “internéticos” com notícias falsas em proveito próprio. O professor de história, ou todos os profissionais que querem divulgar o saber, devem primeiro acautelarem-se e, posteriormente, ensinar os estudantes a acautelarem-se.

É preciso cuidar dos iniciantes. Eles podem se perder ou cair em armadilhas. No mundo virtual há tanta informação que é possível não saber mais distinguir a falsa da cientificamente testada. Relembrando: em todos os caminhos há bandoleiros violentos em busca de vítimas descuidadas.

As redes sociais tem também a característica de questionar, pela sua simples existência, os conceitos de “verdade”, mas, principalmente, o conceito de ensinar e de aprender.

As plurilinguagem das redes, as contradições inevitáveis dos pensamentos, a energia on-line dos profissionais conectados (um testemunho do que acreditam) são elementos fundamentais para uma visão crítica e renovada do ensinar/aprender/ socializar o conhecimento da História. Brigar com as tecnologias e com o desapreço pela leitura dos jovens, não “fazem” História; mas usar a tecnologia a nosso favor fará toda a diferença.

 

 

domingo, 17 de agosto de 2025

O Renascimento não foi algo linear: complexidades!

 



 O chamado Renascimento é tradicionalmente aceito como um período bem determinado, aproximadamente do século XIV ao XVI. Seria uma renovação cultural oriunda da Itália e que influenciou a Europa de seu tempo. Seria um contraponto à uma suposta Idade Média, obscura e avessa à razão. Seria como se o homem saísse da Idade Média e se tornado imediatamente ávido pelo conhecimento, transformando-se em um artista, um escultor, um cientista. Bastante comum o uso, para referir-se a este período histórico, da expressão ruptura. Ruptura no sentido de uma quebra/interrupção abrupta de uma continuidade cultural/temporal. Ou seja, o Renascimento seria uma espécie de negação da Idade Média. Porém, os avanços nos estudos referentes a este período, acabaram revelando o que hoje parece saltar aos olhos: a história não é abrupta. Ela é processual e com limites confusos/difusos. Contemporaneamente, salienta-se que o pensamento medievo se prolongou durante o Renascimento. Não houve um renascer, mas um desenvolvimento do já nascido! Igualmente importante é reconhecer que não ocorreu só na Itália, nem foi algo uníssono e harmonioso. É possível até usar o plural: renascimentos, ou seja, não um, mas vários. Portanto, é preciso, inclusive, repensar a visão eurocêntrica sobre os conceitos historiográficos. Os conceitos são ambíguos e mutáveis, à medida que a ciência História faz suas revisões. Da mesma forma que a realidade histórica do período greco-romano não foi um total esplendor perdido, assim como o medievo não foi só doenças, ignorância, teocentrismo e caça às bruxas. Por exemplo, os medievais Agostinho, Tomás de Aquino e Guilherme Ockham permaneceram atravessando os tempos renascentistas.

Há uma espécie de mito que diz que a ciência descobre coisas e, depois de descoberto, desnudado, assim permanecerá aos olhos de todos. O pesquisador realizaria um desvelamento no sentido grego da palavra aletheia. Afinal, pensam as pessoas, se algo é revisto é porque estava errado. Pois bem, este conceito de errado X correto não se aplica à ciência em geral e, também, à ciência História. A ideia de linearidade é humana, construção social e histórica. A realidade é de outra esfera, uma esfera que acompanha o homem, mas nunca será totalmente conhecida.  O homem vai desenvolvendo seu saber à medida que as ideologias permitem e as tecnologias vão avançando. Por exemplo, a enorme exatidão que foi possível quando foi desenvolvido a técnica que permite calcular a idade de materiais orgânicos, pelo método de datação por carbono-14. Perceba-se quanta revisão científica esta técnica tornou possível. Não sempre a identificação de erros, mas revisões qualitativas. Revendo o período chamado de Renascimento, hoje podemos observar como uma visão eurocêntrica orientou este conceito. Com o devido cuidado para não cairmos em anacronismos, atualmente podemos observar que os fenômenos humanos não são ocorrências lineares, nem se restringem somente a uma região no planeta. O renascimento não foi somente europeu, nem ocorreu com limites fixos. Suas características foram encontradas em vários países e em períodos históricos anteriores. Os acontecimentos são multifacetados e multitemporais. A evidente vantagem desta visão é que abrange as complexidades, evitando as simplificações. Desta forma podemos compreender melhor as complexas relações entre os eventos. Toda a ocorrência humana na sua existência temporal, tem o antes - que o sustenta, tem seu derredor - por onde se espraia, e tem suas imprevisíveis consequências.  Portanto, cabe ao historiador afastar-se das simplificações e jogar-se sem medo nas complexidades.

