terça-feira, 12 de outubro de 2021

Princípio da propriedade: critério supremo. Para fazer refletir.

 

 

Para fazermos uma experiência mental sobre o que vou comentar, podemos imaginar duas situações.

 

Caro leitor, tenta se colocar nas situações abaixo.

 

Na primeira situação, pensemos em um cidadão dentro de sua casa. Então, à noite, vê uma pessoa empurrando sua moto novinha. Já está fora da garagem. Vai furtá-la. O cidadão pega sua arma e, sem sair da segurança da casa, atira contra o assaltante. Este morre. A moto é resgatada.

 

Na segunda situação imaginemos que a (mesma) moto está na garagem. A garagem pega fogo. O mecânico que fazia um pequeno conserto, fica preso lá dentro. O cidadão (o mesmo do primeiro caso), dono do veículo, sai da sua casa correndo, salva a pessoa e perde sua moto que tanto gosta.

 

É possível crer que se os jornais publicassem a primeira situação, parcelas significativas da sociedade apoiariam o atirador.  De forma similar, caso publicassem a segunda situação, também provocaria o apoio da sociedade ao cidadão que quase se imolou para salvar outra pessoa. Mas, reflitamos, ambas merecem igual apoio? E por quê?

 

Analisemos.

 

Comecemos pela segunda situação. Percebemos que o cidadão, sendo proprietário (absoluto) do veículo, pode até decidir por deixá-lo ser destruído pelas chamas. Mesmo destruída a coisa, ela continua sendo dele. Na verdade, a decisão pela destruição apenas ratificou seu status de dono. Só o dono tem o supremo poder de destruir o objeto sob seu domínio legal e fático.

 

A propriedade permanece intocada: eis a regra geral!

 

Agora, tratemos da primeira situação. Neste caso, a propriedade teve maior valor que a vida, pois uma pessoa foi morta para salvar a propriedade e posse (material) da moto. Percebamos que a propriedade é um atributo ideal, avaliado como superior a coisa material. Relacionando com o segundo caso, a situação inverteu-se: a prioridade foi a vida salva e a moto se perdeu.

 

Vamos esclarecer estas sutilezas: o valor da ideia de propriedade e o valor material envolvidos.

 

Em um dos casos, um meliante invadiu uma garagem. Tentou um furto (qualificado), uma ilegalidade. O proprietário, não aceitando a perda de algo de sua propriedade entendida por ele como absoluta, sentenciou rapidamente à morte o invasor. No segundo caso, a presença de um estranho (o mecânico) foi permitida. Por consequência imediata, não houve nenhuma violação da propriedade. Então, o proprietário se permitiu proteger a vida e deixar para trás o bem material.  Salvou-se a vida, destruiu-se o veículo.

 

Nestes casos, o que há em comum e em que divergem?

 

Em comum: em ambos os casos o mesmo bem material está em risco; a moto.

Divergência: A diferença está na permissão ao acesso à propriedade.

 

Isso ajuda a entender o fenômeno? Sim. Ficou claro que é a questão da propriedade que define o final destas histórias inventadas (mas verossímeis). Em um dos momentos a propriedade privada é violada (alguém morre). Em outro, é permitido o acesso à propriedade (alguém é salvo).

 

Os dois eventos são regidos por uma norma informal e bruta, mas conhecida e aceita. Se a propriedade é violada, a pena é de morte. Neste caso, o invasor não é gente. É vagabundo. “Vagabundo” é aquele que não respeita o valor a priori da ideia de propriedade.

 

Ao contrário do parágrafo anterior, caso o acesso à propriedade seja permitido, então quem a acessa está na categoria de pessoa (não é um “vagabundo”). Só pessoas podem ser salvas por proprietários. Podendo até o salvador expor-se à morte para salvar alguém.

 

O critério de ser ou não pessoa é a permissão/negação ao acesso à propriedade.

 

Pensando no valor vida (no primeiro caso a vítima mata, no segundo caso salva) evidencia-se que há um valor superior a ela. É ele que vai decidir o desfecho. Este alto valor é inviolável.

 

Que valor é esse, superior a vida?

