sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A fome é culpa do esfomeado. 1 + (-1) ≠ zero?

 

Baseado em fatos reais

 

Ouvi o seguinte diálogo.

 

Sujeito A: Quanto mi mi mi! A filha da faxineira disse estar passando fome. Ora, quanta gente catando latinhas na rua para sobreviver! E aqueles que limpam quintais e ganham comida por isso? Só passa fome quem rejeita os trabalhos mais humildes!

 

Sujeito B: E se tu falas isso para eles, as pessoas ainda se ofendem! Falar de trabalho agora ofende! (com cara de nojo)

 

Sujeito A: É verdade. Por que se ofendem? Porque eu falo a verdade. (cara de quem sabe o que fala)

 

Sujeito B: A gente nem pode mais falar o que pensamos. Tudo ofende!

 

Sujeito A: Se não querem trabalhar nem para comer? Fazer o quê? (cara de enfado)

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Observei quatro (pseudo)certezas implícitas neste diálogo insólito, não empático e inumano.

 

Primeira certeza dos que dialogavam: Creem que quem passa por muitas dificuldades deve muito mais trabalhar. Se não tem trabalho formal, que trabalhe de forma braçal por quantas horas for necessário. Alugar corpos sempre rende alguma coisa. Todos devem se alimentar por seus próprios meios.

 

Esta certeza iguala pessoas e animais de tração. São iguais, eles acreditam, quanto a procura pela própria alimentação. A alimária doméstica trabalha por seu sustento. Puxa a carroça para obter seu alimento. A função da alimária é continuar sendo o que é pelo tempo em que for útil. Raríssimas pessoas querem o crescimento da qualidade de vida do bicho. Usa-o e pronto. Inclusive, ironicamente, até os animais tem direitos a bons tratos, cuidados e alimentação mínimos. Já a alimária humana não. Que cuide a si mesma! E se não cuidar de si mesma, é culpada do seu próprio sofrimento.

 

Um cão solitário e faminto é um bichinho abandonado. Uma pessoa na rua esmolando é bandido, drogado, desocupado.

 

Há sim atividades impróprias às pessoas. Impróprias por que ferem os princípios da dignidade humana. Não vou nomeá-las por respeito a quem as exerça. Entretanto, posso afirmar que toda a atividade que humilhe, que adoeça, cause dor e a morte não são aceitas por qualquer Estado civilizado.

 

Não é possível inclusive confundir o conceito de trabalho com a atividade de catar sobras, viver de esmolas, capinar por comida ou realizar tarefas em condições sub-humanas.

 

Só podemos chamar de trabalho quando há uma relação personalíssima de direitos e deveres, entre o empregado e o empregador. Percebam o porquê de não ser possível chamar de trabalho o que vemos por aí.

 

O que vemos são pessoas que se relacionam com as demais sem contraprestação de direitos. De um lado temos alguém despersonalizado, quase invisível, oferecendo algo por qualquer preço para outras pessoas indiferentes. Do outro lado, insisto, há apenas pessoas indiferentes.

 

Portanto, esta primeira certeza não pertence a uma sociedade que se diz civilizada.

 

Segunda certeza dos que dialogavam: Eles acreditam que exercer atividades degradantes, ou sofridas em demasia em troca de alimentação, é algo aceitável. Para se manter vivo, dizem, tudo é válido. Até mesmo o inferno em vida.

 

Esta certeza encobre uma contradição insolúvel, que destrói a si mesma. É possível descrever esta contradição insolúvel da seguinte forma: 1 + (-1) ≠ 0       Silogismo impossível: 💢 O (Argumento 1) + (argumento menos 1) terá necessariamente como resultado algo igual a zero.  Impossível esperar algo diferente deste resultado.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

Explico.

 

Que contradição é essa? Para se manter vivo (argumento 1, a vida) a pessoa vai morrendo aos poucos numa atividade inumana (argumento - 1, a  morte). O argumento 1 somado ao argumento -1 não pode resultar a vida. No máximo uma subvida. Morrer diariamente para viver no dia seguinte são premissas que se excluem (morrer para viver!). Não é possível concluir nada delas.

 

Portanto são falácias.

 

Terceira certeza dos que dialogavam: Eles pensam que não é permitido ao miserável se sentir ofendido. Afinal, os dialogantes falavam apenas verdades. Eles  tinham certeza que não é aceitável que os sub-humanos arroguem para si a capacidade humana de se ofender. Aos pobres bichos humanos, cabe apenas lutar para se manterem vivos. Caso não lutem, morrerão por dolo autoinfligido.  Afinal, segundo os debatedores, o sistema que gera fabrilmente miseráveis é natural, normal. Ofender-se ou revoltar-se é escandaloso!

