domingo, 8 de abril de 2018

Princípio da presunção de inocência e as decisões do STF sobre a condenação em segunda instância - para pensar o caso Lula



     


      Hobbes, o renomado contratualista, criou a figura do Leviatã. Já que os homens são egoístas e sedentos por prazeres, tendentes à guerra, faz-se necessário o surgimento por contrato da sociedade civil. Segundo este filósofo, a sociedade será regulada por um Estado absoluto. Entendendo que o homem é naturalmente cruel, somente o medo da morte o contém em seus instintos.  O “deus mortal” Estado, seria conduzido por um rei com poderes absolutos, acima da lei.  Evidentemente, nesse contexto, que a discussão da justiça não era relevante para o monarca, muito menos o princípio da inocência. Para evitar um mal maior (dissolução da sociedade civil), o monarca poderia fazer o que quisesse (pois está acima da lei). Então, para manter o contrato social, tudo seria justo. Hoje, alegam, em nome de um mal maior – a corrupção – os togados estão cima da Constituição Federal. Uma espécie de reis hobbesianos. O judiciário seria um Leviatã acima da constituição e dos homens.

     

      Diversamente do ideal de Hobbes, hoje há princípios e garantias constitucionais. Uma proteção da “natural” inocência do cidadão. As pessoas nascem inocentes (sem crime algum) e, inercialmente, deveriam assim permanecer. Assim como não há um pecado original (nasceríamos já pecadores), não há pessoa culpada a priori. Os juristas chamam isso de princípio da inocência. Em consequência, para alguém ser considerado culpado é garantido um julgamento justo, imparcial, com ampla defesa e contraditório. Claro que isso dá trabalho. É demorado e custoso. Não é fácil provar que alguém cometeu um crime de maneira consciente e livre. Há sempre o risco de o estado tentar apressar as coisas. A celeridade a cima de tudo!

     

      A história é farta em exemplos de atuações do Estado em que o sujeito era culpado até provar o contrário. Vimos torturas, bruxas queimadas e pelotões de fuzilamento.  No Brasil tivemos mais de vinte anos de ditadura. A constituição de 1988 foi uma resposta ao excessivo arbítrio do Estado. Especificamente encontramos nela o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". O que não foi uma inovação em termos históricos.  Afinal já tínhamos a Declaração dos Direitos do Homem (1789) e a Declaração Universal dos direitos Humanos (1948), entre outros pactos e acordos internacionais. Hobbes, portanto, perde de dez (ou mais) a zero.  Hobbes perdeu, mas não morreu. Veremos.

     

      Conforme o CPP no Art. 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. O que se harmoniza com o art. 5º da CF/88, art. LVII (já citado). Parece muito claro. Mas a claridade ofusca. Somente os condenados em sentença transitada em julgado, poderão perder a liberdade. Límpido. Mas a questão é profunda. Quando há o trânsito em julgado? Enquanto as provas são possíveis de serem questionadas ou quando a questão é o mérito? Aqui se vê algo que não é apenas aspecto jurídico, mas outra coisa (acima da lei). Afinal, quem decide essa questão? Os aspectos filosóficos? (O que é justo?) Ou os aspectos políticos? (O que valerá para o momento?) Ao decidir-se acima da lei, tornam-se os decisores togados uma espécie de poder constituinte. (ao gosto do Hobbes).

      

      Ao mudar o entendimento sobre a prisão em segunda instância (agora sendo esta possível), o artigo 283 do CPP é (ou era) a melancia que não se ajustava ao andar da carroça do STF.  Ora, então mudou-se a carroça! Ou seja, o STF acatou a votação em que se mantinha o artigo 283 do CPP, mas com nova (carroça) interpretação. Agora ele (o artigo) cabia na carroça. No meu entendimento, não se respeitou o garantismo explicitado por toda a Constituição Federal de 1988. Esse garantismo impede o início da execução da pena antes de esgotados todos os recursos possíveis. Lembremos estes dois artigos da CF/88 (um já citado):

“LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”; e o “LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”



Discutir se o trânsito em julgado ocorre na segunda instância ou no STF, não faz sentido. A resposta já está estabelecida na magna carta! Onde nela? Em todo seu artigo 5º e em vários outros momentos. O “espírito constitucional” aliado às convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, indicam que a inocência permanece até o fim de toda a persecução penal. Portanto, apesar dos adeptos saudosos do Hobbes, somente após esgotadas todas as instâncias, a ultima ratio se estabelece. Lembrando que a expressão corriqueira no direito, ultima ratio, se refere a proteção do direito penal ao que é essencial à vida. Sendo, portanto, a última opção aquela que restringe o bem mais relevante para a vida humana. Nesse caso, a liberdade.

terça-feira, 20 de março de 2018

A Vida Ética segundo Peter Singer




Como havemos de viver?

