quinta-feira, 24 de maio de 2018

A impossibilidade da vingança estatal.




Vingança é uma ação consciente que tem o objetivo específico de causar dano, dor moral ou física a outra pessoa. Resumindo: a vingança quer causar prejuízo. O que a motiva não é a racionalidade, mas o sentimento de retribuição imediata. Ela é uma catarse, uma explosão. A vingança é uma espécie de insanidade momentânea, aplacável com a aplicação da violência ao agressor.



Se fosse possível uma vingança justa, ela se basearia na reciprocidade. Se o sujeito A decepou o braço do sujeito B com três machadadas, o agressor teria também seu braço decepado por exatas três machadadas. Acontece que os parentes do sujeito A poderiam não concordar. Então, vendo seu parente com o braço decepado “injustamente”, também acreditariam ter o direito de se vingarem dos vingadores... e por aí vai.



Até aproximadamente o século XVIII, a vingança foi aceita por inúmeras sociedades. Foi possível entregar por algum tempo ao Estado a função vingadora. Então, o sujeito B deixava ao Estado a função de cortar o braço do seu agressor. Caso hoje isso fosse possível, posso imaginar duas profissões interessantes.  A primeira seria a do médico medidor. Este profissional público devidamente concursado, deveria cientificamente “medir” a dor da vítima. Só assim poderia indicar a exata medida da dor que seria infligida “justamente” ao agressor. A outra profissão já bem antiga seria a de algoz. Hodiernamente o algoz seria também um funcionário público efetivo. Este, após a liberação pelo Estado, cumpriria a vingança na exata medida da dor receitada pelo médico medidor.



O sujeito A (que decepou o braço de B com três machadadas), se fosse condenado, a sentença seria mais ou menos assim: “O Estado sentencia o sujeito A a ter seu braço direito amputado da seguinte forma: será o membro superior do sujeito A atingido exatamente por três golpes de machado, culminando, absolutamente no terceiro golpe, com corte total do referido membro”.  Caso o algoz atingisse o objetivo da vingança com duas machadadas, seria um abrandamento ilícito da pena. Caso o objetivo fosse atingido com quatro machadadas, seria um agravamento ilegal da pena. Afinal, hoje, a vingança seria coisa séria.



O que quero evidenciar com os parágrafos anteriores, é o absurdo do fundamento da vingança: que é a dor, o prejuízo, o dano, a morte por órgãos estatais. Poderíamos imaginar o Estado ou qualquer segmento dele ser especializado na dor e no dano? Não! Qual a vantagem de aplicar chibatadas, mutilações ou dor em quem cometeu crimes? Nenhuma! Ora, acredito que todos querem evitar o crime. Mas, agredir o agressor, torturar o torturador é cometer estes mesmos crimes ampliando-os! Assassinar o assassino é dois assassinatos! Mesmo que seja pela mão estatal.



E a pena atual?



A pena imposta hoje pelo Estado de direito também quer a retribuição (ao ofensor) pelo ato delitivo. Mas, não, nunca, a retribuição da dor ou do dano. Nunca quererá cometer um crime para vingar outro, ou na esperança de impedir outro crime futuro. Inclusive o Estado aposta na ressocialização do condenado. Todo o condenado um dia voltará ao convívio social, depois de cumprida a pena ou por benefícios que antecipem a sua liberdade.  Na vingança, o violentador violentado pelo Estado, será um elemento perigosíssimo para os demais. Impossibilitando sua liberdade. Já na pena, em tese, a sanção-prisão daria tempo para a reflexão do infrator amparado pelo Estado, deixaria o criminoso em condições de retornar ao convívio social.  A vingança, contrário sensu, é um caminho só de ida para a violência.



E os que querem a violência carcerária como uma espécie de vingança estatal?



Mais pernicioso ainda para a sociedade é a atual hipocrisia.  Refiro-me àqueles que desejam a vingança de modo torpe, insidioso.  Refiro-me aos que desejam celas minúsculas lotadas.  Àqueles que vibram com a violência e as mortes nos motins. Refiro-me aos que querem prisões torturantes, macabras, sem luz, sujas, fétidas e com gente semimorta lá dentro. Afinal, se “bandido bom é bandido morto”, melhor ainda é bandido sofrendo muito e por muito tempo.



Nossa sociedade produz mais delinquentes do que pode suportar. Produz em progressão geométrica.  Então a sociedade, vitima de si mesma, quer vingar-se dos desviantes. Ressocializar é caro e dá trabalho. Também ninguém quer um presídio por perto.  Talvez a sociedade não queira ver o que ela mesma faz com seu povo, consigo mesma. Encarcerar para fazer sofrer não é solução.



