quinta-feira, 1 de dezembro de 2016
segunda-feira, 5 de setembro de 2016
Jurisdição, Estado e Direito.
Prof. Amilcar Bernardi
Fácil imaginar a seguinte situação: náufragos que se
salvaram numa ilha remota. Sabedores que, por alguma fatalidade, nunca seriam
resgatados; organizam-se, dividem tarefas e estabelecem um regramento mínimo
para que pudessem conviver com alguma tranquilidade. Mas a tranquilidade é algo
por demais frágil entre criaturas racionais e egocêntricas. Logo alguém por ser
indolente, induz outro a trabalhar mais que ele. Já outro acumula o que não
poderia ser acumulado. Outra ainda, afirma seu direito natural de nada fazer ou
fazer o que quiser.
Como resolver os impasses? Quem resolveria? Para alguns a
autocomposição foi suficiente, mas para os mais emocionalmente duros, não foi
possível. A discussão dos náufragos
sobre o que é justo, cede à questão da eficácia da norma estabelecida. Daqui
para diante é fácil imaginar que estas pessoas perdidas criam um terceiro. Este
terá como função aplicar e fazer cumprir tais normas. De maneira livre, os
ilhados criam algo que os limita: o Estado. Ele resolverá os conflitos de forma
obrigatória. Os comportamentos sociais serão agora avaliados, tutelados e
regrados de forma coercitiva. Os particulares cedem ao coletivo. Surge então o
que chamamos de jurisdição. Somente após a criação deste terceiro em relação a
sociedade, é que podemos falar em jurisdição. É o Estado que arbitra os
conflitos tendendo a pôr fim às disputas; mesmo que pelo uso da força legal.
Evidentemente que o Estado moderno não é um ente que age por
arbítrio próprio, sem limites e sem racionalidade. O direito, as normas e
consensos, enfim, as leis surgem, fundamentam e legitimam o Estado e seus
juízes. É ele (com seus três poderes – hodiernamente) quem diz o direito e o
faz cumprir. Agora pode-se dizer que há
justiça, no sentido de que justo são as ações estatais - limitantes das
liberdades civis - que seguem princípios e ritos. São os processos legais
estritamente vinculados às leis.
O Estado-juiz quer a harmonia social entendida como a
existência mínima de conflitos entre particulares. Para isso é preciso que seja
legítimo e que seja imparcial. Assim ele será, enquanto manter-se nos trilhos
do direito consolidado nas constituições. Imparcial e equânime; estes são os
princípios que devem rege-lo. Ficará inerte até ser provocado: os juízes agem
quando houver interessados que os provoquem. Não haverá Estado de exceção em
tempos de paz. Sempre respeitará os direitos e garantias constitucionais.
Somente assim os conflitos serão dirimidos pela ordem jurídica constitucional.
Só há Estado porque há conflito. Só há normas e o Direito
porque há conflito. Da mesma forma, o conceito de jurisdição surge da mesma
necessidade de evitar os conflitos intersubjetivos. E só uma instituição pode
impor a paz social: o Estado-juiz.
domingo, 22 de maio de 2016
Elementos conceituais de liberdade
A
liberdade
Em um primeiro momento
parece que temos a certeza da ausência da liberdade. Pensamos a liberdade não
porque a sentimos, mas porque temos falta dela. Sempre foi assim. Ela parece
ser uma utopia, algo como um horizonte que nos faz viajar para o futuro. Mesmo
que não conheçamos a verdade da liberdade, ela é a esperança que nos faz lutar
por um amanhã melhor (e já que estamos falando em liberdade, cada um é livre
para definir o que é um amanhã melhor).
Para Jean-Paul Sartre, a
liberdade é o próprio fundamento do ser do homem. Ela está na raiz de seu
comportamento, porque sempre temos que escolher. Nesse sentido o homem é
essencialmente livre, não pode abdicar da liberdade. Para Sartre, o homem está
condenado a ser livre. Segundo esse autor, somos totalmente livres. Isso porque não posso escolher mais ou menos
entre duas ou mais coisas. Mas
não escolhemos livremente sem consultarmos nosso contexto de vida. Primeiro
aceito quem sou e após livremente escolho fazer o que quiser de mim. É uma liberdade vivida: sujeita-se às condições do
nosso dia a dia. A possibilidade de
liberdade é construída a cada momento: na aceitação das determinações das quais
não se pode fugir e na luta contra as determinações que podem ser superadas.
Sozinho
é possível ser livre. Em sociedade também é?