Peter Singer

Universidade de Princeton



Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que valha a pena dedicarmo-nos, além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa família? Falar de "algo pelo qual viver" tem um certo travo vagamente religioso, mas muitas pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma sensação incomoda de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que conferiria às suas vidas uma importância que de momento lhes falta. E estas pessoas também não têm qualquer compromisso profundo com uma cor política. Ao longo do último século, a luta política ocupou frequentemente o lugar consagrado à religião noutros tempos e culturas. Ninguém que reflita acerca da nossa história recente pode agora acreditar que a política, por si só, bastará para resolver todos os nossos problemas. Mas para que outra coisa poderemos viver? Neste texto, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia, mas tão necessária nas circunstâncias atuais como sempre foi. A resposta é que podemos viver uma vida ética. Ao fazê-lo, passaremos a integrar uma vasta tradição que atravessa culturas. Além disso, descobriremos que viver uma vida ética não constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.

Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há tanto que precisa de ser feito. Quando este livro estava prestes a concluir-se, as tropas das Nações Unidas entraram na Somália numa tentativa de assegurar que os alimentos chegavam às populações famintas. Apesar de esta tentativa ter corrido muito mal, constituiu, pelo menos, um sinal positivo de que as nações ricas estavam preparadas para fazer alguma coisa acerca da fome e do sofrimento em áreas distantes. Podemos tirar as devidas lições deste episódio, de modo a que as tentativas futuras sejam mais bem sucedidas. Talvez estejamos no início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar sentados à frente dos nossos televisores a ver crianças morrer e depois continuar a viver as nossas vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência. Mas não são apenas as grandes crises dramáticas e com honras de noticiário que requerem a nossa atenção: há inúmeras situações, numa escala mais reduzida, que são tão horríveis e evitáveis como as maiores. Por imensa que esta tarefa se nos afigure, trata-se apenas de uma das muitas causas igualmente urgentes às quais se podem dedicar as pessoas que buscam um objetivo digno.

O problema é que a maior parte das pessoas tem somente uma ideia vaguíssima do que poderá ser viver uma vida ética. Compreendem a ética como um sistema de regras que nos proíbem de fazer coisas. Não a entendem como base para pensar acerca do modo como havemos de viver. Essas pessoas levam vidas eminentemente centradas nos seus interesses, não por terem nascido egoístas, mas porque as alternativas parecem inaptas, embaraçosas ou simplesmente inúteis. Não conseguem descortinar um modo de provocar impacto no mundo, e mesmo que conseguissem, para que se incomodariam? Não encarando uma conversão religiosa, não veem nada por que viver que não seja os seus próprios interesses materiais. Mas a possibilidade de viver uma vida ética fornece-nos uma saída para este impasse. Essa possibilidade é o objeto da presente reflexão. Aflorar meramente esta possibilidade será suficiente para desencadear acusações de extrema ingenuidade. Alguns dirão que as pessoas são naturalmente incapazes de ser outra coisa que não egoístas. Os capítulos 4, 5, 6 e 7 abordam esta convicção, de várias formas. Outros afirmarão que, seja qual for a verdade acerca da natureza humana, a sociedade moderna ocidental há muito deixou para trás o ponto em que a argumentação racional ou ética conseguiria alcançar fosse o que fosse. A vida atual pode parecer tão louca que é possível perder a esperança de a melhorar. Um editor que leu o manuscrito deste livro indicou com um gesto a rua de Nova Iorque que se avistava da janela e disse-me que, ali em baixo, os condutores tinham começado a ignorar os semáforos vermelhos só porque sim. Como, dizia-me ele, pode esperar que o seu livro faça qualquer diferença, num mundo cheio de pessoas assim? Na verdade, se o mundo estivesse mesmo cheio de pessoas que cuidassem tão pouco da sua vida - quanto mais das vidas dos outros - nada haveria que se pudesse fazer e provavelmente a nossa espécie não andaria por cá muito mais tempo. Mas a ordem natural da evolução tende a eliminar os que são assim loucos. Pode haver uns quantos em determinada altura e não há dúvida de que as grandes cidades americanas albergam mais do que a sua quota-parte destes indivíduos. Mas o que é verdadeiramente desproporcionado é o destaque que este comportamento tem nos meios de comunicação social e na mente pública. É a velha história daquilo que faz a notícia. Um milhão de pessoas a fazer todos os dias alguma coisa que revele preocupação pelas outras não é notícia; um atirador furtivo num telhado, é. Este livro não ignora a existência de pessoas malévolas, violentas e irracionais, mas foi escrito na convicção de que as restantes não deverão viver as suas vidas como se todos as outras fossem sempre inerentemente, com toda a probabilidade, malévolas, violentas e irracionais.