As penas devem ser cumpridas em celas confortáveis e modestas. O preso deverá ter contato com familiares e com a comunidade através de trabalho. O encarcerado terá cursos de capacitação para o mercado. Terá acesso a médico e a advogado. Será tratado com urbanidade e dignidade.



O sistema carcerário é tão caro e contraditório que melhor é prevenir o surgimento de novos  criminosos, sempre.



O Estado não se vinga. O Estado não pode permitir a dor dos seus cidadãos. Não é possível ao judiciário pretender o dano e a destruição de alguma pessoa.  Será destruir a própria justiça desejar que ela trabalhe para o dano e, pior, para a morte lenta pela dor. Simples assim.




sexta-feira, 18 de maio de 2018

A violência na política e a cura pela fala.






Imaginemos uma criança pequena, aquela que ainda fala com dificuldade. Como ela não desenvolveu a habilidade de se comunicar facilmente, é perfeitamente aceitável e previsível explosões de raiva de curta duração. Isso em função das emoções tumultuadas e a dificuldade em expressá-las.



Com o adulto que não se expressa facilmente, não é muito diferente.



Falar de maneira organizada favorece enormemente o escoamento das emoções. A linguagem tem o poder de expressar/escoar necessidades internas, permitindo a fluidez emocional e o consequente esvaziamento das tensões. Por outro lado, a dificuldade de se expressar faz com que as emoções não escoem para fora facilmente. Há, como consequência, o perigo de uma explosão irracional e violenta.



Freud foi notável ao criar a cura pela fala (talking cure). Falar, expressar, coloca as emoções em ordem. Não é possível querer expressar sem antes querer organizar as emoções. Ao comunicar, as energias mentais se põem disponíveis para serem inteligíveis (para o emissor mesmo e para o receptor). Quanta dor, raiva e frustração represam aqueles que não podem (ou não querem) se comunicar. Com frequência a energia acumulada se transforma em movimento físico: um soco, um tapa, um chute. Ou ainda, pode se transformar em palavras caóticas e agressivas. Com essa energia toda, cada palavra é uma pedra arremessada, uma flecha envenenada.  O sofrimento interno explode machucando os que estão em volta. Se a pessoa pudesse expressar o que sente com calma, aos poucos, seria possível diminuir a energia armazenada. A pessoa ao organizar a fala, iria compreender a si mesma e, através do diálogo fraterno, curaria suas dores internas. Ouviria a si mesma e seria ouvida pelos outros.



A possibilidade de se expressar de forma inteligível é um bálsamo para as almas. E quando a expressão se torna impossível? Com certeza a violência poderá acontecer. Pessoas se machucarão. A agressão é a expressão (incompreensível) dos que não sabem, ou não podem se comunicar de forma sadia (fluente).



Na politica essa lógica não é diferente. As ideologias que não podem ser explicadas por seus seguidores, as intenções que não podem ser ditas, mas apenas sentidas e desejadas, tendem à violência. Quem não pode falar e explicar, guarda tensões em si mesmo. Acumula incompreensão e ... explode. Mas por que não fala, não se expõe? Inúmeras vezes a ideologia é revoltante, é excludente e é contra a sociedade fraterna e democrática. Então não pode ser dita, pois é execrável. Quem professa esse tipo de ideologia, tem que guarda-la para si. Tem que defendê-la sem poder explica-la ou justifica-la. Esses ideólogos da exclusão social, do racismo e da meritocracia, não podem se expressar claramente e de maneira sã. É preciso esconder os fundamentos mais profundos das suas crenças políticas. Então, sem falar, assim como as crianças em tenra idade, explodem facilmente em raivas. Mas são adultos. A raiva que é momentânea nos infantes, torna-se uma maneira de viver nos adultos.



Essas pessoas não falam mais. Elas agridem por que não podem comunicar claramente/profundamente o que pensam.  O que pensam é ruim para a sociedade. Então calam e acabam transbordando em raiva e, com a constância dela, em ódio.



A única saída para os ideólogos da exclusão é a cura pela fala verdadeira. Aproximadamente na linha do que Freud propunha. Mas, como se expressariam se o que creem faz mal à sociedade, se é socialmente inexplicável? Falar sobre aquilo que devem esconder é muito doloroso. Sentem como impossível deixar claro para si e para todos, que o que querem é um mundo para as elites. Caso falem, se curariam da violência, mas correriam o risco de mudar suas convicções ideológicas quando postas à luz da razão.