 

Não é algo material e mensurável. É a priori e superior tanto ao veículo específico, quanto às pessoas envolvidas. Portanto, podemos dizer que é um princípio valorativo, uma ideologia. O que se salienta nos dois casos imaginados é a ideia de propriedade.

 

Uso o termo ideologia no sentido de um sistema orgânico de ideias que quer manter o status quo das classes proprietárias. Esse termo é adequado porque também abrange os que possuem poucas coisas, mas que agem de forma igual aos que têm inúmeras coisas.

 

O princípio da propriedade, ele é o valor determinante, inviolável.

 

Nunca esteve realmente em jogo a moto nos exemplos, pois foi abandonada no caso do incêndio. O que foi posto à prova foi a crença geral que diz: a propriedade é inquestionável. Esta crença  dá aos seus adoradores o poder de decidir sobre a vida humana.

 

Explico retomando os dois casos imaginários.

 

No primeiro caso (o furto) não houve permissão do proprietário. Logo, para tal infração de princípio é possível a pena de morte (e a honrosa manutenção da moto nas mãos do dono – apenas um troféu).

 

No segundo caso (o sinistro na garagem) a vida pôde ser avaliada por ela mesma (portanto, digna de ser salva), mesmo havendo riscos ao salvador! Isso só foi possível porque não havia “vagabundos” na jogada, só cidadãos de bem. Salientamos: o princípio mítico da propriedade não foi abalado. Ocorreram decisões livres de um proprietário.  Não houve abalo por que havia duas permissões: a permissão para a entrada do mecânico na garagem, e a decisão do dono de deixar o fogo consumir o veículo.

 

Só proprietários tem tal poder.

 

Percebamos que nas situações imaginadas nos primeiros parágrafos, o bem material é sempre o mesmo, o veículo. Portanto, vê-se, não é ele que está em jogo, pois ora se matou por ele, ora foi ignorado para salvar alguém.

 

Relembremos: o que está em jogo é o princípio da propriedade! É por ele que se mata e se morre.

 

O proprietário é tão dono da coisa possuída que pode decidir por destruí-la, mas está ideologicamente impedido de deixar que a roubem. O roubo ofende não a mera coisa material: ofende o mito, o princípio imperioso da propriedade.

 

Com o endeusamento da ideia de ter, é permitido matar assaltantes ao fugirem, mesmo que por tiros pelas costas. Ainda que desarmados ou impossibilitados de reagir (só preocupados com a fuga).  Percebe-se uma espécie de desejo de vingança.

 

 Se tentas pegar o que é protegido pela propriedade, pagarás com a vida tal é a ofensa moral. – É o decreto sempre implícito nas relações sociais capitalistas.

 

Quando não conhecemos ninguém que tenha terras, nem que delas precise, entretanto, ficamos incomodados com o Movimento dos Sem Terra (MST), fica evidente que o nosso desconforto vem de algo imaterial, nunca do fato de termos ou não terras.  Por quê? Por que este movimento critica/ofende o princípio vital que engaja a sociedade que sempre se imagina dona de algo: a ideologia da propriedade privada.

 

Os movimentos dos sem alguma coisa sempre mexem espiritualmente conosco.

 

As classes mais humildes correm o risco de também defenderem a morte de alguém que fere os princípios da propriedade. Aprenderam isso.

 

A crença no princípio da propriedade é basicamente a mesma entre os possuidores e os despossuídos, mesmo não tendo fundamento na realidade.

 

É uma questão de fé, não de realidade.

 

Como fazer entender que a vida do assaltante é superior a posse da minha moto? Que perder algo que possuo é menos agressivo à humanidade que matar uma pessoa?

 

Aos fiéis crentes no mito da propriedade, é quase impossível!

 

É preciso sempre lembrar que as sanções já estão em muito descritas no Código Penal e no Código Civil. Mais ainda, os processos que levam aos julgamentos já estão descritos nos Códigos Processuais. É preciso lembrar que não há pena de morte e que, ao contrário, há os Direitos da pessoa humana. Pessoa! Não importa quem seja nem o que faz.

