terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Temer a vida para voltar para casa vivo

 Prof. Amilcar Bernardi

Ensinamos aos jovens rejeitar estranhos, a andar de olhos abertos para ameaças, não pegar carona de qualquer pessoa, suspeitar de lugares escuros, não aceitar bebida, evitar pessoas oferecendo drogas, enfim, ensinamos que a vida fora do ambiente conhecido é uma selva perigosa. E parece ser verdade tudo isso.  
Estamos num século de contradições nas valorações. Os valores mais cultuados são a liberdade e a felicidade. Porém, contraditoriamente, ensinar a ter medo é uma necessidade imperiosa, mesmo que limitante. Os jovens saem à noite inconscientes dos perigos, então os mais velhos ensinam o medo. Contra a impetuosidade juvenil os conselhos e as admoestações sobre os perigos onipresentes. Também às crianças ensinamos a desconfiança em relação aos adultos e às situações diferentes.
A utopia da confiança no próximo está cada vez mais distante. No lugar da confiança ensinamos a inquietação, a criticidade exacerbada e a escolha do menos perigoso. Não dá para dizer se ensinar a tensão e a desconfiança é algo errado. Talvez a aprendizagem do medo seja algo necessário, uma adequação a um mundo que se modifica rapidamente. Entretanto, fica uma incompatibilidade entre os valores do amor e da solidariedade e o ensino de um estado de alerta, de receio do próximo.
Não é novidade que a sociedade esta adoentada porque não sabe quais valores priorizar. Então, pela simples inércia do movimento capitalista, o que se sedimentou foi a escolha do lucro, da brevidade, da individualidade e da escolha ao culto da liberdade do consumo de bens e de corpos jovens.
Sem tempo e sem querer parar para refletir sobre os valores que nos norteiam hoje, os adultos resolveram estimular a perturbação da fé no outro, substituindo a confiança pelo sentimento de risco: os outros são avaliados como risco real. Então os pais sentem-se mais tranquilos quando conseguem ensinar aos jovens o receio, a apreensão, enfim, o medo. Ensinam, novamente de forma contraditória, que é preciso temer a vida para poder voltar para casa vivo. É isso que queremos?

domingo, 23 de dezembro de 2012

PESSOAS DESPREZÍVEIS



Prof. Amilcar Bernardi



É de uso comum a afirmação que estamos no mundo da informação. Tudo é comunicação de idéias. O mundo não é algo tátil, mas algo comunicado, significado. Chego a dizer que só existe aquilo que pode ser significado, que pode ser informado de alguma forma. É possível a seguinte máxima: ser é ser expressado, significado.
Tanto é verdade que sem sairmos de casa conhecemos e valoramos outros países e culturas (damos significado ao que não conhecemos). Em frente a nosso computador viajamos por galáxias e sonhamos com vida em outros planetas. Nos sites de relacionamento conhecemos pessoas, tornamo-nos amigos e, não raro, nos apaixonamos e casamos. Conhecemos coisas e pessoas através de sons, imagens e contatos físicos falados... se for possível tal contato, pois não é necessário.
Antes de trabalharmos em uma empresa, ela quer saber do nosso conhecimento. Lê nosso currículo, avalia testes e entrevistas com psicólogos. Quer a informação sobre nossa pessoa para aferir a quantidade e qualidade de informações/conhecimentos que temos a oferecer à empresa. Caso essa avaliação seja negativa, somos impedidos como pessoa de pertencer ao quadro funcional da instituição. Na nossa vida pessoal, quando amamos alguém, a amamos porque o que ela sabe/pensa/conhece é agradável para nós. Então a aceitamos como pessoa amada. Não a amamos pelo corpo ou pela beleza.... é muito pouco! Afinal, amamos o que a pessoa significa (informação) para nós.
Na Grécia clássica ser escravo era não ter voz. Aquele que era escravo não era ouvido, não tinha como expressar-se. Não informava, logo, não era ninguém, não podia ser avaliado. Imagina hoje! Quem não pode ser informação, nada é... ou é pior que um escravo grego!
Penso que o pior que podemos fazer na atualidade é tornar uma pessoa desprezível (de desprezar, menosprezar). Melhor dizendo, tornar o que a pessoa sabe uma informação sem valor cognitivo. Esquecendo deliberadamente que toda a informação é importante. Cruelmente é possível menosprezar o que uma pessoa informa, podemos diminuir o que alguém sabe e diz... isso a ponto de tornar a pessoa uma persona menos, desprezível, não audível! Algo como nos tornarmos surdos para quem fala o que desprezamos. É uma tentativa de tornarmos a pessoa algo sem significado! Isso é horrível. Ainda mais numa sociedade da informação!
Fico pensando sobre o aluno que “não aprendeu”. Os instrumentos avaliativos afirmam que o aprendiz não tem nada a informar sobre os conteúdos trabalhados, ou que o que ele tem a informar é desprezível. E quando o aluno avaliado desfavoravelmente demonstra sua insatisfação, a sua expressão pessoa(al) é desprezada. O que quer comunicar (ele mesmo é uma informação) não é ouvido... são informações tornadas ignóbeis pela autoridade. Fico refletindo... a avaliação mal sucedida é apenas o desprezo dos infinitos saberes que o aprendiz tem? E a avaliação “nota dez”? Seria apenas a supervalorização de alguns saberes sobre outros? Portanto, o “dez” é 100% a exclusão dos saberes ignóbeis (tornado ignóbeis)?
Evidente que não tenho respostas. Porém tenho uma convicção: não podemos tornar conhecimentos pessoais desprezíveis ou de segunda classe. Se assim o fizermos, pessoas serão menos, serão desprezadas e não ouvidas. Toda a pessoa tem informações, toda a pessoa sabe (sabe algo). Ninguém tem o direito de tornar desprezível alguém porque informa o que não quer ouvir em algum contexto. Sei que o contexto escolar exclui muitas informações/saberes/pessoas. E isso não é bom.

