sábado, 22 de agosto de 2020

A servidão voluntária no Brasil II


O Brasil da servidão voluntária.



A palavra servidão nos lembra algo a ser evitado. Quem quererá ser servo de alguém? Não parece viável que uma decisão livre aceite a escolha da servidão (que é negação de liberdade). Em princípio, são ideias contrárias e excludentes: liberdade e servidão.  Pela lógica deste parágrafo, é perfeitamente entendível que a servidão só seja suportável quando os povos se submetem por serem temporariamente fracos, ou por temerem uma vingança muito maior em quantidade de dor do que suportam agora, na servidão.

Na obra Discurso da servidão voluntária, Étienne de La Boétie nos remete aos povos que não só aceitam a servidão, como colabaram com ela. Evidentemente que o escritor pergunta o por quê disto. Não é comum ao escravo escolher livremente a sua própria escravidão. La Boétie entende que há motivos para tal submissão. Se pensarmos que o preço da servidão é a ausência de liberdade, os motivos para perde-la deveriam ser muito, muito possantes! Mas o que choca é que os motivos se referem menos à força do príncipe e mais ao costume, a covardia e a hierarquia social.

O governante age como se não percebesse que seu poderio todo vem da submissão autoimposta dos povos. E que o dia em que esta imposição não for mais consentida, o governante cairá em desgraça. Afinal, seus mil ouvidos que tudo prescrutam, não são os seus. São dos delatores, dos traidores e dos que querem bajulá-lo. Seus mil pés que tudo esmagam, não são os seus. São dos próprios vassalos que querem também usufruir um pouco das benesses de serem próximos do ditador. Sequer as mãos que acionam as armas, são suas! Outros acionam os gatilhos em nome do fascista. Logo, é previsível que, se o príncipe nada tem, é totalmente dependente e frágil. Tudo o que o governante acha que é seu, é do povo que o sustenta.

Basta um sopro e o tirano cai. Afinal, é o mais frágil na relação povo e governo de um povo. Basta a população nada fazer, nada dar, nada consentir e o tirano vira pó. Caso ninguém plante para ele comer ou traia os amigos para mantê-lo sabedor de tudo. Caso todas as suas armas não tenham mãos para acioná-las ou sua guilhotina não tenha carrascos. O que o soberano de coisa nenhuma poderá fazer? Nada. É preciso, diz Étienne de La Boétie: que o povo apenas não ceda ao tirano. Não é necessário revoltas nem mortes. Simples assim. E por que não ocorre esta rebelião pacífica e terrível ao tirano?

Principalmente, eu aponto após ler o texto de Étienne: o costume (sempre foi assim, dizem) e o desejo de também usufruir das benesses da tirania. Segundo Étienne, todos somos tiranetes.  O que me lembra Paulo Freire que dizia que dentro de cada oprimido há um opressor. Acrescento ao Paulo: é só dar uma chance e o bicho aparece.

Podemos concluir que todo o mal político que hoje nos oprime, é sustentado e permitido por pessoas comuns.  Estas pessoas, inúmeras, anônimas e insignificantes, são as mãos, os olhos e os pés de quem nos governa de forma fascista. Fascistas sustentam o fascismo. Alguns por covardia, outros por que acreditam que sempre foi assim e, a grande maioria, por sonhar participar das benesses de um governo tirano.

Entretanto, convém lembrar: todo o tirano não confia em ninguém. Sabe que faz as pessoas sofrerem e que aquelas que se aproximam (mesmo sofrendo como as outras) querem apenas usufruir do poder.  Então, se elas traem seus iguais, por que não trairiam o governante? Por consequência, assim que puder, o governante há de se livrar de seus asseclas não por maldade, mas por saber a verdade: todos os que o apoiam são tiranetes que apenas esperam a sua vez de assumir o poder. Simples assim.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A mão invisível do mercado, a matemática e o corpo escondido sob os guarda-sóis.