 

Eu gostaria de estar numa sociedade que fosse capaz de defender prioritariamente a vida e não a propriedade. Afinal, coisas eu posso ter e perder. Posso nunca as ter e nem sonhar em tê-las. Mas, obviamente, a vida só se tem uma. E quem não a tem, não pode sequer sonhar, muito menos em tê-la novamente: é chance única. Irreparável, irrepetível. De valor absoluto.

 

Coisas são coisas. Pessoas são pessoas. Vida em primeiro lugar. E vida com qualidade.

 

Simples assim.

 

 

sábado, 9 de outubro de 2021

A verbosfera: o mundo dito antes.

 

Aquilo caiu e quebrou o telhado. A coisa tinha uma forma que ninguém havia visto antes. Apesar de estar em frente aos olhos de todos, ninguém conseguia identificar a cor daquilo. Era de um brilho e de um tom nunca visto. E o odor? Ninguém havia antes sentido. Alguém coloca a mão e não consegue identificar a densidade da coisa, pois era uma densidade nunca antes percebida por eles. O peso? Era muito estranho: o conceito de leve e de pesado não se aplicava àquilo. A temperatura dela era indescritível, pois nunca sentida antes. A coisa estava ali em frente a todos, porém, como descrevê-la? Como telefonar para os bombeiros e explicar o que havia caído e atravessado o telhado?

 

Para sentir os parágrafos seguintes, tenta imaginar a “coisa” nunca experimentada antes, nunca dita antes.

 

Esta situação hipotética pouco plausível é interessante. Quando afirmei “nunca visto, nunca sentido, nunca percebido”, obrigo o leitor a não ter como representar/imaginar a tal coisa. E por que isso acontece ao leitor? Porque o impeço de puxar da memória as tintas para pintar o que caiu atravessando o telhado. Ao informar que as sensações fornecidas pela coisa não passaram anteriormente pelos sentidos (os cinco sentidos!), faço com que tenhamos que imaginar a partir da tábula rasa! E isso é impossível. Então o leitor, ao ler a descrição maluca, fica a buscar imagens para identificar a coisa. Todas as imagens vêm e nenhuma se cola à descrição. Torno indescritível a coisa, é algo indizível!

 

Aquilo que caiu só fará sentido após ser possível dizê-lo, e dizê-lo é dar sentido para ele!!!!!!

 

É uma questão vital poder dizer o que nos rodeia, portanto, é uma questão de vida dar sentido a tudo! O sentido é dito, é criado/exposto pelo verbo! Quero dizer que só existe humanamente o que é dito, o que é tomado consciência através da linguagem! Outro exemplo: enquanto não contarem que o Joãozinho quebrou o braço, para mim o acidente não existe!  Para mim e para todos que disto não sabem.

 

Vivemos na antroposfera do entendimento, fora dela não há consciência humana.

 

 O planeta é uma verbosfera! Viver e verbalizar o vivido são uma coisa só!

 

A “coisa” que quebrou o telhado, quando algo for dito sobre ela, ela será algo para nós. Se dissermos algo bom, será boa. Se dissermos algo ruim, ela será ruim.

 

Eu até poderia comentar as fake News. Elas falam, descrevem e dão falsos sentidos a acontecimentos transformando-os, deturpando-os. Mas, não vou fazê-lo nesse texto.

 

Aquelas pessoas que verbalizam mal o mundo (leem pouco, escrevem mal, falam qualquer coisa para qualquer um, expressam só palavrões e maledicências), não podem ter qualidade de vida! Afinal, o seu mundo é como o descrevem. A verbosfera para estes, é um lugar inóspito, vulgar, pouco inteligível e assustador.

 

Viver é dizer o mundo em que vivemos. Dizer/entender mal o mundo é viver mal. Entendamos que quando me refiro a dicção do mundo, indico a linguagem (lato sensu) e não apenas a vocalização.

 

Gente! Expressar é re/criar! É dar sentido! É, pela cultura, deixar aos descendentes um jeito de viver/entender/operar o mundo humano.

 

Para reorientar/melhorar a dicção/construção/fixação do mundo humano chamo não só os filósofos. Imagino um mutirão de professores de literatura, escritores, poetas, pintores e músicos (re)falando da vida; (re)dizendo as belezas que nos rodeiam. Modernos rapsodos (rhapsôidós) poetando valores, (re)vitalizando um espírito estético, um jeito belo de ver/viver/construir a realidade humana.