Numa ilha é fácil. Quero
ver numa metrópole. Sem ninguém por perto faço o que quero. Mas quando estou
com outras pessoas, estou limitado no meu agir.
Segundo Aristóteles o homem é um animal social. Com isso podemos deduzir
que sozinhos nem homens seríamos! Portanto, a questão da liberdade solitária é
impossível. Forçosamente para sermos gente temos que compartilhar a vida, os
espaços, os sonhos, as alegrias.... Sem
pessoas sou escravizado pela solidão.
Portanto, é na prática
que se constrói a liberdade, a partir dos desafios que os problemas do nosso
existir apresentam. Sermos livres significa termos imaginação criadora e a
capacidade de invenção. Para conviver é preciso criar a liberdade possível. A
liberdade é transformadora das relações entre pessoas e entre pessoas e a
natureza. Nada está pronto.
Se
abandonarmos a ideia de liberdade, teremos de abandonar a ética, a moral, o
direito, a cultura e tudo o mais que deriva de atitudes humanas propriamente
ditas; a ética e o direito seriam imediatamente abolidos, e ninguém poderia
ser culpado por suas ações.
Texto
de Ricardo Timm de Souza. Revista Mundo Jovem. junho 2004. Edição número 347
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Liberdade
ética
Podemos falar em liberdade no sentido
ético, quando nos referimos ao sujeito moral consciente, capaz de decidir com
autonomia a respeito de como deve se conduzir em relação a si mesmo e aos
outros. Kant dizia que a liberdade consiste na obediência às leis que o próprio
sujeito moral se impõe.

Abandonar-se aos desejos
parece ser uma coisa bem fácil. Entretanto, seria algo terrível. Para sermos
instintuais teríamos que nos despir de toda a moral, de toda nossa vivência
social. Não valoraríamos mais nada além da satisfação dos nossos ímpetos
impensados. Dá para imaginar como seria impossível viver num mundo assim.
Podemos então perceber que valorizar alguns comportamentos e limitar outros é uma
tarefa difícil, humana e dolorosa. Não podemos ser totalmente livres...
seríamos escravos dos nossos desejos. Mal negócio, não? Que a ética seja
bem-vinda!
Instinto é uma energia
da mente que expressa as necessidades do corpo e de tudo que valoriza a vida
corporal. São eles que nos fazem reagir e agir quando levamos um susto, por
exemplo. Claro que no nosso dia a dia não é bem assim. Posso lá no fundo de
mim estar com muita vontade de fazer algo, mas minha formação cultural e
moral vão filtrar se vou ou não realizar o que quero e se for possível
realizar, como vou fazê-lo.
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Livre
Arbítrio - Santo Agostinho
Muitas vezes a expressão
livre arbítrio, tem o mesmo significado que a expressão liberdade. No entanto,
Santo Agostinho diferenciou claramente esses dois conceitos. O livre arbítrio é
a possibilidade de escolher entre o bem e o mal; enquanto que a liberdade é o
bom uso do livre arbítrio. Isso significa que nem sempre o homem é livre quando
põe em uso o livre arbítrio, depende sempre de como usa essa característica.
Assim, o livre arbítrio está mais relacionado com a escolha que a pessoa faz. O
livre arbítrio é uma faculdade.
segunda-feira, 4 de janeiro de 2016
RESENHA DO JOHN A. HOBSON - Imperialismo
Prof. Amilcar Bernardi
O Imperialismo é a política de expansão e domínio territorial, cultural e, principalmente econômico de um país sobre outro. Notadamente ocorreu no final da época da revolução industrial. Evidentemente que havia enormes interesses dos capitalistas, mas travestiu-se esses interesses de uma missão evangelizadora sobre os povos não cristãos (povos indígenas e áfrica). Os Europeus entendiam-se como possuidores de uma cultura superior e detentores da religião.
Na segunda metade do século XIX, países europeus como
a Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica e Itália, eram considerados grandes
potências industriais. Na América, eram os Estados Unidos quem apresentavam um
grande desenvolvimento no campo industrial. Todos estes países exerceram
atitudes imperialistas, pois estavam interessados em formar grandes impérios
econômicos, levando suas áreas de influência para outros continentes.
O que acontecia é que os povos mais fortes em
tecnologia, capital e armas apoderavam-se de vastos territórios. As colônias
rendiam muito, pois compravam os produtos da metrópole (produtos industriais) e
sustentavam a Europa com as matérias primas que os capitalistas europeus
precisavam.
