sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Sobre o cidadão de bem e o mamífero perissodáctilo.

 

 

Eu tenho um conhecido que é bolsonarista. Aqueles de carteirinha VIP. E quem não tem pelo menos um conhecido assim?

     

      A vida não está fácil para este cidadão, um cidadão de bem.  A realidade para ele está cada vez mais hostil. Cada fato é um obstáculo a ser superado. Viver no mundo fictício e mítico, está sendo um esforço sobre-humano.

     

      A estratégia que este cidadão de bem usa quando percebe um fato, é desfigura-lo com frases assim: “De fato aconteceu, mas não foi bem assim, foi parecido, mas não foi desta forma”.

 

       Querem um exemplo desta desfiguração dos fatos? Quando eu disse para ele que as atitudes dos que querem a tarifação do Brasil em cinquenta por cento prejudicam o país, ele foi logo dizendo/desfigurando: “Não é bem assim não! O que é prejuízo hoje, será vantagem no futuro! Por exemplo, eliminar os comunistas. Então, não é exatamente um prejuízo, não!”

 

      Veja que ele acredita que existe um prejuízo lucrativo. Na verdade, ele precisa acreditar nisso.

 

         Acreditar, essa palavra define a situação mental do meu conhecido. Ele precisa acreditar. Para isso mistura fé religiosa, patriotismo roto, teorias da conspiração e mitos: mistura tudo isso com os fatos. Então, é tanta mistura que o que menos importa é o fato. É uma disfunção cognitiva que precisa de outros cidadãos de bem: os delírios precisam ser ratificados pelos delirantes, em conjunto.  Para isso, meu conhecido anda entre seus iguais. Desta forma, o que ele diz encontra eco. Ele precisa de ecos. Meu conhecido vive de ecos e espelhos (só quer ver a si mesmo refletido nos outros). E pior, o que não é espelho não convém. Então, há o afastamento do diferente. A crítica morre. Em troca, autoalimentado, o grupo coeso odeia os divergentes.

 

        Acredito que o ódio é um mecanismo de defesa, pois destruindo o diferente, mantem-se a coesão, mantem-se o igual.

     

     A visão deste cidadão meu conhecido, é altamente seletiva. Uma visão especializada. Ela sabe o que ver. Não vê qualquer coisa, só o que quer. Um olhar focado. Uma lupa.

 

          Um exemplo? Se o café está caro, ele conclui que tudo está caro. E se tudo está caro, a culpa é do governo. Mas, se o pão está barato é porque antecede uma futura alta do preço. Se o arroz está com um valor estável, é porque o governo está injetando dinheiro. Dinheiro que sai do nosso bolso (impostos!), então, apesar do preço estar estável, continua caro pois pagamos o incentivo governamental. Não há como convencer a criatura de que há coisas boas no país.

 

             Ele quer o caos. Ele precisa do caos.

     

            Tentei dizer a ele que saímos novamente do Mapa da Fome, sob a perspectiva da ONU. Evidentemente que a visão especializada dele, imediatamente, informou-me do número de famintos no Brasil. Quase gritou: “São mais de oito milhões de pessoas que estão na situação de insegurança alimentar!”

 

            Entre ver a parte cheia do copo, evidentemente, ele só vê a parte vazia. E logo emendou: “E o bolsa família que sustenta vagabundo? Por isso o desemprego! Ninguém quer trabalhar!”

     

              Quando penso nisso, lembro da imagem do burro com uma viseira, tendo em frente a visão focada de uma suculenta cenoura. É claro que o burro só vê o objeto do seu desejo (a cenoura) e para ele fatalmente se dirige. Quem conduz a cenoura, conduz o burro. Mas, no caso do meu conhecido é bem pior. É como se o próprio burro orgulhosamente sustentasse a viseira. E mais, idolatrando o condutor da hortaliça tão desejada. Esse tipo de burro tem a fé religiosa de que quem conduz uma bela hortaliça, e também conduz os mamíferos perissodáctilos (burros), são seres mitológicos e divinos. Quem conduz uma hortaliça tão desejável, necessariamente é um capitão messiânico a ser seguido!

 

                Entendo que não há o que fazer. A ilusão é cocaína para ele. Ela fez do meu conhecido um cidadão de bem viciado. Caso se afaste do seu mito carregador de cenouras, fica irritado, treme, convulsiona e delira. Não há como ele, sozinho, superar sua dependência ideológica. Afastado do seu vício seu corpo sofre. Uma espécie de síndrome de abstinência. Então, até se torna agressivo.

 

                     E quem não tem um conhecido deste tipo?

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Triste Narciso, incansável buscador da atenção alheia.

 

                                                       Prof. Amilcar Bernardi

 



                      A coisa não está fácil para ninguém. Mas, difícil mesmo está para os narcisos. Acreditem.