(imagem da internet)

sábado, 10 de novembro de 2012

A escola do futuro tem que ser justificada eticamente


Prof. Amilcar Bernardi
 

As forças sociais que produzem uma guerra, por exemplo, só são explicadas eficientemente após a guerra. Antes dos eventos tais forças são inexplicáveis e imprevisíveis.  Se fosse possível plenamente entendê-las antes, grandes impérios talvez não ruíssem. Creio que o antagonismo indivíduo (egoísmo) X Coletividade (altruísmo) é o que move as pessoas, as sociedades. Quanto mais o indivíduo tem esperança que a vida em sociedade é melhor que o individualismo, mais dócil ele será aos limites que a ele é imposto pelos demais. Se a desesperança cresce, decresce a civilidade. Esse antagonismo e essa esperança criam colisões e coesões entre si imprevisíveis. São forças tão colossais que tornam impossível a exata previsão do futuro das relações humanas. Imprevisibilidade, já mencionada no início do parágrafo, semelhante ao que acontece nas grandes guerras e quedas de impérios.

Quando vejo intelectuais prevendo com certeza a escola do futuro olhando para trás, ou olhando o que está passando pelos seus olhos agora, sorrio incrédulo. Isso me faz lembrar a recente comprovação da partícula de Bóson (Partícula elementar que representa a chave para explicar a origem da massa das outras partículas elementares.). Partícula que abre um mundo tão amplo para a ciência, que não é possível prever as consequências dessa comprovação. Faço uma relação com a escola. Uma instituição criada ontem (sob o ponto de vista da história da humanidade) e já tem milhares de teóricos predizendo seu destino! Como se o futuro da escola fosse algo menos complexo que a previsão do que acontecerá após a confirmação da existência da partícula de Bóson!

Respeitando a complexidade dessa instituição, a escola, digo que estamos num vácuo ético em relação ao futuro dela. Já foi dito muito sobre o que a escola não deve ser observando sua história. Já foi dito muito sobre o que a escola deve ser, aí sem olhar sua história, buscando uma utopia que não se encaixa na nossa sociedade. Uma sociedade que muda impelida pela ciência, que muda impelida pela tecnologia, que avança vencendo barreiras culturais e que ao mesmo tempo quer ser bairrista, quer validar sua cultura em detrimento das outras, que quer lucro sem se importar com o país vizinho. Onde o ideal de escola se encaixa nisso? Sinto dizer: não se encaixa ou quando se encaixa, temos vergonha dos resultados desse encaixe. Digo vergonha porque a instituição de ensino encaixada, forma inúmeros profissionais mesquinhos, egoístas, que vivem com valores antissociais até. Igual a sociedade que a sustenta.