De qualquer modo, e mesmo que esteja errado e as pessoas loucas sejam muito mais comuns do que creio, que alternativa nos resta? A demanda convencional do interesse próprio é, por razões que aduzirei num capítulo posterior, individual e coletivamente prejudicial. A vida ética constitui a alternativa mais fundamental à demanda convencional do interesse próprio. Decidir viver eticamente é simultaneamente mais ambicioso e mais poderoso do que um compromisso político do tipo tradicional. Viver uma vida eticamente refletida não é uma questão de observar estritamente um conjunto de regras que determinam o que devemos e não devemos fazer. Viver eticamente é refletir de uma forma particular sobre o modo como vivemos e tentar agir de acordo com as conclusões dessa reflexão. Se o argumento deste livro é sólido, não podemos viver uma vida não ética e permanecer indiferentes à quantidade imensa de sofrimento desnecessário que existe no mundo atual. Pode ser ingênuo esperar que um número relativamente pequeno de pessoas que vivem de uma forma refletida, ética, possa revelar-se uma massa crítica capaz de alterar o clima de opinião acerca da natureza do interesse próprio e da sua relação com a ética; mas quando olhamos para o mundo e vemos a confusão que nele grassa, parece valer a pena conceder a essa esperança otimista a melhor hipótese possível de sucesso.

Todos os livros refletem uma experiência pessoal, independentemente do número de camadas de ilustração que a filtram. O meu interesse pelo tema deste livro começou quando era estudante de pós-graduação na Universidade de Melbourne. O tema da minha tese de Mestrado foi "Por que devo ser moral?" A tese analisava esta questão e examinava as respostas a ela dadas pelos filósofos nos últimos dois mil e quinhentos anos. Concluí relutantemente que nenhuma das respostas era completamente satisfatória. Depois, passei vinte e cinco anos a estudar e a ensinar ética e filosofia social em universidades inglesas, norte-americanas e australianas. No início desse período, participei na oposição à guerra no Vietname. Isto forneceu o contexto ao meu primeiro livro: Democracy and Disobedience, acerca da questão ética da desobediência a leis injustas. O meu segundo livro, Libertação Animal, defendia que o tratamento que dispensamos aos animais é eticamente indefensável. Esse livro teve importância no nascimento e crescimento daquele que agora é um movimento mundial. Trabalhei nesse movimento não apenas como filósofo, mas também como membro ativo de grupos empenhados na mudança. Estive envolvido, novamente tanto como filósofo acadêmico como de formas mais quotidianas, numa variedade de causas com uma forte base ética: ajuda aos países em vias de desenvolvimento, apoio a refugiados, legalização da eutanásia voluntária, preservação dos espaços selvagens e problemas ambientais mais gerais. Tudo isto me possibilitou conhecer pessoas que doam o seu tempo, o seu dinheiro e por vezes grande parte das suas vidas privadas a uma causa de base ética; e deu-me um sentido mais profundo daquilo que é tentar viver uma vida ética.

Desde a redação da minha tese de Mestrado, escrevi sobre a questão "Por que agir eticamente?" no capítulo final de Ética Prática e aflorei o tema da ética e do egoísmo em The Expanding Circle. Ao debruçar-me novamente sobre a relação entre ética e interesse próprio, posso agora recorrer a um passado sólido de experiência prática, assim como à investigação e a obras de outros estudiosos. Se me perguntarem por que devemos agir moralmente ou eticamente, poderei dar uma resposta mais ousada e positiva do que aquela que dei na minha tese anterior. Poderei apontar pessoas que escolheram levar uma vida ética e conseguiram ter impacto no mundo. Ao fazê-lo, investiram as suas vidas de um significado que muitas pessoas não creem alguma vez conseguir alcançar. Como resultado, aquelas pessoas consideram que as suas vidas são mais ricas, mais satisfatórias, e mesmo mais empolgantes do que eram antes de elas terem decidido dessa forma.

Peter Singer

Tradução de Tradução de Fátima St. Aubyn

Prefácio de Como Havemos de Viver?, de Peter Singer (Dinalivro, 2005).


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A liberdade de expressão e a "mão invisível" do mercado


Sob o ponto de vista do liberalismo, a liberdade é a ausência de contenção, é o livre fluir
do mercado. A história econômica nos apresenta a expressão Laissez-faire, que simboliza principalmente o ideal da liberdade econômica. No liberalismo, se há algum limite às liberdades, este só é tolerável se vier a favor da manutenção da propriedade privada.

Lendo Stuart Mill encontramos a ideia da “mão invisível do mercado”.

Sob o ponto de vista do capitalismo concorrencial, a "mão invisível do mercado" dá os limites ao próprio mercado, sem impedir a liberdade dos indivíduos. Isso por que no mercado quando todos podem tudo, tendo um poder absoluto, acabam os agentes por se (auto)limitarem. Stuart Mill oferece um exemplo para o entendimento da mão invisível. Imaginemos que queremos comer pão no café da manhã. Para nos satisfazer, o padeiro pode fazer o pão do jeito que quiser e pôr o preço que quiser, pois é livre. O outro padeiro do bairro, também faz do jeito que quer seu pão, e livremente impõe seu preço. Entretanto, o segundo padeiro pode fazê-lo melhor e por um preço menor. Então, um padeiro será limitado pelo outro. Afinal, escolheríamos o pão de melhor qualidade pelo menor preço, ignorando a opção desvantajosa. A lei que rege essa situação é onipresente, implacável e invisível. Simplesmente essa lei existe e se impõe;

Queremos sempre o que é melhor e mais vantajoso e rejeitamos o contrário disso.