 

Que sejamos mais estetas e menos malfaladores/construtores do mundo.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Tudo é fala. Tudo é, por consequência, audição. Para (re)pensar o ser professor.

 




                                                                         

 

 

 

As pessoas no meu entorno são o espelho onde (re)vejo-me. Visão aclarada pelo diálogo, porque as pessoas nunca são um reflexo nítido: é preciso esforço para superar as imperfeições.

 

A nitidez plena do meu reflexo no outro é um projeto inviável.

 

As perguntas que os outros me fazem trazem à luz facetas do meu eu. As perguntas perguntam para mim sobre o que não consegui deixar claro ao entendimento alheio. Ao me fazer entender, eu sou mais eu para minha comunidade. Faço-me ver, venho à luz.

 

Caso eu nascesse em um lugar sem ninguém (sem perguntas sobre mim), eu seria ninguém (pura obscuridade). Nem eu teria plena consciência de mim.

 

No meu caso, a aprendizagem do que inúmeras palavras que eu ouvia queriam dizer, veio principalmente da minha mãe. A confirmação do sentido delas vinha da minha mãe (eu perguntava muito). Depois os outros colaboraram com minha iluminação na linguagem. A cada pergunta eu falava de mim, das minhas obscuridades. A cada resposta eu me iluminava um pouco. E quando as pessoas não sabiam responder às minhas questões, eram as obscuridades delas que vinham à luz.

 

 Cedo percebi que a graça da minha piada vinha do riso dos ouvintes. A graça não morava em mim. Era dependente dos outros. As pessoas é que diziam que eu era um (péssimo!) piadista.  Entendi logo que muito do que eu sou, só é por que outras pessoas confirmaram. Sou porque os outros são comigo. 

 

Para sabermos da nossa prática como professores, observar o aprendente é o melhor caminho, é a melhor informação.

 

A fórmula: eu sou professor e sei o que faço, é impossível quando explicita a ideia de que eu sei e sou sem meu aluno, sei e sou por mim mesmo. Seria algo como um piadista sem plateia que jura ser engraçado. Qual a prova de ser o que diz ser? Ele conta piadas para si mesmo e acha graça!

 

Por outro lado, o aluno só é aluno na tensão professor/aprendiz. Tensão insolúvel, paradoxal, dialógica. Tensão que sempre pede mais falas, entendimentos, iluminações (sempre há obscuridades). Portanto, quando eu me defino como professor, só o faço por que o aprendiz diz (ou diz contestando) coisas de mim. Quando ele pergunta algo para mim em sala de aula, diz do quanto e como eu ensino algo para ele. Do quanto e como sou professor. Quando o aprendente aprende, ou não aprende, provoca-me no meu ensinar.

 

Faço-me professor com ele e para ele.

 

Portanto, diplomas e certificados indicam apenas meu desejo de ser o que só o aluno poder fazer eu ser. O que estou dizendo serve para todas as profissões. Somos o que somos porque os outros são o que são na relação conosco.

 

Pelo exposto, posso dizer que não gosto das frases do senso comum que habitam as redes sociais, aquelas que dizem: seja você mesmo, não dependa de ninguém, faça por si mesmo, creia em si mesmo. Mesmo carregadas de boas intenções, são perigosas!

 

Não somos monológicos, somos dialógicos!

 

Somos diálogo. Não podemos existir em solilóquios. Seria nossa morte ou vida na insanidade. Só existo com o outro e vice-versa. A altivez e a arrogância de algumas pessoas significam que são ignorantes desta realidade.

 

Ouvir faz meu existir melhor. Ouvir faz saber mais de mim e do meu fazer docente. Por outro lado, o aluno precisa de mim para saber dele e do seu fazer discente.  Diálogo existencial.

 

Evidente que não podemos viver só para o que acontece fora de nós. Também não podemos viver só para dentro.

 

Portanto, para sermos professores melhores: falemos. Para sermos melhores ainda: ouçamos. Para entender o outro: deixemos que fale. Para entender melhor ainda: nos esforcemos em ouvi-lo.

 

Afinal, na vida humana, tudo é fala. Tudo é, por consequência, audição.