O vácuo ético se apresenta quando queremos ver a escola do futuro como uma escola que moralmente seja justificável. Então surgem as questões: Por quais valores queremos que a escola do futuro se paute? Ou não queremos saber disso? Escola para quê? Para quem? Uma escola regida sob o ponto de vista do capitalismo poderá um dia ser justa? Um lugar onde se aprende pelo amor ao aprender é possível num ambiente competitivo e de poucos empregos? É possível o amor ao próximo num ambiente de ensino excludente, onde, na melhor das hipóteses, vence quem sabe mais ficando para trás quem sabe menos? É possível uma escola num ambiente de desesperança na própria permanência do homem na terra? Teremos a coragem (e honestidade) de dizer que queremos sim uma escola excludente que prepare nossos filhos (e não o dos outros) para o sucesso? Teremos a força moral de afirmar uma escola no futuro que prepare uns para bons empregos, outros para empregos ruins e outros tantos para o desemprego? Criticar é fácil, desestimular os educadores é fácil, justificar o futuro escolar moralmente é difícil e para poucos.

O vácuo está aí no futuro ético da escola, tanto quanto na incerteza do que faremos com a confirmação da partícula de Bóson. Não sabemos o que fazer eticamente porque não damos conta moralmente nem da escola que temos hoje. Não sabemos dizer claramente o que queremos dela. Num futuro incerto onde não sabemos o que vai acontecer, pois tudo muda, alguns intelectuais querem colocar (prever) uma escola fora de contexto. Na verdade sempre estaremos fora de contexto quando falamos de futuro, pois não há como prever o que acontecerá moralmente.  Alguns pensadores querem explicar uma futura derrocada da educação antes que tal derrocada aconteça. Nada aprenderam com a história do mundo, uma história que explica os fatos somente após acontecerem. Não temos que explicar uma escola que ainda não nasceu. Temos que afirmar corajosamente (e fora do contexto futuro) como a queremos, que valores queremos que a norteie e lutar por isso.  Será como um filho. Uma criança sempre é imprevisível e inexplicável. Porém, os pais amorosos e esperançosos antes de tudo, que não tiverem elencado valores plausíveis que o formarão, com certeza, terão um grande problema nas mãos. Projetar moralmente e responsavelmente um filho, mesmo que tudo dê errado, deixa os pais com a consciência tranquila. Isso porque tudo tentaram e projetaram moralmente na esperança de um adulto eticamente melhor. Façamos isso com as escolas do futuro.
 
 
 
 

 

 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

As escolas devem dizer o que querem e o que são claramente.


Prof. Amilcar Bernardi 

Prevejo que logo, muito logo mesmo, a escola será a única instituição a estimular o pensar ético. Afinal, as religiões estão sendo minimizadas, excluídas dos espaços públicos. As famílias cada vez mais não dão conta delas mesmas nos conflitos morais que as consomem. Os partidos políticos estão agindo em proveito próprio. Os cidadãos mais antigos, os avós, que antes falavam para seus netos do certo e do errado moral, hoje ainda trabalham para sustentarem-se e, não raro, sustentarem seus filhos adultos. Então a educação escolar está assumindo o papel de ensinar as crianças a pensar nos outros e num futuro moralmente bom para todos. É visível que a sociedade cada vez mais esta abandonando os espaços cedidos para que o certo e o errado sejam contados para as crianças e, por outro lado, entregam aos professores a formação moral e cidadã das crianças.