 

domingo, 10 de agosto de 2025

A transferência e o professor II

 

É preciso que o aluno perceba a existência do professor. Caso seja o aprendente indiferente ao mestre, não haverá aprendizagem nessa relação – nem sei se há uma relação. Assim como o ar é o meio material para a propagação do som, a transferência é o meio psicológico para a ocorrência da aprendizagem acadêmica.


Evidente que sempre haverá uma dose de resistência: uma parte da energia (que deveria ser deslocada para a aprendizagem) se “perde” na relação ensinar↔aprender. Para compensar essa perda de energia, torna-se importante saber como usar o vínculo estabelecido entre o professor e o aluno. O mestre deve estar atento às reações do aprendiz frente ao aprender na prática de sala de aula. O professor ficará atento as reações negativas mais frequentes. Elas são a chave para a qualificação da aprendizagem.


Essa atenção ou escuta das reações do aprendiz, chamo de escuta pedagógica.  Nessa escuta o professor deve se entregar à audição plena do aluno (esforçando-se para calar suas “vozes” e expectativas interiores). É uma espécie de desapego para não ser contaminado pelos preconceitos e informações anteriores. Dessa forma, o mestre tenderá a de fato ouvir seu aluno. É na vocalização dos sentimentos e frustrações que inúmeras disfunções da aprendizagem aparecem. Essa mesma vocalização pode resolver/deslocar ou amenizar essas disfunções.

 

Somente o professor ouvindo e falando, dialogando, incentivando e mostrando outros caminhos, marcando ativamente sua presença, possibilitará a qualificação da aprendizagem em sala de aula. 


Não é fácil, mas também não é impossível.

A transferência e o professor

 

Grosso modo a transferência é um processo inconsciente através do qual o analisado desloca para o analista seus afetos. Através desse processo, o paciente se relaciona com o analista nos extremos, amando-o ou odiando-o. A vida afetiva anterior da pessoa se atualiza na figura do terapeuta. Um exemplo clássico é portar-se com o profissional semelhantemente como na relação filho(a)-pai(ou pessoa de referência). É essa transferência que possibilita a melhora do sofrimento psíquico, pois torna-se atual o que teve origem no passado. Esse processo é inconsciente e, por ser inconsciente, é extremamente poderoso. Nas salas de aula a transferência não está ausente.

 

Queremos dizer que o aluno, com relação a seus professores, estabelece uma relação muito semelhante à transferência. O afeto desenvolvido em sala de aula (amor/ódio e nuances disso) pode ser atualizações afetivas ocorridas na infância (com as figuras de autoridade).  Os sentimentos já estavam previamente estabelecidos na psique do aluno, apenas sendo retomados na figura do professor. O professor está sujeito ao mesmo fenômeno, sentindo fortes emoções pelos seus alunos, emoções experimentadas por ele anteriormente e inconscientizadas. Vê as crianças em sala de aula identificando-se com elas, sentindo novamente as angústias infantis ou da sua adolescência.

 A transferência aluno→professor deve ser vista como um importante instrumento para entender o que passa no imaginário do aprendiz e que bloqueia o processo ensino/aprendizagem. É importante dizer que esse fenômeno é prejudicial quando aparece na forma de rejeição ao aprender ou como uma paixão excessiva pelo professor. Mas a ausência da transferência, em tese, impossibilita a relação pedagógica, pois caímos no vácuo da indiferença. Caso o aluno não tenha afeto por mim professor (qualquer que seja, positivo ou negativo) não terei acesso a sua alma.

 

Educar, mais que ensinar, é entender que esse mecanismo (transferência) revive experiências passadas e o mestre pode reorienta-las (educa-las). O afeto que o aluno demonstra pelo professor ou pelo ato de aprender é o material advindo do inconsciente, e deve ser escutado com carinho.  É no discurso do aprendiz (raivoso ou amoroso) que ele diz de suas experiências dolorosas na relação anterior com os familiares ou com o aprender. A escuta pedagógica vai ajuda-lo muito. Ouvir para encaminhar a criança ou o jovem para os caminhos do aprender. Só ouvir já faz bem e pode reconciliar os afetos inconscientes com o professor e com hábito de estudo.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Sobre o cidadão de bem e o mamífero perissodáctilo.

 

 

Eu tenho um conhecido que é bolsonarista. Aqueles de carteirinha VIP. E quem não tem pelo menos um conhecido assim?

     

      A vida não está fácil para este cidadão, um cidadão de bem.  A realidade para ele está cada vez mais hostil. Cada fato é um obstáculo a ser superado. Viver no mundo fictício e mítico, está sendo um esforço sobre-humano.