No final do século XIX e começo do século XX, a
economia mundial viveu grandes mudanças. A tecnologia da Segunda Revolução
Industrial (motores a gasolina e a diesel e eletricidade) aumentou ainda mais a
produção, o que gerou uma grande necessidade de mercado consumidor para esses
produtos. Os monopólios cresceram tanto que precisavam absorver os países
dominados em busca da mão-de-obra barata e abundante e mercados consumidores. A
maior parte dos capitalistas e da população dos países imperialistas
acreditavam que suas ações eram justas e até benéficas à humanidade em nome da
ideologia do progresso.
John Hobson foi um dos economistas que teorizou sobre
o imperialismo. Ele entendia que houve
uma distribuição desproporcional da riqueza. Os capitalistas acumulavam muito e
as classes mais pobres consumiam pouco. Esse
acúmulo de capital acabava sendo absorvido pela poupança. As elites para
ampliar o consumo de seus produtos e para poderem consumir outros produtos,
provocaram as ações imperialistas.
Para Hobson os interesses econômicos instigam os
governos a praticarem o imperialismo no intuito de explorar economicamente
outros povos. A ordem é drenar as riquezas dos outros países. Como já foi dito,
havia outros interesses, não necessariamente econômicos, como os religiosos e
os ímpetos militares. Sob o ponto de
vista moral, os governos não podiam assumir sua lógica notadamente capitalista.
Então justificavam-se dizendo que suas intervenções internacionais desejavam a
elevação moral dos povos mais atrasados. Segundo Hobson, o imperialismo não é
algo cego, irracional. É, certamente, um planejamento das classes dominantes.
Se há irracionalismo, ele é praticado pelas classes subalternas submissas às
intenções das classes que efetivamente comandam. Essas castas de privilegiados acumulam tanto
capital que seu país de origem não é suficiente para aplicar seus recursos
tanto em produção quanto consumo de bens luxuosos. Isso, como em um círculo
vicioso, estimula a procura por novos mercados externos. O comando desse
processo estava nas mãos dos grandes bancos e financeiras. Elas decidiam o
futuro do planeta econômico. E deu tão certo que os responsáveis por essas
instituições ficaram tão ricos que por mais que gastassem ficavam cada vez mais
ricos. Investiam então na poupança e no crescimento do capital. Não havia
espaço no seu país para investimento na produção. O consumo de tudo que fosse
produzido era impossível. Tinham que produzir para o mundo.
(John Atkinson Hobson (Derby, 6 de julho de 1858 - 1 de abril de 1940) foi um economista inglês, crítico do Imperialismo. É um dos principais representantes do reformismo burguês. Deixou uma obra de mais de 30 volumes, dos quais os mais importantes são, A Evolução do Capitalismo Moderno, e o Imperialismo. Embora seja habitualmente considerado um marxista fabiano, Hobson sofreu influência de diversas correntes de pensamento, de Marx a Sombart e Veblen. Seu caráter profundamente herético fez com que sua obra, por sua vez, influenciasse autores tão pouco semelhantes como Lênin e Keynes. Wikipédia, enciclopédia livre)
Quanto vale o que queremos trocar?
Prof. Amilcar Bernardi
Na origem do comércio (trocas de mercadorias) um problema era
seguidamente
discutido. Quanto vale o que queremos trocar? Essa Questão era (e
ainda é) de suma relevância numa sociedade capitalista onde tudo vale algo, ou
seja, onde uma mercadoria será trocada por outra.
Historicamente foi feita uma distinção entre valor de uso e valor de
troca. Percebeu-se que alguns produtos satisfaziam as necessidades da pessoa
pelas características físicas do objeto produzido. Satisfaziam no sentido de
poderem ser usadas para algo que era importante para quem precisava do produto. O que é produzido, segundo este ponto de
vista, orienta-se pelo interesse das pessoas.
Esse produto é pensado, então, pelo seu valor de uso. Com o desenvolvimento do comércio é fácil
imaginar que tal pensamento não era suficiente para satisfazer as necessidades
conceituais do comércio crescente. Para
que o excedente de produção fosse crescente era necessário que o produto fosse
trocado não por outro de acordo com a necessidade, mas que um bem pudesse ser
trocado por outros bens ou por dinheiro seguindo não mais os ditames do uso
imediato. Evoluiu o pensamento ao
conceituar outro tipo de valor, o valor de troca. Este era não mais
determinado pela satisfação das necessidades da pessoa, mas sim pela
possibilidade de trocar algo por moeda e esta por outros produtos. Os produtos
eram então adquiridos por desejo apenas ou ainda pela necessidade.