     
      Para começar apresento a mão invisível do mercado, de Adam Smith (1723 – 1790). Esta mão invisível seria, na ausência da regulação estatal, uma lei: a lei da oferta e da procura. Esta regularia as relações comerciais. Acima das pessoas, disse este economista, está a oferta (que baixa os preços) e a procura (que aumenta os preços ao provocar a escassez dos produtos desejados). Na ausência das regras ditadas pelos governos, a lei “natural” das relações de comércio regulariam friamente os homens e as mulheres em seu consumo de produtos. Assim como a matemática, apesar das paixões humanas, a mão invisível tudo regula.
     
      E já que falamos em matemática, podemos dizer que esta ciência quer sistematizar as quantidades, as medidas e prever suas variações. Baseada em que? No raciocínio lógico que estabelece padrões previsíveis. Esta ciência é humana, criada sob medida pela humanidade. Entretanto, apesar de viver parasitando as mentes das pessoas delas prescinde. Ora, o cálculo é exato apesar dos humanos (que erram muito).  Ou seja, dois mais dois são quatro, mesmo que todos desejem ardentemente que seja cinco. Apesar dos hospedeiros humanos, o parasita matemática zomba deles e age como se tivesse vida autônoma. Que ilusão ilógica dos números. Sem pessoas, sem matemática!
     
      De maneira similar, Adam Smith ao trazer à luz das ciências econômicas a sua mão invisível, criou mais um parasita. Ou seja, assim como a matemática, apesar desta mão ser sustentada por humanos e viver deles, é autônoma e rege seus hospedeiros. Eis dois parasitas esnobes: a matemática e a mão invisível do mercado. Cospem no prato em que comem. O dia em que a humanidade desaparecer, estes parasitas morrem também. Afinal, ambos são criados sob medida pelos e para os humanos.

      Matemáticos e economistas são cientistas que criam parasitas. Desculpem a franqueza.
     
      A prova disto é o funcionário de uma empresa fornecedora de produtos para um supermercado, que morreu em serviço, e foi diligentemente ocultado por guarda-sóis. Ocultou-se a miséria humana para que a matemática das vendas e a mão invisível do mercado continuassem operando. Afinal, humanos atrapalham a coerência e a lógica da matemática e da economia.
     

      Não creio, sendo sincero novamente, que os funcionários e a direção do supermercado tenham de má-fé ocultado o falecido. A culpa é da matemática e mais ainda da mão invisível. Ambos os parasitas infiltrados nos cérebros humanos manipularam as consciências, e fizeram com que procedessem desta forma. Afinal, era a conduta mais lógica. Por que parar as vendas só por que uma pessoa que morreu? Esta não consumiria mais, seria um zero na economia. Mas, as demais pessoas continuariam a consumir. E consumir, sabe-se, é um direito inalienável. Facilitar o consumo sempre é o mais lógico.
     
      Pelo hábito e pela lógica do mercado, é possível entender o procedimento tão inumano. Ora, como já disse, a matemática e a mão invisível não são humanas. São produtos da humanidade, mas não sofrem das incoerências ilógicas das pessoas.  Estes parasitas das mentes são alucinantes. Produzem ilusões estranhas. As pessoas calculam tudo menos os efeitos da banalização de suas próprias vidas. Hoje foi o funcionário escondido para não atrapalhar o comércio. Amanhã será eu ou você.
     
      Os parasitas agradecem nossa ilogicidade.
     

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O fanatismo e a menina/mãe de dez anos.


 


Tenho o hábito de refletir antes sobre o conceito da palavra chave que vou usar nos artigos. Neste caso, a palavra referência é fanático. O que vem a ser isso? Refere-se a pessoa que se (auto)julga inspirado por algo/alguém superior a todos os demais. Para ser fanatismo, esta crença tem que ser extrema. Não pode ser branda ou razoável. O fanático demonstra excessivo/extremo apreço e entusiasmo por um líder.  E se acha especial por (julgar) ser escolhido por ele. A partir daí, creio ser possível identificar o fanático por suas ações externas a si mesmo, ou seja, suas atitudes.   Por ser uma criatura extremada, fica fácil observar no mundo dos fatos o seu fanatismo.

