quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Platão e o rei coprofílico.



Para se chegar a rei-filósofo o indivíduo precisa de paidéia (educação), pois possuirá a episteme (ciência). Ele chegará à ideia de Bem e aplicará na polis seu conhecimento para garantir uma polis bem conduzida. Este é o homem virtuoso por excelência.

Platão valorizou e desenvolveu a crença de que o homem é dividido em corpo e alma.  Numa analogia contemporânea, é como se nosso corpo fosse um escafandro que transita pelo mundo terreno tendo dentro de si nossa alma. Percebamos as dificuldades que a alma enfrenta, sob o ponto de vista platônico. O invólucro é pesado e incômodo. Vemos as coisas e as pessoas de dentro dele. Não é possível acessarmos outras almas diretamente, mas apenas percebemos outros escafandros encarcerando outras almas. Se o mundo físico fosse o oceano, nossas almas seriam oriundas do céu acima dele. Nossas almas estariam afundadas nas águas à espera de ascender logo para acima delas. Platão diria que as pessoas comuns discutem as águas e os escafandros, sem entender que o papo verdadeiro é o que se refere ao céu acima das águas. O homem comum não sabe que ele não é o oceano nem é seu escafandro, e que a estes não pertence. Sua alma é celestial.
O sábio sabe que um dia o escafandro vai pifar e ficará no fundo do oceano e alma voltará para seu mundo acima dele. É dever do sujeito sábio discutir a alma e os ares acima do mar. É burrice discutir o corpo e suas impressões falíveis. É tolice falar do peso da água e das impressões corporais. Platão nos lembra que a alma está de passagem e logo voltará ao seu mundo verdadeiro. Os prazeres do corpo e suas vicissitudes são efêmeros e devem ser ignorados. O olhar deve se voltar para dentro, para a alma. A verdade está nela. O corpo induz ao erro. Falar do escafandro é esquecer que somos a alma que nele está.

Podemos imaginar o espanto do meu amigo Platão ao ser apresentado para alguém que acredita ser apenas corpo e seus dejetos. E mais, que só pensa nele. Que mede o mundo e as coisas através do corpo.  O filósofo ficaria estupefato ao encontrar alguém que dissesse que o amor é sexo (relação entre corpos apenas). Que a beleza se resume a um corpo desejável para transar. Platão teria um infarto filosófico se um rei dissesse que o conhecimento faz mal ao intelecto. Com certeza cometeria suicídio se este rei falasse de cocô, relações sexuais anais e tamanho de pênis.
Platão acreditava que o governo compete ao sábio, ao rei filósofo. Só este sabe onde está a verdade. Ou melhor, sabe onde não está a verdade: nas coisas corporais. Um reinado sem abstrações ou reflexões seria impensável, abominável demais! Imaginem o AVC que teria Platão ao saber da existência de um rei coprofílico.

Ao avesso da filosofia platônica podemos imaginar o que segue.

Imaginemos uma pessoa que não pense além dos prazeres corporais. Vive para o sexo, para comer e para exercer o poder físico sobre as demais pessoas. Imaginemos um sujeito apaixonado pela pelas aparências.  Não só pela própria aparência, mas uma paixão pela mentira que tem aparência de verdade. Vaidoso e mentiroso. Uma pessoa que pensa só no hoje, eternamente presa no seu dia-a-dia. O passado já esqueceu. O futuro não pode imagina-lo, pois não tem criatividade para isso. Um cidadão-escafandro.  Ele é pesado, míope, vive em si mesmo. Preocupa-se com torturas, ânus, sexo, fezes e  armas. Nesta mediocridade, acredita que os demais humanos são como ele e que se preocupam com as mesmas coisas. Mede as pessoas pela sua própria régua. Síndrome do Johnny Bravo (personagem do Cartoon Network).
Esta pessoa corporeificada ao extremo, não tem bom gosto, finesse ou sutilezas. É bronco, fala mal, é duro e agressivo. O que não entende, odeia. Na verdade, odeia muito. Um ódio físico, corporal. Odeia o que está ao alcance de um murro (mais longe do que isto, não vê). Só percebe proximidades, o bronco. A ciência, a história, as universidades e os livros são por ele mal vistos.
Odeia ter consciência da sua própria pequenez. Então ataca feroz quem o lembra dela. É um ataque por medo. Este cidadão de pedra tem medo do que não compreende. Pobre espiritualmente e vil, afunda nos prazeres corporais. Este sujeito só pode falar de excreções corporais, de sexo sem sentimento e da dor dos corpos. Por isso, quer controlar pela tortura ou pela prisão. Esta pessoa só sabe controlar corpos.  Isto porque para ele os humanos são apenas objetos desalmados. O que é imaterial, intelectual, espiritual e abstrato não é perceptível para este Neandertal. Ele é apenas um animal obediente aos seus desejos corporais e observador das suas excreções.