Talvez até não mudassem de ideia. Mas, assumir seus posicionamentos elitistas e excludentes, faria com que aceitassem melhor (internamente) seus papéis deletérios na história do que acontece em nosso país. Quando curadas, ficaria para essas pessoas o dilema: se falarem claramente, quem os seguiriam? Ninguém. Simples assim.




sábado, 5 de maio de 2018

O discurso de ódio não é um discurso.








Vou focar no termo já popularizado: discurso de ódio. Para tanto, vamos precisar de algumas reflexões antes.



O discurso é uma sequência de ideias, uma ordem (quando falado ou escrito) que segue normas gramaticais e (segue sempre em qualquer forma de discurso) a um encadeamento lógico. Assim é por que ele tem a intenção de comunicar, ou seja, de ser entendido pelo outro.  Vamos excluir do contexto deste artigo os loucos que falem sem nexo ou falam para ninguém.



Podemos imaginar que mentes sadias se auto-organizam para poderem discursar de maneira que as pessoas as entendam. Uma mínima (pré) organização mental é a condição de inteligibilidade dos discursos.



O ódio é uma vontade de morte. Pode ser uma morte simbólica ou de fato. Odiar é querer eliminar, é desejar que o objeto do ódio desapareça. Esse sentimento dói em quem o sente, e para afastar-se da dor, precisa aniquilar quem odeia. O sujeito odiento tem a mente desorganizada por que foca na destruição, no aniquilamento. É um desejo duradouro. O ódio é uma resposta irracional à percepção (geralmente imaginária) de uma amaça ao ego. Ou seja, o sujeito se sente ameaçado enquanto existir o que odeia.



Da onde vem o discurso? Da mente. Não é a boca que fala, nem é a mão que escreve. Estes são apenas instrumentos. Nossos sentimentos, nossa alma, nossa psique escrevem, agem, falam. Quem odeia, como afirmei antes, tem a mente revolta. É como um mar tempestuoso. Há uma desorganização dolorosa. O odiento sofre internamente com a existência do que odeia. Então, agride com palavras, gestos, enfim, de todas as formas que puder. Sabemos o que o odiento quer: a aniquilação. Mas não sabemos como o fará, pois a mente está desalinhada, está tempestuosa: é imprevisível.



Por isso o discurso de ódio é um caos. É contraditório e não linear. Cheio de raiva e vazio de conteúdo. Perguntar ao odiento por que ele odeia é uma temeridade. Quem pergunta poderá ser agredido. Isso por que o agressor sofre e está com a mente desordenada. Então, como responderá de forma organizada? Como o seu discurso será linear e compreensível? Quem odeia não pode explicar o ódio que sente, pois o ódio é caos mental. Por consequência, ele só pode aplicar o ódio agredindo. Não há como explicar com coerência (inteligibilidade) por que sente esse sentimento. O discurso de ódio é uma impossibilidade. Eu chamaria de atos (um ativismo) de ódio, nunca o classificaria como um discurso.



As mentes mais tranquilas podem discursar. Espíritos acostumados à disciplina da leitura e ao diálogo, discursam. Sujeitos habituados a dar tempo à audição e à compreensão, podem construir discursos. Fazer-se entender e entender os outros leva tempo. É algo que se aprende pela disciplina espiritual. Toda a empatia é democrática, é participativa e comunitária.



Os odientos convivem bem com outros odientos. Mas convivem melhor ainda com odientos com ódio pelas mesmas coisas. Caso odeiem coisas diferentes, podem acabar odiando uns aos outros.  



Quem odeia tem fé que possui a verdade. Os odientos tem certeza absoluta. Não duvidam nem questionam a si mesmos. A fé na verdade do seu sentimento negativo, não pode ser questionada. Afinal, o odiento não pode raciocinar sobre esse sentimento. Justamente: a sustentação do ódio está na desorganização, está no caos da mente. Justificar de maneira organizada e inteligível é esforço demasiado (mataria o ódio). Sozinhos, os odientos não conseguem superar a sua dor. Só na terapia. Só com muito cuidado e carinho, aos poucos, vão se desabituar do caos mental. Assim vão poder abandonar esse sentimento negativo de aniquilação.



Concluo pensando que o discurso do ódio não é um discurso. O ódio é um ativismo que não pode refletir sobre si mesmo. Acredito que discutir com estes sujeitos, sem a técnica das psicologias, é inútil. Eles não nos podem compreender. Estão em desordem mental, desabilitados à compreensão e aos argumentos. São contraditórios, incoerentes e raivosos. Isso por que já não podem mais ser diferentes disso. Tratar com eles não nos cabe. É serviço duro para os terapeutas mais experientes. Convém tratá-los com a dignidade que todo o ser humano merece, e com a distância necessária para não nos machucarmos.

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?