     

      A estratégia que este cidadão de bem usa quando percebe um fato, é desfigura-lo com frases assim: “De fato aconteceu, mas não foi bem assim, foi parecido, mas não foi desta forma”.

 

       Querem um exemplo desta desfiguração dos fatos? Quando eu disse para ele que as atitudes dos que querem a tarifação do Brasil em cinquenta por cento prejudicam o país, ele foi logo dizendo/desfigurando: “Não é bem assim não! O que é prejuízo hoje, será vantagem no futuro! Por exemplo, eliminar os comunistas. Então, não é exatamente um prejuízo, não!”

 

      Veja que ele acredita que existe um prejuízo lucrativo. Na verdade, ele precisa acreditar nisso.

 

         Acreditar, essa palavra define a situação mental do meu conhecido. Ele precisa acreditar. Para isso mistura fé religiosa, patriotismo roto, teorias da conspiração e mitos: mistura tudo isso com os fatos. Então, é tanta mistura que o que menos importa é o fato. É uma disfunção cognitiva que precisa de outros cidadãos de bem: os delírios precisam ser ratificados pelos delirantes, em conjunto.  Para isso, meu conhecido anda entre seus iguais. Desta forma, o que ele diz encontra eco. Ele precisa de ecos. Meu conhecido vive de ecos e espelhos (só quer ver a si mesmo refletido nos outros). E pior, o que não é espelho não convém. Então, há o afastamento do diferente. A crítica morre. Em troca, autoalimentado, o grupo coeso odeia os divergentes.

 

        Acredito que o ódio é um mecanismo de defesa, pois destruindo o diferente, mantem-se a coesão, mantem-se o igual.

     

     A visão deste cidadão meu conhecido, é altamente seletiva. Uma visão especializada. Ela sabe o que ver. Não vê qualquer coisa, só o que quer. Um olhar focado. Uma lupa.

 

          Um exemplo? Se o café está caro, ele conclui que tudo está caro. E se tudo está caro, a culpa é do governo. Mas, se o pão está barato é porque antecede uma futura alta do preço. Se o arroz está com um valor estável, é porque o governo está injetando dinheiro. Dinheiro que sai do nosso bolso (impostos!), então, apesar do preço estar estável, continua caro pois pagamos o incentivo governamental. Não há como convencer a criatura de que há coisas boas no país.

 

             Ele quer o caos. Ele precisa do caos.

     

            Tentei dizer a ele que saímos novamente do Mapa da Fome, sob a perspectiva da ONU. Evidentemente que a visão especializada dele, imediatamente, informou-me do número de famintos no Brasil. Quase gritou: “São mais de oito milhões de pessoas que estão na situação de insegurança alimentar!”

 

            Entre ver a parte cheia do copo, evidentemente, ele só vê a parte vazia. E logo emendou: “E o bolsa família que sustenta vagabundo? Por isso o desemprego! Ninguém quer trabalhar!”

     

              Quando penso nisso, lembro da imagem do burro com uma viseira, tendo em frente a visão focada de uma suculenta cenoura. É claro que o burro só vê o objeto do seu desejo (a cenoura) e para ele fatalmente se dirige. Quem conduz a cenoura, conduz o burro. Mas, no caso do meu conhecido é bem pior. É como se o próprio burro orgulhosamente sustentasse a viseira. E mais, idolatrando o condutor da hortaliça tão desejada. Esse tipo de burro tem a fé religiosa de que quem conduz uma bela hortaliça, e também conduz os mamíferos perissodáctilos (burros), são seres mitológicos e divinos. Quem conduz uma hortaliça tão desejável, necessariamente é um capitão messiânico a ser seguido!

 

                Entendo que não há o que fazer. A ilusão é cocaína para ele. Ela fez do meu conhecido um cidadão de bem viciado. Caso se afaste do seu mito carregador de cenouras, fica irritado, treme, convulsiona e delira. Não há como ele, sozinho, superar sua dependência ideológica. Afastado do seu vício seu corpo sofre. Uma espécie de síndrome de abstinência. Então, até se torna agressivo.

 

                     E quem não tem um conhecido deste tipo?

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Triste Narciso, incansável buscador da atenção alheia.

 

                                                       Prof. Amilcar Bernardi

 



                      A coisa não está fácil para ninguém. Mas, difícil mesmo está para os narcisos. Acreditem.

 

O mito grego de Narciso nos conta que um jovem se achava tão bonito, mas tão bonito, que se apaixonou por si mesmo. Melhor dizendo, por sua imagem refletida nas águas de um lago. A superfície fazia às vezes de espelho.  Dizem as más línguas que ele morreu afogado, jogando-se nos braços da sua imagem refletida no lago!

