sábado, 20 de fevereiro de 2021

Filosofando sobre o cárcere e o desejo de punição máxima no cumprimento de qualquer pena.

 



 

A questão do cumprimento da pena e seu porquê atravessa os séculos.  Falo em séculos por que na idade antiga (de 4000 a.C. a 3500 a.C.) as pessoas já eram encarceradas. Entretanto, o cárcere era apenas o lugar onde a pessoa era custodiada. O cárcere era a antessala do cumprimento da pena.  Neste período histórico, a pergunta pelo objetivo do cárcere tinha uma resposta simples: objetivava guardar o sujeito que provavelmente delinquiu, assegurando o cumprimento da futura pena.

 

A prisão e a pena eram coisas distintas, friso.

 

Na idade moderna (séculos XV e XVIII) a justificativa para o cárcere mudou. A prisão passa a ser a própria pena. Então, a pergunta pelo porquê do encarceramento se complexificou. A sociedade pretende, a partir modernidade, prevenir o crime e a sua reincidência. Há que se cuidar do cidadão antes que delinqua. Também há que se (bem) cuidar dos encarcerados.

 

Se o Estado encarcerou muitos, então falhou na prevenção ao crime. Se muitos reincidem no crime, o Estado passa a responder pela qualidade da política de ressocialização. Por consequência, encarcerar passou a exigir muito do Estado.

 

Como assim? – Pergunta o encarcerador. O criminoso merece cuidados? O bandido não deve sofrer (muito) por seus crimes?

 

Para reduzir a taxa de reincidência é preciso tratar bem as pessoas apenadas. Independentemente do crime. Só o fato de ter a liberdade cerceada, já é uma brutal punição. Não há que acrescentar mais nada. Nem trabalhos forçados, nem tortura, nem maus-tratos.  Ao contrário, a prisão tem que respeitar a dignidade da pessoa encarcerada.

 

O encarcerador pergunta. Então, encarcerar para quê?

 

A pena reprova o mal que o condenado praticou, não a pessoa. Portanto, a sociedade através da pena estatal, terá que humanizar, educar e demonstrar ao criminoso que ele não é um inimigo. Que a sociedade o quer de volta. Para isso, basta a ele retomar o cumprimento das regras sociais. O apenado terá que aprender a confiar que o Estado e a sociedade não são entes que o perseguem, que o querem torturar ou eliminar.

 

Caso o desviante se sinta um inimigo a ser caçado após delinquir, aprenderá a reagir como o inimigo reage na batalha fatal: sem regras, sem moralidade, sempre agressivo. Sem nada a perder, será matar ou morrer.

 

Então, por que ainda prendemos pessoas assumindo o risco de piorá-las?

 

A prisão é a tentativa de aplicar penas adequadas, e que não afetem a dignidade do encarcerado. Somente as penas necessárias e suficientes. Suficientes para que o apenado entenda a reprovação que a sociedade impõe ao delito cometido, e não a pessoa que o cometeu.

 

O encarcerado ao compreender esta reprovação, e percebendo como suportável a pena (se não puder entendê-la como justa), retornará a sociedade sem odiá-la. Caso contrário, se sentirá aviltado, vilipendiado por todos. Reagirá de acordo com estes sentimentos.

 

O crime original do desviante não explica totalmente o que a pessoa se tornou, após todo o desenrolar da aplicação do Direito Penal. Um dia todo o apenado retornará à sociedade, é fato. Ele será o resultado do que a sociedade fez dele antes da pena e depois dela.

 

A sociedade cria a norma a ser cumprida e cria a pena. É legisladora e juíza da sua própria legislação. Também criará o tipo de egresso que formará em suas penitenciárias. Não há um terceiro para culpar!

 

A lei de execução penal, no seu artigo 10, nos informa que o Estado deverá prestar assistência ao sujeito que cumpre pena.  A assistência quer prevenir o crime, e orientar o retorno à convivência em sociedade.