A escola pública não tem partido político, nem segue religiões. Seus professores devem respeitar as diferenças e a pluralidade cultural. Não devem posicionarem-se cada vez mais  em questões de escolhas subjetivas. Afinal, a escola pública tem que aceitar igualmente todos os posicionamentos que não firam a lei. Convém salientar que ensinar as ciências e as letras não é suficiente para educarmos moralmente. Como então educar nesse sentido as crianças e jovens iniciando suas consciências na reflexão ética? Como trabalhar o certo e o errado moral num espaço onde se deve evitar tal discussão?  Como posicionar-se enquanto educador, se sempre a posição adotada vai afrontar alguma outra que tem igual permissão política de conviver? E se todas as posições são cabíveis, como o educador poderá ensinar/ensaiar a escolha moral? Como posicionar-se como modelo moral se a visibilidade da escolha do educador está prejudicada por um ideal estatal/social de tudo ser aceitável, desde que seja legal?  É bem mais fácil no ambiente escolar público evitar inúmeros posicionamentos, notadamente os polêmicos. Por consequência, o espaço da escola pública é preferivelmente a opinião incontroversa ou cientificamente confirmada? Se a resposta for afirmativa, quanto empobrecimento da reflexão sobre o moralmente controverso! A escola pública já não pode sonhar em ser a ágora grega.

Apesar das dificuldades apontadas nos parágrafos anteriores, há a necessidade da experiência da discussão moral (e posteriormente ética) sobre o mundo. Não uma discussão cidadã/política apenas, mas refiro-me a discussão sobre o certo e o errado moral. Toda criança e jovem precisam dessa experiência. Penso que as escolas confessionais tornaram-se a melhor opção para tal discussão. Afirmo isso porque estas escolas têm bastante definidas suas opções. Exercendo a liberdade de escolha, os responsáveis pela educação moral da criança e do jovem, poderão optar por esta ou aquela escola confessional. Isso sem dúvida sobre o que acredita a instituição escolhida. A criança e o jovem poderão adultecer dentro de um espaço pedagógico anteriormente conhecido.

As escolas confessionais, ou qualquer outra escola não religiosa que se permita dizer o que professa de forma clara e inequívoca, tem a vantagem de ser criticada, amada ou excluída pelo que é, pela sua coerência moral. Penso que melhor é pertencer a uma escola religiosa que respeita minhas críticas (respeitosas também) do que pertencer a instituições que tenham dificuldade de dizer quem são além do pensar científico, cidadão e político. Prefiro um lugar que diga antes de eu entrar que é a favor ou contra o aborto (por exemplo). Pior para a formação das consciências é deixá-las em lugares ambíguos onde tanto faz ser a favor ou contra, “antes pelo contrário”.
 