 

As pessoas são o lago onde o moço Narciso se vê. Ele precisa de público na medida em que este o aplaude. Ele é o show (perfeito, claro!)

 

Evidentemente que esse mito fala da tragédia que é Narciso amar a si mesmo, tendo como medida o amor das outras pessoas pela imagem dele. Se formos como Narciso, só haverá garantia de que somos belos, se a outra pessoa afirmar que somos. Podemos até imaginar que o moço Narciso só poderia se relacionar com quem dissesse o que ele queria ouvir (como num eco).  Portanto, era extremamente seletivo, relacionando-se somente com quem o refletisse sem distorções (discordâncias). Se formos Narcisos, seremos também seletivos em busca de bons refletores de nós mesmos. Maus refletores de nada servem!

 

O jovem Narciso até a década de 1980 para ser feliz, precisaria de relativamente poucas pessoas. A família e mais alguns amigos. Cercando-se destas pessoas conseguiria convencê-las de sua beleza, podendo, portanto, ver-se refletido nos elogios proferidos por elas.  Falo em beleza, mas poderíamos imaginar que ele se acha inteligente ao extremo ou corajoso acima da média. Poderíamos elencar muitas qualidades  sugeridas por ele para si mesmo. Qualidades para serem confirmadas pelos outros (refletidas).  Estas poucas pessoas poderiam deixar o rapaz Narciso feliz. Seriam poucos espelhos para procurar seu reflexo. Portanto, mais fácil do que se fossem muitas pessoas!

 

Seus esforços para convencer os outros a refletirem/ratificarem suas qualidades, denuncia a dependência que o Narciso tem. Tanto maior o esforço, tanto maior a dependência: o tamanho do esforço é do tamanho da dependência! Ele, em relação a sua autonomia, está fatalmente ferido. O que ele faz tem que ser reluzente para o outro ver. Tem que ser interessante para o outro se interessar. O que o gentil Narciso faz genuinamente para si mesmo? Nada!  Em um primeiro momento, parece que tudo que ele faz é para seu próprio prazer vaidoso. Mas, percebamos, o que ele sempre faz, faz sempre para as outras pessoas. Apenas as sobras dos olhos alheios, alguns reflexos tão desejados, o satisfazem. Pobre criatura, pobre Narciso tão dependente e frágil! Ele precisa viver na luz (sem sombras) para ser mais visto, mais percebido e, por consequência, mais bem refletido, da forma mais nítida que for possível. Uma maldição!

 

E agora, no século XXI, o que pode nosso espetaculoso Narciso? Assim como na obra Ensaio sobre a Cegueira do José Saramago, já há tantos flashs que as luzes mais cegam que permitem reflexos em espelhos. A competição narcísica está terrível. É muita gente com seus celulares aparecendo, buscando reflexos/likes. A coisa é bem complexa. São inúmeras redes sociais e poucas pessoas físicas, palpáveis, para convencer/refletir. Quero dizer que não vemos quem está do outro lado do celular. São criaturas fantasmais, onipresentes, insaciáveis de novidades. O retorno vem em likes e em visualizações. Na verdade, o que percebemos são números. O sucesso é numérico. O espelho ou o lago onde deve se refletir o esperançoso Narciso, são multiplicados por milhares de celulares. Então, a missão de chamar a atenção e receber elogios, é quase impossível. Trágico Narciso que vive para se ver no outro, sem sequer saber quem é esse outro. Esse outro é invisível, é distante, é fantasmagórico e extremamente infiel. Convencer a tantas pessoas virtuais, parece ser um caso para Sísifo, eternamente condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma colina, sem poder impedir que ela role de volta. É uma missão impossível buscar reflexos em tanta gente!




 Penso que melhor é deixar de ter aspirações Narcísicas. Pelo fato de que são irrealizáveis. Viver para os outros é deixar na penumbra o que (já) somos, ou o que de fato queremos ser. Não podemos nos isolar, claro. Sempre fazemos as coisas levando em consideração a opinião alheia. Afinal, não vivemos numa ilha! Entretanto, vivermos na dependência dos reflexos alheios é cruel demais. Vivermos na exposição extrema é deixar de ter vida interna, (auto)reflexiva, autônoma e centrada.

 

Pobre Narciso contemporâneo, está condenado a viver na esperança de ver em plenitude seu próprio reflexo. Vã esperança, nunca verá a si mesmo, sempre verá apenas o outro.

domingo, 27 de abril de 2025

Vamos falar sobre o diálogo?