 

Lá no artigo 17 da mesma lei, esta assistência se amplia para a garantia da instrução escolar e para a formação profissional do apenado. No artigo 21-A cobra-se do Estado a existência de bibliotecas, e a obrigação de fornece-las com o acervo em boas condições.

 

Opa! Então a pena não quer somente “penalizar”? Não! Respondo.

 

Quer dizer que não haverá maus-tratos na penitenciária? Quer dizer que o bandido terá assistência médica, odontológica e psicológica? Em tese sim.

 

Caramba!- insiste o extremista. O apenado tem direito a mordomia? Não!

 

O tratamento dispensado ao sujeito desviante, está intimamente relacionado com a necessidade da sua ressocialização. Como a sociedade é quem encarcera as pessoas através do poder do Estado, ela tem que ressocializar também. Terá que arcar com este ônus. Uma coisa é indissociável da outra.

 

A Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso XLIX, estabelece que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. O extremista fica irritado com esta limitação.

 

O extremista pergunta atônito: Então, se o sujeito não pode sofrer na cela, prender o meliante para quê? E o castigo disciplinador? E o sofrimento, justamente devido, ao delinquente que tanta dor provocou? Então quer dizer que é melhor a vida dentro da prisão do que fora?  Lá dentro tem tudo de bom. Não há por que o bandido querer sair de lá para ir trabalhar!

 

 

Pois é senhor extremista, são sempre estas as questões que se ouve por aí.

 

O extremista entende que o medo/terror da prisão é melhor que a cuidadosa prevenção!  Ensina que as prisões não ressocializam ninguém, pois são dóceis demais. Afirmam que lá dentro a vida é mansa e ociosa. Que são uma escola do crime.

 

Só não explicam que a matrícula nesta “escola” e o seu currículo não são opcionais. O “aluno” nem pode questionar o que lá está. É jogado nesta realidade e pronto.

 

Os extremistas querem desacreditar o sistema penitenciário. Entretanto, também propõem o aprisionamento em massa.  Dizem, ao mesmo tempo, que as penitenciárias são inúteis e extremamente necessárias.  Um contrassenso entre tantos!

 

Se as prisões não ressocializam, são inúteis. Se inúteis, é um desperdício mantê-las. Poderíamos transformar seus prédios em hospitais ou em escolas de verdade.

 

Se são escolas do crime, não “matriculemos” mais alunos!

 

Se lá a vida é mansa e ociosa, então providenciemos a liberdade e o emprego digno para todos!

 

Se os extremistas concluem que a prisão de nada adianta, adiantará continuar prendendo pessoas?

 

A sociedade faliu ao valorar as prisões, ao invés de apostar no Estado de bem-estar social?

 

Se o Estado de bem-estar social falhou, serão as penitenciárias a solução para se redimir desta falha?

 

As perguntas talvez sejam sempre melhores que as respostas. As respostas passam, as perguntas ficam!

 

Como minha formação original é em filosofia, acredito que só o fato de mantermos as perguntas vivas, já é um bom avanço civilizatório. As certezas tem caráter conservador.

 

A sociedade é a mãe que dá à luz a seus próprios desviantes. Ela cria estes filhos mantendo o neoliberalismo competitivo. Não dá a eles as possibilidades de uma vida digna a todos e por igual. Ora, se deu à luz a bandidos por desídia, que bem cuide deles agora que são adultos!

 

Não é possível renega-los como se fossem filhos de outra pessoa.

 

A sociedade é uma fábrica de desviantes. Então, alguma coisa não está bem com ela.

 

A questão encarcerar para quê, poderia ser substituída por: criamos tantos bandidos por quê?

 

Desconfiemos da pretensão dos extremistas a um Estado altamente punitivista. Passemos a refletir cada vez mais sobre a desigualdade social e a fábrica social de criminosos. Reflitamos sobre as punições inócuas.

 

O Estado mais pune o desviante comum. Mas é justamente o desviante pobre e da periferia, quem discorda da ordem estabelecida de forma militante. Discorda do nosso apego a um projeto econômico que exclui cada vez mais pessoas. E cada vez mais pessoas são presas.

 

Fica a dica.


 

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