O valor de troca segue a fórmula:
produto - moeda - produto (num infinito ir e vir). A produção distancia-se do consumo
imediato sendo mediada pelo mercado. Essas trocas impessoais passam a
medirem-se pela lei da oferta e da procura.
Características do capitalismo
Prof. Amilcar Bernardi
O capitalismo possui algumas características que o diferenciam dos demais sistemas econômicos.
Uma das características refere-se a produção de mercadorias. Aqui podemos ressaltar que os produtores não têm interesse imediato no valor de uso do que foi produzido, mas sim, em seu valor de troca. Dizemos “valor de troca” por que o dinheiro arrecadado com a venda de um produto é desejável porque pode ser trocado por outros. No capitalismo, portanto, produzimos não porque precisamos diretamente do que foi produzido, mas produzimos em vista de outros produtos que desejamos. Dessa forma, até o trabalho humano torna-se mercadoria; tudo se volta para a produção não como um fim em si mesmo, mas para trocas. Inclusive, na sociedade capitalista, somos obrigados a travar relações com pessoas que não conhecemos, para que possamos vender nossa mercadoria-trabalho ou para fazermos trocas impessoais.
Ora, para que vendamos nosso trabalho, é preciso que os meios de produção não sejam nossos; e que quem os possua compre nossa capacidade de trabalho. Sem a propriedade privada dos meios de produção não pode haver essa relação. O capitalismo, portanto, precisa que alguns poucos tenham a propriedade dos meios, e outros tantos tenham apenas a capacidade de trabalho. Todos não podem usufruir igualmente da propriedade. A partir daí, os proprietários não mais precisavam ater-se diretamente à produção. Era suficiente gerenciar o que lhe pertencia. Esse gerenciamento fez com que o excedente produzido fosse apropriado pelo capitalista de forma crescente. Os trabalhadores não tinham controle algum sobre o produto do seu trabalho nem sobre os meios de produção.
Outro elemento importante nos primórdios do capitalismo, era a ideia de que o trabalho comprado do trabalhador valha a pena, ou seja, aquilo que o trabalho produz gere excedente ao capitalista. O salário do trabalhador não pode consumir o valor do que ele produz. Então, para que houvesse excedente, as pessoas viviam com salários que as deixavam na pobreza extrema. No capitalismo sempre houve o fenômeno do desemprego e da pobreza. Para evitar ambos, o trabalhador aumentava sua jornada de trabalho na tentativa de receber um pouco mais. A pessoa perdia autonomia, não mais era dona de si mesma. Não podia escolher hora de trabalho, salários ou o ritmo da produção.
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
Livro: A arte de amar Erich Fromm
Prof. Amilcar Bernardi

Na sua obra A arte de
amar, salienta um equívoco importante: uma prova de amor seria não amar a mais ninguém.
Esse sentimento é uma atividade da alma; caso ame alguém, amo a todos, amo
tudo. “Amo em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me a mim mesmo em ti”.
O amor erótico é o anseio
pela fusão, pela união com outra pessoa. Aqui aparece a exclusividade e não
universalidade. Acrescenta que é, provavelmente, a forma mais enganosa de amar.
Isso porque confundimos com cair
enamorado, algo súbito e avassalador.
Mas esse avassalamento tem tempo curto de vida. A familiaridade com a
pessoa faz surgir um sentimento que diz: nada mais há para conhecer na pessoa.
Mas se nos déssemos tempo para realmente nos aprofundar na intimidade da
pessoa, descobriríamos a impossibilidade de conhece-la totalmente em suas
profundezas. Sem conhece-la totalmente,
a cada dia o milagre se renovaria: a pessoa eleita teria sempre coisas novas,
maravilhas novas a serem descobertas. O desafio do conhecimento dela seria
eterno. De outra forma, a pessoa seria explorada à exaustão. Exaurida perderia
o brilho e valor. Tornar-se íntimo não é somente atingido pelo sexo, ou pela
fala diária sobre “o que temos em comum”; nem mostrarmos nossas frustrações e
magoas sendo sinceros ao máximo. Nem a complexa desinibição com relação ao
companheiro (a) é intimidade. Esse tipo de proximidade torna-se rotineira e
morre.