      Tenho certeza que posso encontrar estas criaturas em situações irracionais, geralmente em grupos, irmanados por slogans desprovidos de realidade e cheio de conceitos feitos antes (preconceitos). Conceitos já fabricados pelo líder, pela seita, pela ideologia, por um mito.  Nestes grupos, cada indivíduo é absorvido pelo outro. De forma que sozinhos são fracos, hilários até, mas em grupo são tenebrosos.  Cada indivíduo é risível sozinho, mas temível em bandos, em hordas.  Estes indivíduos só encontram sentido em suas vidas quando sustentados pelo fanatismo.

      Exemplar é o caso da menina de dez anos estuprada pelo tio de trinta e três anos. Abuso que teve início aos seis anos de idade da criança. O natural das massas seria odiar o agressor e proteger consternadamente a vítima. Agora apresento o exemplo do fanatismo.

 Um grupo religioso agride a vítima criança e esquece o agressor adulto. Chamam a vítima de assassina, pois terá que fazer o aborto legal. Esta palavra - aborto! - desencadeou a fúria fanática. Quase que diziam: “matemos a mãe/menina para salvar a vida do feto. Matar para preservar a vida.”.  Ou ainda: “se morrer a mãe/menina na gestação, aceitamos. Se salvá-la retirando o embrião, que ela viva amaldiçoada.” Certamente estes fanáticos acreditam que o Deus perfeitamente bondoso assim quer.  Todo o fanático acredita falar em nome de alguém: até de Deus!
     
      Estes anencéfalos adultos não veem contradição no que dizem, no que fazem e nas ideias que expõem.  Não possuem mais opinião própria, só a coletiva. São bonecos de ventríloquo do líder sendo aplaudidos apenas por seus iguais. Sob o ponto de vista das ciências da mente, talvez sejam neuróticos.  Eles têm perturbações do psiquismo que provocam desordens no comportamento. Não são doentes do corpo, padecem na alma.  Tem consciência do que fazem, mas se auto justificam em grupo. Um olha para outro e diz: “O mal que estas fazendo é um bem no contexto de um valor maior”.  Por isso, não podem mais viver fora do grupo. São sofredores que provocam a dor alheia na tentativa de mitigar as suas. Cedem a comportamentos rituais e complexos para se afastarem da reflexão sobre seus próprios atos. Se religiosos, oram. Se fanáticos políticos, repetem refrões ideológicos.
     
      Nem as redes sociais, tão cheias de pontos de vista diferentes, podem salvá-los. Estas criaturas tem suas próprias comunidades para se protegerem do que é diferente deles mesmos. Blindam-se contra a diversidade.
     
      O fanatismo revela dificuldade de viver em sociedade. Se acham vítimas (heróis ou heroínas) ou se acham superiores.  Como não são razoáveis, se autoconvencem destas verdades.  Creio que sabem que mentem para si mesmos, então investem em rituais coletivos para esquecerem, para perderem a consciência do mal que produzem.  Por isso, evitam qualquer dúvida. Caso tenham alguma, o líder responderá. Então, por que pensar se são pensados por alguém? Por que pensar por si mesmos se são apenas porta-vozes de um líder??
     
      Estes fanáticos são neuróticos que optaram por viver suas neuroses em conjunto. Sofrem, mas encontram justificativas coletivas para seu sofrer. Sofrem na terra, mas ganharão os céus. Sofrem agora, mas no futuro a política trará um país melhor, um céu na terra. Contam para si mesmos: somos os escolhidos. Gritam slogans para não ouvirem os gritos de dor de quem fazem sofrer.
     
      Não são só os extremistas religiosos que se “neurotizam”. Os seguidores da política extremista também. São fanáticos os que pregam a morte, a dor, a tortura, a ampliação das prisões e a produção de cloroquina. Nem sempre este tipo neurótico é o outro (o “não-eu”). Se tu concordaste com o sofrimento da menina/mãe de dez anos, com certeza precisas de um tratamento psicológico (ou psiquiátrico).
     
     

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?