 

Se o sub-humano reagir é criminoso. Se desistir, é covarde. Em qualquer hipótese a culpa criminosa é dele. A culpa sempre é do outro.

 

Quarta certeza dos que dialogavam: Eles confiam que a fome é culpa do esfomeado. A o pobreza é culpa do pobre. Na mesma medida, a riqueza é para os dignos dela. A abundância é para aqueles que já têm tudo que precisam. Aparece aqui a ideologia da meritocracia subvertendo a realidade. Não querem se conscientizar que a realidade sabe que o pobre assim é não por opção. E se não há opção, não há escolha. Como alguém que é oprimido pode ter culpa da sua opressão? Não há escolha!

 


Portanto, os quatro argumentos implícitos são detestáveis.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os dialogantes aqui retratados são cidadãos ordeiros, cristãos e do bem. Acreditavam, do alto das suas sabedorias, poder julgar a filha da empregada.

 

Corei de vergonha por fazer parte de uma sociedade que julga os oprimidos. Julga e os condena para poder manter o sistema opressor. Vergonha por não ouvir dos debatedores em questão nenhuma referência ao horror que é viver numa sociedade que produz pobres e miséria em profusão, mas que economiza na distribuição da qualidade de vida!

 

A questão, portanto, refere-se a ideologias, a ideias que justificam a priori o sistema dizimador de vidas. E já que falamos em ideias e ideologias, lembrei-me do meu amigo Platão.

 

No mundo das ideias de Platão está a verdade. Ela ilumina como o esplendor do sol. Segundo o filósofo, a nossa realidade terrena é apenas uma cópia mal feita deste mundo ideal e perfeito.

 

No mundo das minhas ideias eu odeio.

 

Meu ódio às ideologias inumanas é colossal e genuíno. É um ódio ideal às ideias que aceitam a miséria humana artificialmente criada! Meu ódio é um ódio perfeito e luminar (perfeição ao estilo de Platão). Um ódio iluminado pelo sol da virtude.

 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A teoria da relatividade, o relativismo e os extremistas referenciais.

 


 

O que é mesmo a relatividade no sentido da física de Einstein? Relembrando minhas aulas de Física no Ensino Médio, vou arriscar comentar utilizando o viés da Cinemática.

 

Para eu medir a quantidade de movimento de um móvel, preciso estabelecer um referencial. Lembro-me do meu livro de Física na escola Estadual de Ensino Médio Professora Maria Rocha. Ele utilizava a figura de um ônibus, onde uma pessoa de dentro do veículo observava o ambiente externo. A figura nos fazia perceber que quem estava dentro do transporte público, em relação ao assoalho do veículo, não estava em movimento. Entretanto, em relação a pessoa que aguardava no ponto de ônibus, o passageiro embarcado estava sim em movimento.  Percebam que para saber se as pessoas envolvidas estão ou não em movimento, é preciso estabelecer o referencial. No caso da figura, os referenciais são o assoalho do veículo e a pessoa no ponto de ônibus.

 

Espero ter conseguido relembrar o conceito de relatividade.

 

O senso comum costuma dizer que tudo é relativo, mas em outro sentido. Este conceito do dia a dia, com certeza não se encaixa no que foi dito no primeiro parágrafo.  Vejamos que, para que tudo fosse relativo (sem pontos fixos, como quer o senso comum), também os referenciais variariam durante a medição. Imaginem o caos: o ponto de ônibus se movendo e parando aleatoriamente enquanto a pessoa viaja no coletivo.

 

Podemos imaginar que a expressão popular tudo é relativo não faz sentido para a cinemática. Algo tem que ficar fixo para que possamos avaliar a quantidade e qualidade do movimento de uma outra coisa.  Caso nada fique onde está, não há como avaliar estes movimentos.

 

Para as Ciências Humanas não é muito diferente. Quando o Filósofo, o Sociólogo ou o Historiador afirmam algo, tem seus referenciais. Pode ser a literatura já consolidada na área ou fatos (documentos, relatos de testemunhas ou vestígios como no caso da arte rupestre). Vê-se que dizer que tudo é relativo nestas áreas do conhecimento também não é aceitável.