 

Se alguém perguntasse a mim o que mais faz falta para a humanidade, eu diria com muita convicção: o diálogo.

Gosto de esclarecer para mim mesmo o sentido das palavras, notadamente as que eu mais aprecio. Então a palavra escolhida é como o sol. As imagens que me vêm à mente ficam como os planetas circulando atraída pela palavra em foco (de massa maior). Neste texto, o sol será a palavra diálogo.

A primeira ideia que surge quando quero pensar a palavra diálogo é: alternamento.  Só há diálogo quando a conversação é alternada. Um interlocutor diz e o outro quer ouvir o que é dito. Logo vem a vez do segundo dialogante dizer algo na certeza de que será ouvido com atenção. Percebam que há uma regra determinada com antecedência: cada um fala por sua vez na certeza que será ouvido com atenção. Caso a regra seja desrespeitada, já não há um diálogo. Há especial peso no quesito “certeza de ser ouvido com atenção”. Realço aqui “querer” e “atenção”. É uma regra fundamental: atenção, empatia, foco no outro.

Não podemos esquecer que o diálogo atencioso é troca. Ora, se estou numa situação de troca, é porque o que vou ganhar tem valor para mim. E se vou ganhar algo de valor, é lógico que o que eu tenho para trocar é de importância similar para o outro. Afinal, só trocamos coisas se obtemos o que queremos (e, portanto, nos falta). Se eu creio que o que eu tenho é ouro e o que o outro oferece é prata, não há troca. Talvez suborno de quem tem ouro e subserviência de quem tem prata. Só há diálogo quando todos tem ouro (no sentido figurado, óbvio!). Só há trocas sinceras entre iguais.  Fora desta igualdade, não há diálogo. Somos todos habitantes de um mesmo planeta, eis nossa igualdade essencial.

Gosto muito da expressão reciprocidade. Ela se refere a uma contrapartida equivalente. Se sou gentil, receberei gentileza. Faz parte da regra do diálogo. Se eu for grosseiro, receberei grosseria. A grosseria é destruidora para quem quer dialogar. Portanto, nem cabe na nossa conversa. O olhar atento, a voz branda, mas firme, o respeito ao interlocutor: terá como resposta o mesmo.  Dar para receber. Se estou cheio de bons argumentos, com certeza vou receber como resposta tão bons argumentos quanto! Portanto, na reciprocidade, quanto mais estiver pronto para argumentar, o outro estará da mesma forma. Ambos, portanto, estão prontos para vencer pela inteligência. E é certo, ambos vencerão devido a qualidade dos argumentos.

E quando o diálogo é mais importante?

Quando há disputas que requerem soluções especiais para problemas. Conversar com quem pensa como eu, é divertido, mas não estimulante. Dialogar do jeito que descrevi até aqui numa situação conflituosa, é coisa de estadista, é coisa para se orgulhar quando há um acordo onde todos ganham algo de mesma magnitude... e perdem algo também. O diálogo que comento aqui é aquele que surge na adversidade, nos problemas que precisam de solução. Não há diálogo na busca de aplausos, nem de ganhos de um sobre o outro. Esclareço então outra regra: em uma disputa entre iguais, não é possível ganhos unilaterais. Bem, até é possível, mas não é um diálogo, é uma imposição.

Agora vou falar do que mais gosto: das palavras! O diálogo é a palavra e a palavra existe para o diálogo. Por isto estudar dicionários e gramáticas é importante (não riam!). Estudar é ganhar experiência na expressão de ideias. É uma mágica maravilhosa dizer o que queremos dizer de mil formas, até sermos melhor entendidos. É fantástico entre tantas palavras possíveis, escolher as mais delicadas para dizer o que é mais grave e conflitivo. Dialogar é entendimento falado, escrito, comunicado.

A palavra é a roupa que eu uso durante o diálogo. Antecipo o diálogo empático quando me visto/falo apropriadamente numa sinagoga, por exemplo. Assim como meu terno impecável (falas complexas) fica em casa se vou dialogar numa comunidade de pouca instrução formal. Portanto, o diálogo é conhecer o ambiente e as pessoas com as quais vamos fazer trocas de ideias.

Dialogar é trabalhoso. Requer estudo, atenção e o desejo de se fazer compreender sem agressividade ou empáfia. Quando eu percebo que não tenho condições de seguir os ditames do bom diálogo, chamo alguém que o faça em meu lugar. Não somos sempre bons dialogantes, mas devemos ser sempre boas pessoas em busca de outras boas pessoas. E o que é ser uma boa pessoa? Bem, bom tema para diálogos futuros!


 

Extrema direita. Só Freud explica.