No contexto do (neo)liberalismo, como fica a liberdade de expressão? Estaria sujeita também a “mão invisível” da concorrência, os sujeitos que querem livremente se expressar?

Percebamos as seguintes questões sob o ponto de vista da “mão invisível”:

Cada cidadão pode livremente se expressar, sendo limitado apenas pela igual liberdade do outro? Numa sociedade ideal, onde cem por cento das pessoas são cem por cento livres para dizerem o que querem dizer; as pessoas poderiam escolher os melhores argumentos negando os piores? E isso da mesma forma como escolhemos os pães melhores e ignoramos os piores? Podemos discernir os argumentos bons e baratos dos ruins e caros? Seria possível, nessa sociedade ideal, “arruinar” (por não ter consumidores) os produtores de maus argumentos? Sempre a mesma resposta: não!

Numa sociedade utópica de pessoas cem por cento livres para se expressar, haverá o risco dos sujeitos escolherem os “melhores” argumentos somente segundo seus gostos pessoais. Pães e escolhas a gosto do freguês. Então, critérios como coerência, verossimilhança e cientificidade correriam o sério risco de serem preteridos. É um perigo sério. É bem mais fácil o gosto do dia a dia do que o gosto mais refinado. O refinamento exige reflexão, esforço, custo pessoal e intencionalidade clara.

Num mundo de liberdade de expressão absoluta, o alto preço para a qualidade dos argumentos é a reflexão e o cuidado no consumo das verdades ditas.

Na nossa sociedade que assiste o Big Brother e o discute com afinco; é possível a liberdade com qualidade para decidir/escolher as melhores opiniões? Não. A liberdade está viciada. Como o discurso apurado e denso não é palatável de imediato, provavelmente será preterido por discursos mais rasos e fáceis. Só é verdadeiramente livre a pessoa acostumada à reflexão profunda sobre temas complexos. 

Há o risco de acreditar que ser livre para se expressar, é uma espécie de banalização do relativismo niilista.

Num ambiente hipotético de liberdade extrema, as pessoas tenderão (não é uma fatalidade, mas é tendência!) a aceitar as falas desairosas sobre seus desafetos e a rejeitá-las se forem sobre seus amores. Acrescente-se que corriqueiramente as pessoas escolhem o que já conhecem, saborearam e o que já gostam. Saborear gostos diferentes não é fácil. Experimentar sabores indigestos, pior ainda! É preciso esforço.

Portanto, a liberdade total de expressão é um paradoxo num ambiente de livre concorrência das falas.

Há muita oferta de expressões livres nas democracias. A oferta de ideias é tanta que não é possível aferir a qualidade. Se fosse possível, as melhores seriam preferidas e as demais, preteridas. Como não é possível, não funciona a “mão invisível do mercado”. É preciso algo “acima” dessa “mão”.

Podemos ainda imaginar a dificuldade de um consenso mínimo sobre o que é uma expressão de qualidade (boa/má). Sem consensos, escolhas pessoais sempre permanecessem. Sucesso do relativismo, fracasso nas escolhas.

No mundo real do neoliberalismo econômico, as sabotagens na livre concorrência são um fato. Não apenas um risco, mas uma realidade. Fraudes, ilegalidades de toda ordem, monopólios, oligopólios e manipulações fiscais. A concorrência sempre nasce viciada. O desejo de lucro e vantagens são irrefreáveis, de tal forma que invalidam a concorrência leal. Como estamos fazendo um paralelo entre a liberdade concorrencial no âmbito econômico e a "liberdade concorrencial" no direito de expressão, pode-se imaginar que os vícios em ambas as esferas são similares. As pessoas se expressam querendo sempre ganhar o jogo dos argumentos livres. Querem sobrepujar os demais, fazendo prevalecer (por qualquer meio) o que expressam sobre as demais expressões livres. 

Então, é de suma importância a educação, o estímulo à reflexão democrática e a vivência da partilha fraterna. Estes elementos estão hierarquicamente acima do jogo da livre concorrência. Eles têm outra dimensão. São elementos de cunho ético; orientadores, portanto.

Posso afirmar que liberdade extrema sem orientação ética é cativeiro: ficamos presos em nós mesmos. A livre expressão sem contenções éticas, é uma forma de impedir a liberdade para se expressar. A liberdade pura, sem intenção fraterna, sem intenção de partilha, é egoística, é imperialista e é enganosa.

Liberdade de expressão, comunidade e fraternidade são elementos inseparáveis. Este tripé é em tudo diferente do liberalismo clássico e do neoliberalismo. Quanto mais ética é a comunidade que quer se comunicar, mais verdadeiramente livre é. Simples assim.