 

E quanto a mera opinião? Quando afirmo que vou opinar, estou arrogando para mim plena liberdade nos meus referenciais. Sou livre para escolher qualquer referencial e muda-lo quando quiser, por tanto o referencial é sempre eu mesmo. Mesmo neste caso a expressão tudo é relativo não vale. Por que? Ora, o referencial da minha opinião existe: sou eu mesmo! Eu sou o ponto fixo por onde meço o mundo. Quanta arrogância, não? Pois, é.

 

Vamos imaginar o seguinte. Alguém quer medir a velocidade de um veículo. Os engenheiros colocam sensores nele e um sensor fixo fora dele. Caberá ao sensor fixo avaliar a velocidade do móvel. Entretanto, sem que ninguém visse, o piloto fazendo graça coloca no bolso o sensor fixo. O resultado seria um desastre! Todos veriam o bólido na pista voando a 300km/h. Entretanto, os sensores marcariam que o veículo está parado. Por que parado? Ora, o referencial está junto ao veículo. Então, em relação ao referencial, o carro está parado! Após desfeito o paradoxo tudo voltaria ao normal.

 

Para que as conclusões de uma avaliação possam ser sérias, podemos concluir que é fundamental o(s) parâmetro(s) fixo(s), o referencial.

 

O que faz a extrema direita ao explicar a si mesma? Coloca nos bolsos o referencial tentando imobilizar tudo. E quando tudo se imobiliza, o senso comum começa a opinar sobre o que é dito pelos extremistas como se verdade fosse. Uma espécie de ilusão de ótica.

 

Todo o extremista quer ser referencial para todas as avaliações possíveis. As coisas em relação a ele, não se movem. Pois ele traz em seu bolso o sentido de tudo, todos os referenciais.

 

Quer testar este fenômeno? Tenta discutir algo com um extremista. Ele não muda e agride. Quem questiona deve se juntar ao referencial (no bolso do extremista) para que nada se mova.

 

A ilusão é bem forte. Para quem se alia ao extremista, e ele carrega a verdade, nada se move. Mesmo que o aliado intua o movimento, não crê, pois o aliado está junto ao referencial. É como se ambos estivessem num ônibus em movimento, com as janelas fechadas. Então, mesmo ouvindo o barulho do motor e as sensações do movimento, teria fé que está parado. Afinal, seu referencial está imóvel a seu lado.

 

Tem ideologias que são ônibus com janelas cobertas.

 

Escrevi até aqui para dizer que as coisas não são todas sem fundamento, confusas, mutáveis, no sentido que dá o senso comum quando diz: tudo é relativo!

 

Para uma reflexão ser séria, é preciso referenciais.

 

É preciso questionar àqueles que falam suas verdades: quais teus referenciais? Qual leitura? Quais fatos? Quais autoridades? Qual momento histórico te referes?  Em que contexto? Além de ti e dos teus, quem mais afirma isto? Quais os dados técnicos que te levam a afirmar isto? Qual pesquisa?

 

Só podemos ser um pouco benevolentes com aqueles que tem consciência que expressam apenas opiniões, avocando para si o direito de poder opinar. Opinar pode. Mentir ou desvirtuar, não.

 

Como sei que quem fala pode estar mentindo ou desvirtuando? Quando afirma que diz verdades e verdades sem referenciais confiáveis.

 

A regra de ouro: Quando alguém afirma que sabe algo, exija os referenciais deste saber. Os extremistas piram!

 

 

 

 

 

 

 

 



domingo, 4 de outubro de 2020

A expressão “Pobre de direita” e a dica que deixo.

 


 

Dias atrás eu discutia acaloradamente questões políticas atuais com uma pessoa amiga. Sob o ponto de vista socioeconômico, nenhuma diferença entre nós. As diferenças eram ideológicas, e mesmo estas, não eram de grande monta.

 

Em dado momento eu usei o termo super ideológico “Pobre de direita”. Por ser um termo bem demarcado, e mais demarcado ainda no contexto da conversa, acreditei ser o sentido dele de fácil entendimento. Qual sentido quis dar? O termo faz alusão às pessoas das camadas mais humildes que defendem os interesses dos mais favorecidos. Algumas pessoas agem assim por desconhecimento político do seu lugar social (imposto por quem tem poder para tal imposição). Já outras por má-fé (por invejarem os extratos superiores que impõe aos mais humildes seu lugar no mundo).

 

Escolhi a expressão “Pobre de direita” (pobreza + defesa da ideologia da direita) para enfatizar o flagrante antagonismo ideológico.  Não me ocorreu que a palavra “pobre” poderia ser entendida como algo pejorativo, como algo que desdoura a reputação ou que aponte para falhas de personalidade.