 

O mito grego de Narciso nos conta que um jovem se achava tão bonito, mas tão bonito, que se apaixonou por si mesmo. Melhor dizendo, por sua imagem refletida nas águas de um lago. A superfície fazia às vezes de espelho.  Dizem as más línguas que ele morreu afogado, jogando-se nos braços da sua imagem refletida no lago!

 

As pessoas são o lago onde o moço Narciso se vê. Ele precisa de público na medida em que este o aplaude. Ele é o show (perfeito, claro!)

 

Evidentemente que esse mito fala da tragédia que é Narciso amar a si mesmo, tendo como medida o amor das outras pessoas pela imagem dele. Se formos como Narciso, só haverá garantia de que somos belos, se a outra pessoa afirmar que somos. Podemos até imaginar que o moço Narciso só poderia se relacionar com quem dissesse o que ele queria ouvir (como num eco).  Portanto, era extremamente seletivo, relacionando-se somente com quem o refletisse sem distorções (discordâncias). Se formos Narcisos, seremos também seletivos em busca de bons refletores de nós mesmos. Maus refletores de nada servem!

 

O jovem Narciso até a década de 1980 para ser feliz, precisaria de relativamente poucas pessoas. A família e mais alguns amigos. Cercando-se destas pessoas conseguiria convencê-las de sua beleza, podendo, portanto, ver-se refletido nos elogios proferidos por elas.  Falo em beleza, mas poderíamos imaginar que ele se acha inteligente ao extremo ou corajoso acima da média. Poderíamos elencar muitas qualidades  sugeridas por ele para si mesmo. Qualidades para serem confirmadas pelos outros (refletidas).  Estas poucas pessoas poderiam deixar o rapaz Narciso feliz. Seriam poucos espelhos para procurar seu reflexo. Portanto, mais fácil do que se fossem muitas pessoas!

 

Seus esforços para convencer os outros a refletirem/ratificarem suas qualidades, denuncia a dependência que o Narciso tem. Tanto maior o esforço, tanto maior a dependência: o tamanho do esforço é do tamanho da dependência! Ele, em relação a sua autonomia, está fatalmente ferido. O que ele faz tem que ser reluzente para o outro ver. Tem que ser interessante para o outro se interessar. O que o gentil Narciso faz genuinamente para si mesmo? Nada!  Em um primeiro momento, parece que tudo que ele faz é para seu próprio prazer vaidoso. Mas, percebamos, o que ele sempre faz, faz sempre para as outras pessoas. Apenas as sobras dos olhos alheios, alguns reflexos tão desejados, o satisfazem. Pobre criatura, pobre Narciso tão dependente e frágil! Ele precisa viver na luz (sem sombras) para ser mais visto, mais percebido e, por consequência, mais bem refletido, da forma mais nítida que for possível. Uma maldição!

 

E agora, no século XXI, o que pode nosso espetaculoso Narciso? Assim como na obra Ensaio sobre a Cegueira do José Saramago, já há tantos flashs que as luzes mais cegam que permitem reflexos em espelhos. A competição narcísica está terrível. É muita gente com seus celulares aparecendo, buscando reflexos/likes. A coisa é bem complexa. São inúmeras redes sociais e poucas pessoas físicas, palpáveis, para convencer/refletir. Quero dizer que não vemos quem está do outro lado do celular. São criaturas fantasmais, onipresentes, insaciáveis de novidades. O retorno vem em likes e em visualizações. Na verdade, o que percebemos são números. O sucesso é numérico. O espelho ou o lago onde deve se refletir o esperançoso Narciso, são multiplicados por milhares de celulares. Então, a missão de chamar a atenção e receber elogios, é quase impossível. Trágico Narciso que vive para se ver no outro, sem sequer saber quem é esse outro. Esse outro é invisível, é distante, é fantasmagórico e extremamente infiel. Convencer a tantas pessoas virtuais, parece ser um caso para Sísifo, eternamente condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma colina, sem poder impedir que ela role de volta. É uma missão impossível buscar reflexos em tanta gente!




 Penso que melhor é deixar de ter aspirações Narcísicas. Pelo fato de que são irrealizáveis. Viver para os outros é deixar na penumbra o que (já) somos, ou o que de fato queremos ser. Não podemos nos isolar, claro. Sempre fazemos as coisas levando em consideração a opinião alheia. Afinal, não vivemos numa ilha! Entretanto, vivermos na dependência dos reflexos alheios é cruel demais. Vivermos na exposição extrema é deixar de ter vida interna, (auto)reflexiva, autônoma e centrada.

 

Pobre Narciso contemporâneo, está condenado a viver na esperança de ver em plenitude seu próprio reflexo. Vã esperança, nunca verá a si mesmo, sempre verá apenas o outro.

domingo, 27 de abril de 2025

Vamos falar sobre o diálogo?