A livre concorrência absoluta, em qualquer âmbito, impede as liberdades! Paradoxal: são principalmente as limitações éticas que fomentam a fraternidade que possibilita a expressão na forma de diálogo. Por consequência, permitem que sejamos cada vez mais livres, mesmo que nunca em cem por cento.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

O Assédio Moral no Trabalho

                                    


      O atualmente chamado Assédio Moral no trabalho está, aos poucos, sendo discutido não só nos tribunais, mas pela sociedade. Cumpre dizer que é um fenômeno antigo. Surgiu com o advento das fábricas e da figura do assalariado. Tornou-se possível o assédio moral, quando se tornou também possível uma pessoa se sentir superior a outra na luta pela sobrevivência. Superioridade artificial, consentida e autorizada pela sociedade e pelo Direito. Inúmeras vezes, a própria vítima acredita ser natural os maus-tratos e excessos sofridos na empresa.  Mas a sociedade e o Direito evoluem.
    
      O assédio no ambiente laboral se configura por ações ou omissões, intencionais ou não, que causem sofrimento físico ou psicológico ao trabalhador. Para se configurar, é preciso que haja alguma constância (regularidade) nessa prática hostil. O assediado sente o ambiente de trabalho como um espaço que o intimida. Por não poder evitar, acaba por sofrer danos morais, psicológicos ou de saúde. Um exemplo de intimidação não intencional ocorre quando as pessoas trabalham com vendas. Elas podem ser assediadas para que vendam mais. Este assédio não quer o sofrimento pessoal de um trabalhador específico. Quer apenas o atingimento de metas. Apesar de ser um “assédio impessoal”, merece igual repressão.
                             
      Hoje, como um mantra, todos exaltamos repetidamente a importância do respeito à dignidade humana. Esta exaltação é oriunda de um pensamento “politicamente correto”, no sentido de um modismo. Digo modismo porque “falar é fácil, fazer é difícil”. E acrescento: no ambiente competitivo laboral é mais difícil ainda!
    
      O assédio moral é perverso, pois está justificado no contexto da crença nacional na meritocracia. A tese é: os melhores se esforçam (sempre) mais. Entretanto, a exigência anormal de esforços, ou apenas a prática de fazer com o que o outro sofra e perca a competição por postos na hierarquia; é um mal terrível. Seja o assédio horizontal (entre iguais), seja vertical (entre superior e subordinado), é sempre abominável.
    
      Hoje não é mais possível ignorar que todo o ser humano é um ser especial, único, com sua dignidade inviolável. Como consequência, quem pratica o assédio conscientemente, fará em surdina, de maneira maliciosa. Reside aqui a dificuldade de fazer provas.
    
      A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) no artigo XXII nos ensina que: Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Ensina também que todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
    
      É a história tentando justificar a necessidade de uma mudança real de conduta nos ambientes de trabalho.
    
      Mais que o ensinamento da DUDH, atualmente temos como obrigação constitucional o respeito e o cuidado com a dignidade humana e os valores sociais do trabalho (CF, art. 1°, III e IV). Podemos acrescentar o art. 6º da nossa magna carta, quando enfatiza como direitos sociais o trabalho e a segurança. E ainda, no seu artigo 7º - XXVI diz:  seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.
    
      Os maus-tratos é, por similitude, equiparado ao acidente de trabalho e, portanto, deve ser de igual forma evitado. Convém ainda lembrar que o Decreto nº 1.254 de 29 de setembro de 1994, que promulga a Convenção nº 155, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho, afirma no art. 3º na alínea e:  o termo "saúde", com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecção ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho. Cabe ainda o Art. 5º da nossa Constituição, que afirma no inciso V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.
    
      A forma de tratar e entender a relação empregador/empregado, após a Revolução Industrial, mudou tanto que não pode mais ser encarada como sendo a mesma. Embora a realidade desta mudança, é possível encontrar amiúde, empregadores e chefias que tentam continuar no século XVIII e XIX. Daí vem o Assédio Moral.
    
      Contra esse pensamento antiquado, as leis vêm alertando para os inúmeros cuidados com o trabalhador. Nesse sentido, podemos elencar ainda a Consolidação das Leis do Trabalho no artigo art.483:
      O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:
      a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;
      b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo;
      (...)
    
      Impossível não citar os seguintes artigos do CC:
      Artigo 186.  Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
      Art. 187.Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
      Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
    
      O dano a ser “reparado” é, na maioria das vezes, moral. Portanto, imaterial. A reparação em pecúnia tem a pretensão de atenuar, minorar as consequências da lesão espiritual sofrida (quando não ocorrer lesão física, claro). Não há como antecipadamente prever o valor em pecúnia, pois, como já foi dito, o dano, geralmente, ocorre à honra, à intimidade, à imagem, à saúde, à própria dignidade da pessoa humana ou a sua moral. Os valores da reparação não visam apenas a atender às necessidades da vítima. Visam também educar “pelo bolso” os assediadores.
    
      Para não perdemos o sentido histórico que aqui damos, convém lembrar que o fundamento legal que sustenta o direito à dignidade no trabalho, também se fundamenta na Bill of rights de 1689, na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na incisiva Encíclica Rerun Novarum de 1891, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (já citada) e na Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969.
    