O amor erótico contrasta
com o amor fraternal e o amor materno. O amor erótico consiste na união com uma
só pessoa, diferente dos demais amores, que não estão restritos a uma única
pessoa. O amor pode inspirar desejo sexual, mas mistura-se a ternura, essa
ternura é produto do amor fraterno que está em nós. Fromm diz isso por que uma
das características do amor erótico é a exclusividade, a exclusão do resto da
humanidade. Mas o casal que ama é também humanidade, então há um sentimento de
separação entre o casal, e entre o casal e o resto das pessoas. Para corrigir
essa distorção, a pessoa que ama, ama na outra toda a humanidade, tudo que
vive. Entregamo-nos profundamente a uma
única pessoa, mas não nos fechamos ao amor fraterno que vive em nós.
O problema na reflexão de
Fromm é que se amamos fraternamente, e em essência somos todos iguais, somos
todos um. Não fará diferença quem amemos.
Ele resolve dizendo que amar é um ato de vontade, de decisão a quem vou
entregar-me. Existe um aspecto racional por trás da indissolubilidade do
matrimônio (em suas diversas formas). Amar alguém não é só sentimento, mas
decisão, um julgamento, uma promessa. Isso seria a morte do amor e a vitória da
racionalidade fria? Não, pois como Fromm diz, amamos a humanidade
fraternalmente, escolhemos uma pessoa porque apesar de sermos um, somos pessoas
diferentes, irrepetíveis. Essa especificidade nos faz sermos escolhidos.
Para Erich Fromm o amor consiste
na compreensão de que ele não é uma situação acidental em que nele se “tropeça”.
Na verdade, é algo que, na qualidade de arte, exige conhecimento e esforço.
Quanto ao amor próprio
Fromm, traz importantes informações. Alegar que amar a si é inversamente
proporcional a amar o próximo, não é bem verdade. Amar o próximo é louvável. Eu
e o outro somos humanos; então amar outra pessoa é amar a mim mesmo! Por outro
lado, amar a mim mesmo me torna apto a amar o outro. É impossível, segundo
Fromm, amar só o outro. Quem não ama a si também, não pode amar ninguém.
A pessoa egoísta só se
interessa por si mesma, não sente prazer em compartilhar, só quer tomar do
outro. O mundo é visto como algo a ser
dominado e dele subtraído tudo. O
egoísta não pode ver senão a si mesmo, julga tudo por si mesmo. É, portanto,
incapaz de amar. Importante: para Fromm
a pessoa egoísta não ama demais a si mesma, ao contrário ama de menos:
odeia-se. Furta da vida o que por si mesmo não consegue atingir. Quer encobrir
o fracasso em cuidar de si mesma.
Fromm diz que o amor é
uma atitude, uma orientação de caráter.
Não há, a priori, um objeto de amor, mas uma visão amorosa com relação
ao mundo. Pois se amo uma única pessoa, excluo o resto da humanidade. Aqui meu
afeto torna-se simbiótico ou um egoísmo ampliado.
A sociedade capitalista se
funda na ideia de um mercado o mais livre possível. O mercado é regulado pela utilidade das
coisas. Nele tudo é transformado em artigo de compra e venda, desde as coisas
mortas até a energia e capacidade de trabalho. Fromm afirma: “O capital comanda o trabalho; as coisas
acumuladas, que são mortas, têm valor superior ao trabalho, às forças humanas,
àquilo que é vivo”. Ele alerta que o capitalismo tem necessidade de pessoas
que cooperem sem atrito. É importante que consumam muito e de forma padronizada.
No capitalismo o homem experimenta suas forças de vida como um investimento que
deve produzir o máximo de lucro possível. Estamos tão alienados que mesmo
buscando nos aproximarmos dos outros, não conseguimos superar a separação. Então a civilização moderna/capitalista nos
oferece soluções de curto prazo, fáceis e instantâneas: o trabalho rotinizado e
burocratizado, a diversão acrítica e o consumo compulsivo patrocinado pela mega
indústria da diversão. Mas isso não diminui a separação entre as pessoas! E como fica o amor nesse ambiente? Estamos impossibilitados de amar: “Autômatos não podem amar; podem trocar seus
fardos de personalidade e esperar um bom negócio”. O casamento passa a ser uma equipe de dois
destinada a auferir lucros. Um ajuda o outro a ter sucesso no mundo
capitalista. “Forma-se uma aliança de dois contra o mundo, e esse egoísmo a dois é
enganosamente tomado por amor e intimidade”.
O amor é uma arte. E só
aprendemos uma arte praticando-a: não há uma receita. A experiência de amar é
pessoal e intransferível. E para dominar uma arte é necessário disciplina e
concentração. Concentração é algo muito difícil de conseguir em nossa cultura.
