segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A ignorância e a barbárie estão querendo assumir os espaços jurídicos.



      Desde sempre a humanidade teve fetiche pelo corpo. Desde sempre a história nos mostra a preocupação com os fenótipos.  Os corpos sempre foram avaliados como belos ou não. Se belos, tinham algumas vantagens sobre os demais.  Corpos de boa aparência (de acordo com sua época) eram bem-vindos e desejáveis.  “A primeira impressão é a que conta”; minha avó já dizia.
     
      Os corpos ditos feios eram/são malvistos.
     
      Cesare Lombroso (1835 – 1909) ensinava que de acordo com a aparência do indivíduo, poderíamos suspeitar se era um criminoso.  Os ocupantes dos presídios parecem confirmar sua tese, porque os fenótipos se assemelham. Corpos da mesma etnia parecem seguir o roteiro de se tornarem criminosos.  Afinal, sempre se prende os negros, os pobres, os menos escolarizados.
     
      O fascínio pelo corpo é antiquíssimo. A tortura para saber a verdade ou para inibir atitudes. Os corpos das mulheres queimadas vivas como bruxas. O açoite dos ímpios. A morte por apedrejamento das pecadoras. O estupro das mulheres dos vencidos nas guerras. A crucificação dos criminosos. E, finalmente, as prisões.
     
      Os calabouços são exemplos clássicos, criados para colocar os indesejáveis. No início, encarcerava-se para guardar as pessoas até serem supliciadas ou enforcadas. Só depois passaram a ser o que são hoje: locais de cumprimento de pena.  A construção de mais cadeias atualmente é mais desejada que a criação de escolas de vanguarda. Talvez porque as escolas progressistas trabalhem o espírito (portanto, fogem do fetiche do corpo).
     
      Encontramos facilmente adultos dizendo que bater em corpos de crianças é mais efetivo que educá-las pela (e para a) palavra. Dizem que as crianças não entendem o que se diz, mas entendem perfeitamente o chinelo na mão do adulto agressor.  Alardeiam que é melhor apanhar dos pais na infância do que da polícia quando adultos. Não entendem que nem os pais, nem a polícia deve bater!
     
      Sempre o fetiche pelo corpo! Acreditam que agredi-lo, encarcera-lo, atingi-lo é mais fácil e eficiente do que falar com o outro, do que ouvir e aprender.  Castigar os corpos, pensam, é mais fácil e menos trabalhoso que educar os espíritos.
     
      Corpos estão à distância da mão e da chibata. Já os espíritos estão ao alcance da inteligência. Há que se escolher.  
     
      Entender o Código Penal, o Código de Processo Penal e a lei de execução penal como a solução primeira para a violência que acomete o nosso país, é o fetiche pelo corpo tentando assumir ares jurídicos.
     
      Prender mais pessoas por mais tempo, eis a novidade (tão antiga) que se apresenta hoje. Prender os corpos que delinquem. Algemar a pessoa que é abordada pela autoridade policial. Reduzir os direitos e as garantias fundamentais que estes corpos possuem. Urge castiga-los, demonizá-los e fazê-los sofrer.  O Direito Penal passa a ser a primeira razão (e não a ultima ratio).
     
      Por não conseguirmos estabelecer diálogos éticos entre as consciências, encarceramos os corpos insubmissos.
     
      Dizem os amantes deste fetiche: menos universidades, mais presídios. Melhor criança trabalhando do que só estudando.  Castigar a criança como faziam nossos avós é mais eficiente que ficar no blá blá blá dos psicologismos. Trabalhos corporais forçados são melhores do que uma prisão de boa qualidade. Uma prisão humanizada será tão boa que compensará o crime ao invés de reprimi-lo. Estas falas ratificam o desejo pelo corpo e por seu suplício.
     
      O suplício vem através da falta de empatia pelos corpos aprisionados. Estes são esquecidos. Ficam depositados e mantidos por um ente invisível: o Estado. Lá sofrem fora das vistas dos demais. Não é falado, mas sabe-se: a finalidade do depósito de corpos humanos nas prisões é providenciar o sofrimento deles.
     
      Estamos desumanizados e desumanizamos.  A cultura do ódio e da intolerância não se esconde mais. A ignorância e a barbárie estão querendo assumir os espaços jurídicos.
     
      Criou-se a falsa crença de que se alguém pratica a violência, a violência maior praticada nas cadeias a impedirá de reincidir no crime. Como se a violência maior impedisse a menor. Faz sentido? Claro que não.
     
      Menos coliseus da Roma clássica e mais escolas. Menos prisões e mais livros. Mais liberdade e menos preconceitos. Mais amor e menos flagelos corporais.
     



quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Platão e o rei coprofílico.



Para se chegar a rei-filósofo o indivíduo precisa de paidéia (educação), pois possuirá a episteme (ciência). Ele chegará à ideia de Bem e aplicará na polis seu conhecimento para garantir uma polis bem conduzida. Este é o homem virtuoso por excelência.