      Apesar de todo o atual conhecimento sobre o tema, e dos esclarecimentos históricos sobre o respeito à dignidade do homem laborativo, ainda há inúmeras ocorrências deste tipo de violência.
    
      O terror psicológico imposto ao trabalhador, no contexto atual de escassez de empregos, é insuportável a ele. A vida dele realmente depende do seu trabalho. Aos olhos do Direito do Trabalho, tais excessos são intoleráveis. Entretanto, o assédio no ambiente laboral está longe de desaparecer. Perversamente, quanto mais o trabalho é necessário à sobrevivência e quanto mais é escasso, muito mais o terrorismo psicológico prospera. É a lei da oferta e da procura. Quanto maior a oferta de trabalhadores, maior as exigências para eles se manterem na atividade remunerada.
    
      Se no Romantismo o mal do século era o pessimismo suicida, apatia moral e melancolia difusa; talvez o assédio moral seja o mal du siècle contemporâneo.
    


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O nada saber nada quer nem nada pergunta



O homem se caracteriza pelo existir consciente. Sendo corpo e mente, existir significa permanecer internamente e se projetar no ambiente externo. Nossa pele é mera membrana. Ela nos dá a ilusão de limitar o dentro e o fora de nossa consciência.  Tendemos naturalmente a sair do interior: é inevitável. Uma das maneiras conscientes de se pôr para fora do corpo, é formular perguntas. Toda pergunta leva o Eu para passear fora do corpo.

A qualidade do perguntar (de pôr-se para fora) é diretamente proporcional a história vivencial do sujeito que formula questões. O que vivemos orienta o que queremos saber a mais. O que já sei determina a amplitude do perguntar. Portanto, o que sabemos de antemão permite e (também) limita “o querer saber mais”. Todo o perguntar tem uma pré-condição e uma pré-direção, ou seja, uma orientação condicionada pela vivência do sujeito que propõe perguntas.

O nada saber nada quer nem nada pergunta.

Dependendo das vivências que temos, o perguntar tende ao infinito (em quantidade e qualidade). Em tese, quanto mais eu sei, mais posso perguntar e entender a resposta. O inverso é verdadeiro. Meus estudos (meus interesses e valores) se orientam na área das ciências humanas. Então, pouco sei sobre física quântica. Por consequência, pergunto quase nada sobre ela. E quando pergunto, um tanto das respostas não entendo.

Nossa vida intelectual (interna), quanto mais se amplia, mais busca seus alimentos no exterior.

Pode haver anomalias nesse processo de sair de si para buscar o externo. Isso acontece quando o perguntar busca somente respostas que ratifiquem nosso pré-conhecimento. Há a tentativa de perpetuá-lo, ignorando o que pode contradizê-lo. Nesse caso, saímos de nós na esperança de voltarmos iguais.

Nossos pré-conhecimentos alojam juízos. Estes são valorizados a ponto de orientar “o querer saber mais”. Corremos o risco de ficarmos submissos às informações já tidas como certas e inquestionáveis. Tanto o cientista quanto a pessoa comum, estão sujeitas a este hipertrofismo dos pré-conhecimentos valorizados.

Podemos avaliar nosso interior na tentativa de conhece-lo melhor. Talvez até prepara-lo para sua próxima investida mais livre no mundo exterior. Para isso, é imperioso ao nosso Eu perguntar pelas perguntas, pelas suas pré-orientações.

O perguntar interno (autoquestionamento) é interessante. Algumas dicas de reflexões possíveis:

Por que pergunto o que pergunto?
         Por que quero inspecionar isso e não aquilo?
         Perguntar o que pergunto me traz coisas novas?
                                                                                                           
Questionar a direção das nossas perguntas nos leva ao pré-saber que as determina. O processo tem duas mãos: o que sei determina a pergunta, a pergunta indica o que sei. Sou tanto mais livre para aprender, quanto mais tenho consciência do que internamente me prende.

As perguntas que acrescentam e as que nos contradizem, são as melhores sempre.

Num drástico resumo: as pessoas devem saber pelo menos um pouco para perguntarem bastante. Perguntando bastante saberão muito. Sabendo muito, perguntarão mais...

 O que difere o homem filosófico do homem do senso comum? Sua capacidade de perguntar sobre suas perguntas ampliando a consciência.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

As dificuldades sobre o socialismo – John Stuart Mill (1806 – 1873)




Pretendo fazer uma resenha crítica da parte intitulada As dificuldades do socialismo, da obra Capítulos sobre o socialismo, de autoria do John Stuart Mill. Como metodologia, vou atentar primeiro para os fatos negativos em relação ao socialismo/comunismo. Logo após, apresentarei os contrapontos. Tentarei dispor as posições de Mill de forma a equilibra-las neste texto, como numa balança: desfavoráveis de um lado, favoráveis de outro. Tendo o mesmo “peso”, se anulam. A balança imaginária ficará equilibrada. Farei observações na tentativa de ampliar a compreensão, sem interferir no equilíbrio proposto.