Somos multifuncionais, multiuso, fazemos tudo ao mesmo tempo. O tempo tem
pressa. Somos incapazes de ficarmos sós, em companhia de nós mesmos.
“Sentar-se quieto, sem falar, fumar, ler, beber, é impossível para a
maioria das pessoas, precisam fazer alguma coisa com a boca ou as mãos”.
Temos que aprender a ficarmos sós conosco mesmos, pois é essa capacidade uma
das condições da capacidade de amar. Aprender a concentrar-se exige do aprendiz
que evite a conversação trivial. Falar
das coisas de maneira abstraída não é concentrar-se, falar de lugares comuns,
falar do que o coração não sente não é ficar atento. Deve-se inclusive evitar as más companhias. “Por más companhias não me refiro apenas a
pessoas que sejam viciadas e destruidoras; deve-se evitar a companhia destas
por que sua órbita é venenosa e deprimente. Falo também da companhia dos
zumbis, da gente que tem a alma morta, embora seu corpo esteja vivo; daqueles
cujos pensamentos e conversas são triviais; que tagarelam em vez de falar e que
emitem opiniões estereotipadas em vez de pensar”.
Outro fator é a falta de
paciência. Queremos andar rápidos, mas a rapidez é má professora de uma arte. “O
homem moderno pensa que perde alguma coisa – o tempo – quando não faz as coisas
rapidamente; todavia, ele não sabe o que fazer com o temo que ganha – a não ser
matá-lo”. Aristóteles dizia que obtemos as virtudes através do hábito.
Semelhantemente Fromm diz que se alguém quer tornar-se um mestre em alguma
arte, devote a vida inteira a ela. “Com relação à arte de amar, isto significa
que quem aspire a tornar-se mestre nessa arte deve começar por praticar a
disciplina, a concentração e a paciência, em todas as fases de sua vida”.
Mas, afinal, qual é a
principal condição para eu realizar minha capacidade de amar? A superação do
narcisismo. Para o narcisista só é real o que existe dentro de si mesmo. O que
é exterior só visto sob o ponto de vista do útil e do perigoso. A pessoa insana
toma como verdadeiro só aquilo que vai na sua cabeça, como num sonho
eterno. Todos nós somos meio insanos,
somos atingidos por uma visão narcísica do mundo. Nas palavras de Fromm: “A faculdade de pensar objetivamente é a razão; a atitude emocional por
trás da razão é da humildade. Ser objetivo, usar a razão, só é possível quando
se consegue uma atitude de humildade, quando se emerge dos sonhos de
onisciência e onipotência que se tem quando criança”. Por isso o amor
requer uma certa renúncia ao narcisismo, requer o desenvolvimento da humildade,
da objetividade da razão. Humildade e objetividade são inseparáveis. Preciso ver a pessoa que vou amar como ela
realmente é, renunciar a quadro que pinto dela com as cores do meu desejo. A
pessoa pode fazer parte do meu projeto pessoal, mas não é o meu projeto
pessoal.
Não podemos deixar de
salientar que Fromm diz: a fé em si mesmo é condição fundamental para o amor. Essa
”fé” é racional, uma convicção fundamentada na minha própria experiência ou
sentimento. É a certeza e a firmeza que nossas convicções possuem, isso de
forma argumentada, defensável e objetiva. Ter fé em mim abre espaço em meu
psiquismo para ter fé no outro, para dota-lo da capacidade de eu amá-lo. “Ter fé requer coragem, a capacidade de
correr um risco, a disposição de aceitar mesmo a dor e a decepção”. Quem
tiver pouca fé em si, ou pouca fé no noutro, não pode amar em plenitude.
Em resumo: o homem
moderno transformou-se em artigo, em coisa; experimenta sua energia vital
como um investimento com que pode alcançar o mais alto lucro, considerando
sua situação no mercado de personalidades. Alienou-se de si, dos semelhantes
e da natureza. Seu objeto principal é a troca proveitosa de suas capacidades,
conhecimentos e de si mesmo, de seu “fardo de personalidade” com outros que
querem igualmente uma troca justa e proveitosa. A vida não tem meta, exceto
de movimentar-se, nem princípio a não ser a de boa troca, nem satisfação que
não seja a de consumir. (Revista pensamento biocêntrico. Página 36.
http://www.pensamentobiocentrico.com.br/content/edicoes/14full.pdf)
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Nascido em 1900, em Frankfurt, Alemanha, Erich Fromm estudou psicologia e sociologia. Doutorou-se em Filosofia em Munique e recebeu sól...