Platão valorizou e desenvolveu a crença de que o homem é dividido em corpo e alma.  Numa analogia contemporânea, é como se nosso corpo fosse um escafandro que transita pelo mundo terreno tendo dentro de si nossa alma. Percebamos as dificuldades que a alma enfrenta, sob o ponto de vista platônico. O invólucro é pesado e incômodo. Vemos as coisas e as pessoas de dentro dele. Não é possível acessarmos outras almas diretamente, mas apenas percebemos outros escafandros encarcerando outras almas. Se o mundo físico fosse o oceano, nossas almas seriam oriundas do céu acima dele. Nossas almas estariam afundadas nas águas à espera de ascender logo para acima delas. Platão diria que as pessoas comuns discutem as águas e os escafandros, sem entender que o papo verdadeiro é o que se refere ao céu acima das águas. O homem comum não sabe que ele não é o oceano nem é seu escafandro, e que a estes não pertence. Sua alma é celestial.
O sábio sabe que um dia o escafandro vai pifar e ficará no fundo do oceano e alma voltará para seu mundo acima dele. É dever do sujeito sábio discutir a alma e os ares acima do mar. É burrice discutir o corpo e suas impressões falíveis. É tolice falar do peso da água e das impressões corporais. Platão nos lembra que a alma está de passagem e logo voltará ao seu mundo verdadeiro. Os prazeres do corpo e suas vicissitudes são efêmeros e devem ser ignorados. O olhar deve se voltar para dentro, para a alma. A verdade está nela. O corpo induz ao erro. Falar do escafandro é esquecer que somos a alma que nele está.

Podemos imaginar o espanto do meu amigo Platão ao ser apresentado para alguém que acredita ser apenas corpo e seus dejetos. E mais, que só pensa nele. Que mede o mundo e as coisas através do corpo.  O filósofo ficaria estupefato ao encontrar alguém que dissesse que o amor é sexo (relação entre corpos apenas). Que a beleza se resume a um corpo desejável para transar. Platão teria um infarto filosófico se um rei dissesse que o conhecimento faz mal ao intelecto. Com certeza cometeria suicídio se este rei falasse de cocô, relações sexuais anais e tamanho de pênis.
Platão acreditava que o governo compete ao sábio, ao rei filósofo. Só este sabe onde está a verdade. Ou melhor, sabe onde não está a verdade: nas coisas corporais. Um reinado sem abstrações ou reflexões seria impensável, abominável demais! Imaginem o AVC que teria Platão ao saber da existência de um rei coprofílico.

Ao avesso da filosofia platônica podemos imaginar o que segue.

Imaginemos uma pessoa que não pense além dos prazeres corporais. Vive para o sexo, para comer e para exercer o poder físico sobre as demais pessoas. Imaginemos um sujeito apaixonado pela pelas aparências.  Não só pela própria aparência, mas uma paixão pela mentira que tem aparência de verdade. Vaidoso e mentiroso. Uma pessoa que pensa só no hoje, eternamente presa no seu dia-a-dia. O passado já esqueceu. O futuro não pode imagina-lo, pois não tem criatividade para isso. Um cidadão-escafandro.  Ele é pesado, míope, vive em si mesmo. Preocupa-se com torturas, ânus, sexo, fezes e  armas. Nesta mediocridade, acredita que os demais humanos são como ele e que se preocupam com as mesmas coisas. Mede as pessoas pela sua própria régua. Síndrome do Johnny Bravo (personagem do Cartoon Network).
Esta pessoa corporeificada ao extremo, não tem bom gosto, finesse ou sutilezas. É bronco, fala mal, é duro e agressivo. O que não entende, odeia. Na verdade, odeia muito. Um ódio físico, corporal. Odeia o que está ao alcance de um murro (mais longe do que isto, não vê). Só percebe proximidades, o bronco. A ciência, a história, as universidades e os livros são por ele mal vistos.
Odeia ter consciência da sua própria pequenez. Então ataca feroz quem o lembra dela. É um ataque por medo. Este cidadão de pedra tem medo do que não compreende. Pobre espiritualmente e vil, afunda nos prazeres corporais. Este sujeito só pode falar de excreções corporais, de sexo sem sentimento e da dor dos corpos. Por isso, quer controlar pela tortura ou pela prisão. Esta pessoa só sabe controlar corpos.  Isto porque para ele os humanos são apenas objetos desalmados. O que é imaterial, intelectual, espiritual e abstrato não é perceptível para este Neandertal. Ele é apenas um animal obediente aos seus desejos corporais e observador das suas excreções.

Agora imaginemos Platão, aquele que desejava um rei filósofo. Coloquemos o grego clássico em frente a este cidadão estúpido, hoje sentado no trono. Arrogante, ignorante, bronco e sem alma. Em volta um séquito de adoradores dos prazeres corporais. Os conselheiros do palácio mal sabem ler. Os juízes do reino não conhecem as leis. As autoridades perseguem os sábios e prendem os filósofos que discutem nas praças.

Ao ver esta cena dantesca, o pobre Platão gritaria: onde está a cicuta que matou Sócrates? Por piedade, onde está a cicuta?

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?