John Stuart Mill viveu num tempo de agitação de ideias em relação a economia e ao “tamanho” do Estado. Podemos compreendê-lo como um liberal, favorável a uma economia de mercado. Entretanto, percebia a situação desfavorável em que viviam os trabalhadores. Compreendeu que havia um problema na distribuição do capital. No capitalismo, a distribuição das suas benesses não ocorria de uma forma justa. Mas não aceitava as ideias revolucionários dos comunistas, pois o perigo da violência e do caos superava as expectativas de sucesso a curto prazo. Desejava uma economia socializada e solidária a ser construída com o passar do tempo sem a necessidade da eliminação do mercado.



Primeiro prato da balança.

Seja socialismo ou comunismo, há uma dificuldade importante: sua implantação. Esta dificuldade está vinculada ao costume das pessoas em relação a propriedade. Ninguém quererá facilmente, deixar o que é seu em nome de uma ideia, de uma proposta que ainda não existe de fato, que sequer foi testada. Portanto, tanto pior será a reação quanto mais rápida for a implantação. O pior cenário é a implantação por uma revolução.  Uma revolução levará a utilização da violência. Passar da propriedade privada dos meios de produção à propriedade coletiva, pode ser algo traumático. Segundo John Stuart Mill: “A primeira (forma de socialismo a ser implantada lentamente) tem também a vantagem de poder ser implantada progressivamente e demonstrar as suas habilidades mediante experimentação. Pode ser experimentada inicialmente numa população selecionada e estendida a outras na medida em que o permitam sua educação e sua cultura. (...) (01)

Não menos importante, é a dificuldade em encontrar, num ambiente comunista ou socialista, indivíduos dispostos a gerir os negócios. Afinal, o dirigente assumiria enorme responsabilidade, entretanto, teria uma remuneração por seus esforços muito similar ou igual aos demais trabalhadores. A moralidade atual, embasada na competição e no mérito, impede que os mais qualificados se apresentem como voluntários para a gerência das associações coletivas. A gratificação de ganho maior para maior responsabilidade, produtividade ou qualificação está ausente no socialismo. Os interesses pessoais não estariam contemplados e, portanto, não haveria motivação suficiente para maior empenho individual. A educação familiar, escolar ou social (capitalistas) não são favoráveis ao desenvolvimento de valores altruístas.

Mesmo que alguém se proponha a gerenciar a produção num espaço socialista, seria bastante difícil tomar as decisões. Estas ocorreriam de forma lenta e sofrível. O poder desta pessoa estaria limitado à votação da decisão por uma assembleia de pessoas de poderes iguais. Buscar o consenso entre pessoas em pé de igualdade, é muito difícil. Requer tempo, paciência e experiência. Afirma Mill: “(...). Evidentemente, sua autoridade seria resultado de eleição pela comunidade, pela qual sua função pode a qualquer momento ser retirada deles; o que tornaria necessária para eles, mesmo que não determinado pela constituição da comunidade, a obtenção de consenso geral dessa comunidade antes de proceder a qualquer alteração do modo estabelecido de conduzir o empreendimento. A dificuldade de persuadir um corpo numeroso a mudar o modo costumeiro de trabalhar, mudança que frequentemente perturba bastante, e o fato de o risco ser muito mais claro em suas mentes do que as vantagens, ensejariam uma grande tendência a manter as coisas como sempre foram. ” (02). São tantas as dificuldades que seria muito mais vantajoso ao trabalhador, rejeitar as posições de comando. As administrações privadas têm, nesse sentido, muito mais facilidades e vantagens sobre as administrações coletivas.


O fato de cada trabalhar ganhar o mesmo ou ter contraprestação similar aos demais, não é algo justo e causará bastante desconforto. Pessoas mais fortes receberão o mesmo quinhão que os mais fracos (que produziram menos). O mesmo acontecerá com o profissional mais qualificado e o menos qualificado. A igualdade não é menos complexa. Numa comunidade, exigir trabalhos iguais para trabalhadores desiguais é problema sério. Segundo o autor: (...) Mas, além disso, ainda é um padrão muito imperfeito de justiça exigir a mesma quantidade de trabalho de todos. As pessoas têm capacidades desiguais para o trabalho, tanto mentais como físicos, e o que pode ser tarefa leve para um é uma carga insuportável para o outro. (...) (03). Sabendo desta dificuldade, os egoístas e preguiçosos, tenderão a tirar proveito disso; trabalhando menos que os outros na esperança de sua retribuição ser igual.

