Para fazermos uma experiência mental sobre o que vou comentar, podemos imaginar duas situações.
Caro leitor, tenta se colocar nas situações abaixo.
Na primeira situação, pensemos em um cidadão dentro de sua casa. Então, à noite, vê uma pessoa empurrando sua moto novinha. Já está fora da garagem. Vai furtá-la. O cidadão pega sua arma e, sem sair da segurança da casa, atira contra o assaltante. Este morre. A moto é resgatada.
Na segunda situação imaginemos que a (mesma) moto está na garagem. A garagem pega fogo. O mecânico que fazia um pequeno conserto, fica preso lá dentro. O cidadão (o mesmo do primeiro caso), dono do veículo, sai da sua casa correndo, salva a pessoa e perde sua moto que tanto gosta.
É possível crer que se os jornais publicassem a primeira situação, parcelas significativas da sociedade apoiariam o atirador. De forma similar, caso publicassem a segunda situação, também provocaria o apoio da sociedade ao cidadão que quase se imolou para salvar outra pessoa. Mas, reflitamos, ambas merecem igual apoio? E por quê?
Analisemos.
Comecemos pela segunda situação. Percebemos que o cidadão, sendo proprietário (absoluto) do veículo, pode até decidir por deixá-lo ser destruído pelas chamas. Mesmo destruída a coisa, ela continua sendo dele. Na verdade, a decisão pela destruição apenas ratificou seu status de dono. Só o dono tem o supremo poder de destruir o objeto sob seu domínio legal e fático.
A propriedade permanece
intocada: eis a regra geral!
Agora,
tratemos da primeira situação. Neste caso, a propriedade teve maior
valor que a vida, pois uma pessoa foi morta para salvar a propriedade e
posse (material) da moto. Percebamos que a propriedade é um atributo
ideal, avaliado como superior a coisa material. Relacionando com o segundo
caso, a situação inverteu-se: a prioridade foi a vida salva e a moto se
perdeu.
Vamos esclarecer estas sutilezas: o valor da ideia de propriedade e o valor material envolvidos.
Em um dos casos, um meliante invadiu uma garagem. Tentou um furto (qualificado), uma ilegalidade. O proprietário, não aceitando a perda de algo de sua propriedade entendida por ele como absoluta, sentenciou rapidamente à morte o invasor. No segundo caso, a presença de um estranho (o mecânico) foi permitida. Por consequência imediata, não houve nenhuma violação da propriedade. Então, o proprietário se permitiu proteger a vida e deixar para trás o bem material. Salvou-se a vida, destruiu-se o veículo.
Nestes casos, o que há em comum e em que divergem?
Em comum: em ambos os casos o mesmo bem material está em risco; a moto.
Divergência: A diferença está na permissão ao acesso à propriedade.
Isso ajuda a entender o fenômeno? Sim. Ficou claro que é a questão da propriedade que define o final destas histórias inventadas (mas verossímeis). Em um dos momentos a propriedade privada é violada (alguém morre). Em outro, é permitido o acesso à propriedade (alguém é salvo).
Os dois eventos são regidos por uma norma informal e bruta, mas conhecida e aceita. Se a propriedade é violada, a pena é de morte. Neste caso, o invasor não é gente. É vagabundo. “Vagabundo” é aquele que não respeita o valor a priori da ideia de propriedade.
Ao contrário do parágrafo anterior, caso o acesso à propriedade seja permitido, então quem a acessa está na categoria de pessoa (não é um “vagabundo”). Só pessoas podem ser salvas por proprietários. Podendo até o salvador expor-se à morte para salvar alguém.
O critério de ser ou não pessoa é a permissão/negação ao acesso à propriedade.
Pensando no valor vida (no primeiro caso a vítima mata, no segundo caso salva) evidencia-se que há um valor superior a ela. É ele que vai decidir o desfecho. Este alto valor é inviolável.
Que valor é esse, superior a vida?
Não é algo material e mensurável. É a priori e superior tanto ao veículo específico, quanto às pessoas envolvidas. Portanto, podemos dizer que é um princípio valorativo, uma ideologia. O que se salienta nos dois casos imaginados é a ideia de propriedade.