sábado, 13 de outubro de 2012

As normas disciplinares e a moral escolar

Prof. amilcar Bernardi 
Tradicionalmente o certo e o errado dentro das instituições escolares são vistos como nas antigas cidades gregas.  Nelas, os cidadãos pensavam as necessidades de suas cidades, e não refletiam sobre as outras ou sobre o reflexo de suas escolhas sobre a natureza. O cidadão era aquele que vivia e pensava na sua cidade. Hoje quando há conflito no colégio, o contexto também não é levado em consideração.
É uma miopia pensarmos apenas numa moral escolar interna. Isso não é possível. Expulsar um aluno, similar ao o ostracismo grego, pode ser uma ação boa para a unidade escolar e má para o contexto social. Por outro lado, criticar as escolas ou dar atribuições que não são exequíveis para ela, pode parecer ser bom para a sociedade, mas é péssimo para os colégios. Na relação sociedade/ escola, com certeza o que é ruim para um é ruim para ambos!
As questões disciplinares não podem ser vistas como algo que diga apenas respeito aos sistemas de ensino. Diz respeito a todos. Cada pai que, quando em conflito com a norma disciplinar da escola, advoga em proveito próprio (do seu filho) está cometendo um equívoco contra a sociedade. Por outro lado, o egoísmo do pai é reflexo de como ele aprendeu a sobreviver nessa mesma sociedade. Portanto, as normas de conduta escolares são algo sério, que devem ser respeitadas tanto dentro quanto fora dos muros das instituições de ensino. Da mesma forma que, as equipes que pensam as normas disciplinares, precisam saber que são reflexo de um contexto social e nele provocam efeitos.
A sociedade precisa fazer uma reflexão ética sobre as escolas. O que queremos mesmo delas? A serviço de quais valores elas estão?  Ao querermos escolas laicas, neutras e sem preconceitos, quais valores são possíveis? Quando valorizamos a competição e a vantagem em tudo, quais regras de conduta podemos afirmar nas escolas? Ao desqualificarmos o estudo tradicional e ao criticarmos diariamente professores e instituições educacionais, o que queremos dizer com isso? Não são os colégios que estão em crise, é a visão ética do mundo que está.
Não dá para fazer crítica a um ou outro aspecto do fazer prático desta ou daquela escola. O que temos que saber é o que queremos eticamente delas todas. Ao abandonarmos os valores tradicionais, ao abandonarmos a política partidária, ao optarmos pelo capitalismo e pela liberdade de opinião e de fazeres; o que queremos que a escola ensine no âmbito ético? Afinal, é impossível ensinar conteúdos específicos sem imiscuí-los com uma crença moral. O professor, o diretor, enfim, as pessoas são gente; não são assépticas!
Caso a sociedade não repense uma ética para a educação e a afirme, cada educador (e cada instituição) estará liberado para agir de acordo com sua visão moral particular. Então a crítica ao fazer da escola será impossível, pois nela toda a ação moral estará justificada pela liberdade de opinião.
Preciso fazer uma exceção às escolas confessionais. As instituições verdadeiramente religiosas, dizem claramente seus valores. Afirmam como vão valorar os conteúdos acadêmicos e o que vão ensinar além dos currículos para as crianças e jovens. Quem matricula seus filhos nelas, sabe o que esperar e o reflexo que isso terá nas normas disciplinares.
As regras disciplinares serão sempre algo para a reflexão escolar. Porém, temos que decidir o que queremos ensinar (eticamente) em nossas escolas. Afinal, ao discutir exclusivamente o caso do meu filho ou da minha escola, estou sendo egoísta e alunocêntrico. Sabendo que cada vez mais as instituições de ensino serão as responsáveis pela educação moral, temos que pensar no contexto social e no papel que este ensinar tem nos dias de hoje.


Imagem obtida na internet





terça-feira, 9 de outubro de 2012

Aberta a temporada de caça



Prof. Amilcar Bernardi


Há milhares de anos atrás os homens, ou pré-homens, caçavam nas planícies ou florestas. Tinham os instintos à flor da pele no que se refere a captura e ao extermino de criaturas. O principal motivo: alimentação e sobrevivência. Evidentemente as qualidades exigidas para tal atividade eram mais a (crescente) astúcia e menos a velocidade, a boa visão e a força muscular. Os animais eram vencidos pelo conjunto destas habilidades. Os bichos podiam ter velocidade e força, mas perdiam em astúcia desequilibrando a luta pela vida.

Hoje já não temos florestas nem grandes planícies desabitadas com caça abundante. Sequer precisamos caçar. Já não há tantos animais que se escondem nas vegetações, que desaparecem nas imensidões naturais. Hoje a caça é de homens por homens. As florestas com grandes árvores e precipícios foram substituídas pela floresta de concreto e seus viadutos. Pelas entranhas das cidades homens rastejam para assaltar e matar. Outros homens se escondem em bandos para caçar os que rastejam.

Antes os animais não eram rastreados como indivíduos. Eram caçados simplesmente porque eram animais e podiam ser comidos. Não importava mais nada, sequer a raça. A caça era democrática e livre. Antes qualquer homem podia caçar qualquer animal que pudesse matar. Os bichos caçados pouco revidavam. Não eram inteligentes, morriam às dezenas.

Hoje homens caçam homens. Mas não há mais democracia na caça. Só pessoas especiais autorizadas pelo Estado podem caçar homens. Os caçadores oficiais possuem alta tecnologia para rastrear presas específicas. Armas possantes e eficazes. A caça não é livre. A tecnologia precisa identificar antes a caça. Saber quem é, onde se esconde, quem são seus pais e quais as pessoas que andam com ele. Já não é possível caçar qualquer um. Os homens do Estado podem caçar apenas alguns. Inclusive capturam os homens que, sem autorização, caçam outros homens para roubar ou apenas para matar. O ladrão que caça pessoas às escuras, escondido e rastejante, será caçado pelos caçadores autorizados. 