 

Ser pobre é uma imposição, não uma escolha. Portanto, só é vergonhosa a pobreza para quem a impõe. Ser pobre deveria ser um insulto aos governos que permitem a pobreza! Na mesma medida em que quem faz outra pessoa sofrer é responsável pela dor que esta sente.

 

Seria algo impensável imputar ao sofredor alguma culpa pelo sofrimento imposto.

 

 

           O que esta aproximação entre expressões antagônicas quer apontar é a situação estranhável! O forte é a denúncia da incompatibilidade da situação real do oprimido e da sua defesa esquizofrênica do opressor.

 

Uma terceira pessoa ouvia nosso diálogo. Assim que pode me alertou para o fato de que eu havia sido ofensivo ao utilizar a expressão descrita acima. Afinal, segundo a observadora, eu havia salientado a posição de pobre de quem dialogava comigo.

 

Confesso que a “puxada de orelhas” fez com que eu parasse para refletir. Eu havia mesmo alcunhado de pobre minha interlocutora? E se assim fosse, teria a ofendido?

 

Primeiro pensei nas minhas intenções. Tenho claro que desejei salientar a contradição entre a situação socioeconômica humilde da pessoa com quem eu falava e seu próprio discurso (compatível e favorável com os ideais burgueses). Por outro lado, estando eu na mesma situação socioeconômica dela, não poderia estar apontando para o ser menos daquela pessoa (Ser menos no sentido dado pelo Prof. Paulo Freire). E, por último, ser pobre não é um demérito. É uma violência que aponta para a vilania de quem impõe a pobreza.

 

Pensei também no que sentiu a pessoa que discutia comigo. Havia se ofendido? Só posso julgar pela fala e pela expressão corporal dela. Confesso que, até onde minha sensibilidade simiesca percebeu, não houve nenhuma ofensa ou desagrado pelo uso do termo “Pobre de direita”.

 

Pretendo ainda perguntar à pessoa se ela se ofendeu. Entretanto, para este texto, vou confiar na minha sensibilidade. Também vou dar a mim mesmo a chance de estar imbuído das mais puras intenções naquele debate.

 

Quanto a terceira pessoa que tudo viu? Por que ela se fixou na palavra pobre? Por que para ela este foi o ponto forte do diálogo? A parte “de direita” não causou espanto ou preocupação. Era como se ser de direita fosse o esperado, mas ser pobre algo ofensivo. Mas, ofensivo para quem? Para quem de fora assiste o diálogo, como uma pessoa “não pobre”!

 

Acredito que a pessoa de fora do diálogo se sentiria ofendida com tal adjetivo (pobre). Então projetou este seu sentimento negativo na suposta vítima da ofensa. Creio que a ofensa está mais no sentimento e valores do terceiro fora do diálogo, do que nas pessoas que dialogavam dentro de um contexto específico. A intervenção desta terceira pessoa ao me criticar, é a imposição inconsciente de seus valores (de quem não se sente pobre e se sentiria ofendida se qualificada  com este adjetivo).

 

Mesmo sendo a pobreza um conceito complexo, podemos tentar defini-la de uma maneira modesta, mas que sirva ao intento deste texto.

 

A pobreza aponta para a falta. Falta de recursos e falta das condições de manter uma vida digna. Por isso a fome, a miséria, a má formação escolar e a exposição às doenças. Como consequência, a exposição da pessoa pobre à discriminação e à exclusão social.  Inúmeras vezes esta ausência de recursos leva a não participação na política e, por consequência, a não participação na tomada de decisões na esfera pública. Vê-se que não é uma falta natural, mas imposta.

 

Vou insistir. Não é possível se sentir ofendido se esta falta, que nos faz pobres, não está ligada ao caráter e muito menos à liberdade de escolha. Esta falta diz mais respeito a quem me impõe do que a mim mesmo. De forma bastante similar, o puxão de orelhas que levei tem mais a ver com a visão de mundo de quem me criticou do que com as minhas visões de mundo.

 

A crítica veio de um lugar de fala estranho aos falantes que dialogavam. Crítica alienígena.

 

Quero concluir dizendo que se alguém tem muito, muito menos que o outro, a vergonha está em quem tem o excesso e pela manutenção dele luta. Nunca estará em quem sofre a falta e luta também. Luta pela própria sobrevivência.

 

Fica a dica.

Quêm lê muito não faz nada. Verdade?