Agora imaginemos Platão, aquele que desejava um rei filósofo. Coloquemos o grego clássico em frente a este cidadão estúpido, hoje sentado no trono. Arrogante, ignorante, bronco e sem alma. Em volta um séquito de adoradores dos prazeres corporais. Os conselheiros do palácio mal sabem ler. Os juízes do reino não conhecem as leis. As autoridades perseguem os sábios e prendem os filósofos que discutem nas praças.

Ao ver esta cena dantesca, o pobre Platão gritaria: onde está a cicuta que matou Sócrates? Por piedade, onde está a cicuta?

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

A política e a mesa redonda




      Os Cavaleiros da Távola Redonda, segundo a lenda, foram os homens premiados com a mais alta ordem da Cavalaria, na corte do Rei Artur, no Ciclo Arturiano. A Távola Redonda, ao redor da qual eles se reuniam, foi criada com este formato para que não tivesse cabeceira, representando a igualdade de todos os seus membros. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Cavaleiros_da_T%C3%A1vola_Redonda)




O que é a política? Entre todos os conceitos possíveis, a concepção de diálogo se faz presente e dominante. Não faltará nestes conceitos a advertência de que o diálogo só acontece genuinamente entre iguais. Iguais no direito de fala.

Acrescento: se a igualdade é determinante também a vontade de ouvir é, na mesma medida, relevante.

Sem diálogo, há o monólogo. Neste caso, prevalece quem tem mais poder fático para afirmar o que quer verbalmente impor. Os frágeis desaparecerão enquanto dissonantes. Então não falarão, sucumbirão para o diálogo. Por isto, não é possível existir a política no monocórdio das falas dos que podem falar.

O silêncio dos que não podem falar faz barulho demais!

Quem não quer ouvir também não pode se dizer um político. Será um ativista talvez; um ideologizado ao extremo, com certeza. A posição infantilizada de não querer ouvir é cômoda para quem se faz de surdo. O imobilismo é uma omissão ativa. O sujeito se omite da audição do outro para poder continuar agindo como sempre agiu. Não evolui. Serve-se de um ativismo, uma ação sem reflexão. No contexto da covardia em ouvir o que está sendo dito e do narcisismo de só ouvir a si mesmo, nada pode ser construído de forma cooperativada.  Se não ouve, o sujeito quer ser obedecido. Para ele a obediência é um valor acima da inteligência e da cidadania.  Esquece que a obediência neste formato só se mantém pelo medo ou pelas vantagens que traz a quem obedece. Esta obediência tem preço: precisa da crescente violência para manter o medo e das crescentes benesses para manter as vantagens.

É claro que a política não pode se basear nestes termos: obediência, medo e vantagens pessoais.

     A política virtuosa vive nas mesas redondas. A forma redonda não admite discrepâncias de poder. Não há extremos para alguém se sentar. Os sujeitos das mesas redondas podem circular a vontade entre os membros, mas sempre estarão em igualdade. São pessoas diferentes, mas a igualdade de direito à fala equaliza estas diferenças (aumenta ou diminui as intensidades). Prevalece a igualdade de poder estar ali e prevalece também o igual direito de poder falar. Os diferentes nesta igualdade brilham em suas singularidades. 

É regra para a saudável política: ninguém pode deixar de ouvir nem deixar de falar. Quantos séculos foram necessários para que as mesas deixassem de ser retangulares e se transformassem em círculos? Posso afirmar: o tempo de os poderosos aprenderem a falar entre iguais em direitos (de fala), regeu o (longo) tempo da construção destas mesas redondas.  

A política é uma mesa redonda criada pelo tempo das lutas sociais.

Há quem queira desfazer a simbologia das mesas redondas. Há quem queira criar extremos para se apoderar de um dos lados extremados. Há quem queira a desigualdade de direito de fala.  

O monopólio da dicção está sendo disputado pelo executivo federal. Quer desfazer, com os tacapes dos extremos ideológicos e com arroubos animalescos, os espaços dialógicos. Portanto, quer desfazer a política saudável.

O zoon politikon se torna um animal em extinção nos mais altos cargos do executivo do nosso país.

Restringe-se os espaços para a política falada, ouvida, negociada e cooperativada.

Ou assume-se a importância de mesas políticas sem ângulos de noventa graus, sem quinas que machucam, sem extremidades para serem dominadas, ou a política sucumbirá dando espaço para a selvageria da luta entre os mais fortes e os mais fracos, entre os que pode mais e os que podem menos.

Quêm lê muito não faz nada. Verdade?