Na pré-história matar era corriqueiro. Ninguém era caçado porque matou alguém ou algum animal. Ninguém saia apenas para passear. Afinal, todos representavam algum perigo e sofriam alguma ameaça. As saídas eram para prover alimentos. A caça não era predatória. Matava-se para comer ou para se defender (ou defender seu território mínimo).

Hoje alguns homens passeiam apenas para pegar sol. Outros saem para trabalhar. Fazem de conta que não há uma caçada acontecendo. A caça é predatória. Hoje homens caçam homens não mais para comer ou para defender território. Caçam sem razão, por ganância, porque a lei manda ou porque é divertido. A temporada de caça de homens por homens há séculos está aberta. Caça-se com tiros, com pauladas, com facadas, com poder, com valores morais excludentes, pela fome e miséria. Hoje sobreviver é mais por sorte e menos por juízo.
 
 
 
Imagem da internet

 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Elogio ao medo

Prof. Amilcar Bernardi


Ao  imaginar como seria a humanidade sem medo, veio à minha mente o filme Wall-E. O filme é uma animação feita em 2008, da Pixar Animation.  Em determinado momento da animação, surge uma nave espacial nos moldes da arca de Noé, onde os humanos vivem há séculos. Se movimentam através de cadeiras de rodas (na verdade sem rodas, porque flutuam). Robos servem às pessoas que não precisam sequer levantarem-se para se alimentarem. Não há medo, pois tudo é programado, previsível e limpo. Esta animação mostra como resultado disso sujeitos obesos, com a vontade enfraquecida e hipomuscalares.

O medo é um estado emocional de alerta, é a consciência de perigo imediato ou não, real ou imaginário. Presumo que em excesso é contraproducente e estressante; negativo, portanto, para a saúde. E na situação do filme Wall-E, como seria? Na hipótese da ausência total do medo, o que seria de nós? O que nos estimularia? Ou melhor, existe estímulo maior à ação do que o medo? Não creio. Alguns pensarão que o amor é um forte impulso à ação. Eu digo que a tensão do medo de perder esse amor é o que nos move, o que faz de cada dia de convivio uma conquista nova da pessoa amada.

Quando falo do medo, evidentemente não estou referindo-me ao terror, a paralização oriunda da cosnciência da morte violenta e iminente, por exemplo. Estou falando do estado de alerta, da forte espectaviva do inesperado.

Quando imagino uma situação paradisíaca, sem estímulo forte como o medo, vem a minha mente uma não ação, um não tentar. Sem o estado de alerta não há desejo de busca. Não refiro-me, deixo claro, ao sentimento de covardia, que em tudo difere do medo. A covardia é uma fraqueza, uma desistência de uma luta. O covarde não tem confiança em si mesmo. Este sentimento vil nos fazendo pensar unicamente  na dor, não nos deixa realizar, nos faz fugir do sofrimento sem esperança alguma. Este sentimento pusilânime não é medo, é paralização, é imobilidade, é desesperança.

Quando separo o medo da covardia, torno inseparável o medo da valentia. Só os valentes tem medo. Os covardes tem paralizia e terror. O covarde é imediatamente um desesperançado, um desistente imediato. O sujeito pusilânime coloca seu prazer e sua incolumidade acima de tudo e de todos. Este sujeito desprezível viveria bem na nave do Wall-E. Seria um obeso desistente de todo o movimento, um sujeito que aspira só o prazer de ser servido sem a dor de correr atrás dos seus desejos. O covarde é um hipotônico.

Eu sinto-me valente  justamente porque tenho muitos medos. São tantos que nem sei contá-los. Porém, não sucumbo, não desespero nem desisto imediatamente. Eu amo e temo perder o que amo, então amo muito mais. Temo não ser mais útil no que faço, então estudo sempre mais e procuro utilidade. Sou corajoso por que sei que felizmente não há paraíso por aqui. Sou corajoso porque supero cada temor que assalta-me para encontrar outros e superá-los novamente. A vida é isso: superação dos medos.
 
 
 
 

Livro Planeta dos macacos de 1963