 

Se alguém perguntasse a mim o que mais faz falta para a humanidade, eu diria com muita convicção: o diálogo.

Gosto de esclarecer para mim mesmo o sentido das palavras, notadamente as que eu mais aprecio. Então a palavra escolhida é como o sol. As imagens que me vêm à mente ficam como os planetas circulando atraída pela palavra em foco (de massa maior). Neste texto, o sol será a palavra diálogo.

A primeira ideia que surge quando quero pensar a palavra diálogo é: alternamento.  Só há diálogo quando a conversação é alternada. Um interlocutor diz e o outro quer ouvir o que é dito. Logo vem a vez do segundo dialogante dizer algo na certeza de que será ouvido com atenção. Percebam que há uma regra determinada com antecedência: cada um fala por sua vez na certeza que será ouvido com atenção. Caso a regra seja desrespeitada, já não há um diálogo. Há especial peso no quesito “certeza de ser ouvido com atenção”. Realço aqui “querer” e “atenção”. É uma regra fundamental: atenção, empatia, foco no outro.

Não podemos esquecer que o diálogo atencioso é troca. Ora, se estou numa situação de troca, é porque o que vou ganhar tem valor para mim. E se vou ganhar algo de valor, é lógico que o que eu tenho para trocar é de importância similar para o outro. Afinal, só trocamos coisas se obtemos o que queremos (e, portanto, nos falta). Se eu creio que o que eu tenho é ouro e o que o outro oferece é prata, não há troca. Talvez suborno de quem tem ouro e subserviência de quem tem prata. Só há diálogo quando todos tem ouro (no sentido figurado, óbvio!). Só há trocas sinceras entre iguais.  Fora desta igualdade, não há diálogo. Somos todos habitantes de um mesmo planeta, eis nossa igualdade essencial.

Gosto muito da expressão reciprocidade. Ela se refere a uma contrapartida equivalente. Se sou gentil, receberei gentileza. Faz parte da regra do diálogo. Se eu for grosseiro, receberei grosseria. A grosseria é destruidora para quem quer dialogar. Portanto, nem cabe na nossa conversa. O olhar atento, a voz branda, mas firme, o respeito ao interlocutor: terá como resposta o mesmo.  Dar para receber. Se estou cheio de bons argumentos, com certeza vou receber como resposta tão bons argumentos quanto! Portanto, na reciprocidade, quanto mais estiver pronto para argumentar, o outro estará da mesma forma. Ambos, portanto, estão prontos para vencer pela inteligência. E é certo, ambos vencerão devido a qualidade dos argumentos.

E quando o diálogo é mais importante?

Quando há disputas que requerem soluções especiais para problemas. Conversar com quem pensa como eu, é divertido, mas não estimulante. Dialogar do jeito que descrevi até aqui numa situação conflituosa, é coisa de estadista, é coisa para se orgulhar quando há um acordo onde todos ganham algo de mesma magnitude... e perdem algo também. O diálogo que comento aqui é aquele que surge na adversidade, nos problemas que precisam de solução. Não há diálogo na busca de aplausos, nem de ganhos de um sobre o outro. Esclareço então outra regra: em uma disputa entre iguais, não é possível ganhos unilaterais. Bem, até é possível, mas não é um diálogo, é uma imposição.

Agora vou falar do que mais gosto: das palavras! O diálogo é a palavra e a palavra existe para o diálogo. Por isto estudar dicionários e gramáticas é importante (não riam!). Estudar é ganhar experiência na expressão de ideias. É uma mágica maravilhosa dizer o que queremos dizer de mil formas, até sermos melhor entendidos. É fantástico entre tantas palavras possíveis, escolher as mais delicadas para dizer o que é mais grave e conflitivo. Dialogar é entendimento falado, escrito, comunicado.

A palavra é a roupa que eu uso durante o diálogo. Antecipo o diálogo empático quando me visto/falo apropriadamente numa sinagoga, por exemplo. Assim como meu terno impecável (falas complexas) fica em casa se vou dialogar numa comunidade de pouca instrução formal. Portanto, o diálogo é conhecer o ambiente e as pessoas com as quais vamos fazer trocas de ideias.

Dialogar é trabalhoso. Requer estudo, atenção e o desejo de se fazer compreender sem agressividade ou empáfia. Quando eu percebo que não tenho condições de seguir os ditames do bom diálogo, chamo alguém que o faça em meu lugar. Não somos sempre bons dialogantes, mas devemos ser sempre boas pessoas em busca de outras boas pessoas. E o que é ser uma boa pessoa? Bem, bom tema para diálogos futuros!


 

Sobre o cidadão de bem e o mamífero perissodáctilo.

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