Uso o termo
ideologia no sentido de um sistema orgânico de ideias que quer manter o status
quo das classes proprietárias. Esse termo é adequado porque também abrange os
que possuem poucas coisas, mas que agem de forma igual aos que têm inúmeras
coisas.
O princípio da propriedade, ele é o valor determinante, inviolável.
Nunca esteve realmente em jogo a moto nos exemplos, pois foi abandonada no caso do incêndio. O que foi posto à prova foi a crença geral que diz: a propriedade é inquestionável. Esta crença dá aos seus adoradores o poder de decidir sobre a vida humana.
Explico retomando os dois casos imaginários.
No primeiro caso (o furto) não houve permissão do proprietário. Logo, para tal infração de princípio é possível a pena de morte (e a honrosa manutenção da moto nas mãos do dono – apenas um troféu).
No segundo caso (o sinistro na garagem) a vida pôde ser avaliada por ela mesma (portanto, digna de ser salva), mesmo havendo riscos ao salvador! Isso só foi possível porque não havia “vagabundos” na jogada, só cidadãos de bem. Salientamos: o princípio mítico da propriedade não foi abalado. Ocorreram decisões livres de um proprietário. Não houve abalo por que havia duas permissões: a permissão para a entrada do mecânico na garagem, e a decisão do dono de deixar o fogo consumir o veículo.
Só proprietários tem tal poder.
Percebamos que nas situações imaginadas nos primeiros parágrafos, o bem material é sempre o mesmo, o veículo. Portanto, vê-se, não é ele que está em jogo, pois ora se matou por ele, ora foi ignorado para salvar alguém.
Relembremos: o que está em jogo é o princípio da propriedade! É por ele que se mata e se morre.
O proprietário é tão dono da coisa possuída que pode decidir por destruí-la, mas está ideologicamente impedido de deixar que a roubem. O roubo ofende não a mera coisa material: ofende o mito, o princípio imperioso da propriedade.
Com o endeusamento da ideia de ter, é permitido matar assaltantes ao fugirem, mesmo que por tiros pelas costas. Ainda que desarmados ou impossibilitados de reagir (só preocupados com a fuga). Percebe-se uma espécie de desejo de vingança.
Se tentas pegar o que é protegido pela propriedade, pagarás com a vida tal é a ofensa moral. – É o decreto sempre implícito nas relações sociais capitalistas.
Quando não conhecemos ninguém que tenha terras, nem que delas precise, entretanto, ficamos incomodados com o Movimento dos Sem Terra (MST), fica evidente que o nosso desconforto vem de algo imaterial, nunca do fato de termos ou não terras. Por quê? Por que este movimento critica/ofende o princípio vital que engaja a sociedade que sempre se imagina dona de algo: a ideologia da propriedade privada.
Os movimentos dos sem alguma coisa sempre mexem espiritualmente conosco.
As classes mais humildes correm o risco de também defenderem a morte de alguém que fere os princípios da propriedade. Aprenderam isso.
A crença no princípio da propriedade é basicamente a mesma entre os possuidores e os despossuídos, mesmo não tendo fundamento na realidade.
É uma questão de fé, não de realidade.
Como fazer entender que a vida do assaltante é superior a posse da minha moto? Que perder algo que possuo é menos agressivo à humanidade que matar uma pessoa?
Aos fiéis crentes no mito da propriedade, é quase impossível!
É preciso sempre lembrar que as sanções já estão em muito descritas no Código Penal e no Código Civil. Mais ainda, os processos que levam aos julgamentos já estão descritos nos Códigos Processuais. É preciso lembrar que não há pena de morte e que, ao contrário, há os Direitos da pessoa humana. Pessoa! Não importa quem seja nem o que faz.
Eu gostaria de estar numa sociedade que fosse capaz de defender prioritariamente a vida e não a propriedade. Afinal, coisas eu posso ter e perder. Posso nunca as ter e nem sonhar em tê-las. Mas, obviamente, a vida só se tem uma. E quem não a tem, não pode sequer sonhar, muito menos em tê-la novamente: é chance única. Irreparável, irrepetível. De valor absoluto.
Coisas são coisas. Pessoas são pessoas. Vida em primeiro lugar. E vida com qualidade.
Simples assim.
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