Fica evidente que, para uma convivência saudável na coletividade, é exigido alto grau de consciência da importância dos valores morais que permitam o agir em prol do grupo. A educação assume, portanto, um papel de relevância nesse sentido. O problema está na questão de como serão ensinados os filhos, pois é uma questão muito valorizada pelos pais. Caso alguns destes não desejem o tipo de educação oferecido pela comunidade, não terão outra escolha. Não é fácil aceitar a maioria quando somos discordantes dela. O problema da liberdade individual não fica resolvido. Nas palavras de Mill: “Está aqui uma das mais frutíferas causas de discórdia em qualquer associação. Todos que tivessem opinião ou preferência formada com relação à educação que desejariam para seus próprios filhos, teriam de se valer de sua chance de obtê-la com base na influência que pudessem exercer sobre a decisão conjunta da comunidade” (4). Usar de influência nada mais é que uma corrupção do ideal socialista. Seria uma forma de prevalecer o interesse privado sobre o coletivo, além de corromper a autoridade encarregada.

A preocupação em agir de acordo com os interesses coletivos, não é algo que possa ser aceito facilmente. Ora, a liberdade privada e os interesses familiares são invadidos pelos interesses da coletividade. Não será possível mais agir como indivíduo. As ações pessoais serão limitadas pelas ações permitidas pela maioria. A renúncia pessoal em nome do social é um problema enorme, um empecilho que não pode ser menosprezado. É o predomínio da autoridade pública em detrimento da consciência individual. Literalmente, o autor afirma: (...). Em todas as sociedades, o constrangimento da individualidade pela maioria já é um mal grande e crescente; ele seria ainda maior sob o comunismo, a menos que ofereça aos indivíduos o poder de estabelecer limites a ele pela opção de pertencer a uma comunidade de pessoas com mentalidade semelhante à sua. ” (05)


Até este momento, mostramos apenas o prato da balança em relação ao aspecto negativo do socialismo ou do comunismo; apontados pelo filósofo Mill. Agora, vamos trabalhar o outro prato da balança. Acrescentando os aspectos positivos, pretendemos igualar os “pesos” de ambos os lados, equilibrando a balança. Continuaremos utilizando, por óbvio, o mesmo autor na mesma obra.

Segundo prato da balança


Mill afirma que a implantação abrupta do comunismo acarretará o fracasso da tentativa. Entretanto, será possível tal implantação se ela fosse cautelosa. No socialismo, através de experiências sucessivas em pequenas escalas, a população perceberá a viabilidade e as vantagens de tal sistema. Também, os gestores das associações e cooperativas, com seus erros e acertos, aprenderão a melhor forma de trazer à realidade as ideias socialistas. Portanto, é inegável que a implantação do modelo socialista é viável e vantajosa, mas não pode se realizar rapidamente sob pena de haver caos e derramamento de sangue. A progressiva democratização da gestão dos meios de produção, irá desenvolver a consciência dos trabalhadores. O desenvolvimento de uma consciência social, de uma visão coletiva, é fundamental, e isso não acontece de forma rápida. É preciso boa caminhada para aprender a viver a liberdade socialista, principalmente para pessoas acostumadas à sujeição oriunda da competição capitalista.

No ambiente atual da competição e dos ganhos individuais, o trabalhador só se esforça e se qualifica na medida e proporção das vantagens pessoais que percebe. A esperança de mais ganhos e ascensão profissional é impulso muito forte para a produção crescente deste trabalhador. Mas, há outros valores possíveis, como a honra ou a percepção que o trabalho de cada um é bom para a comunidade, que os frutos do trabalho são para si, mas também para os demais. Tais valores, são em muito superiores aos interesses egoístas. Há motivos eticamente superiores ao ganho individual. A educação habitual não enfoca os valores mais elevados. Uma mudança educacional é muito importante. É imperioso dar mais importância aos interesses coletivos, ao que é bom para a comunidade. Aos poucos, lentamente, é possível ensinar que o trabalho coletivo é muito mais importante e produtivo que o trabalho somente para crescimento individual. Quando trabalhamos para a melhoria das condições de todos, e inclusive para nós próprios, o impulso pessoal será muito mais efetivo. Fica claro que, assim motivado, o trabalhador assumirá qualquer das funções nas cooperativas, até as de gerência. E isso por motivos mais nobres que os ganhos pessoais. Nessas cooperativas, os proletários têm voz e se submetem, por consequência, às suas próprias determinações (a hierarquia é abrandada). O ambiente é democrático e produtivo. De certa forma, todos comandam e são comandados.

A democracia na gerência das cooperativas e associações, tem seu preço. As decisões precisam ser deliberadas e votadas, o que as torna mais complexas. Mas, não necessariamente a complexidade é ruim. Percebamos que numa cooperativa socialista, todos os membros estão motivados por uma moral coletiva, e todos entendem do trabalho. Portanto, colocarão na gerência o melhor deles. Seus votos serão de qualidade nas decisões, pois todos são especialistas no assunto, e têm a convicção que são bem gerenciados, afinal, estes especialistas escolheram a sua gerência. Diz Mill: “Contra isso (a dificuldade das votações), deve se colocar que a escolha feita por pessoas que têm interesse direto no sucesso do empreendimento, conhecimento prático e oportunidade de julgamento pode-se supor que em média resulte em gerentes mais capazes do que os azares do nascimento que hoje determinam quem será o proprietário do capital” (...) (06). Outro fator para querer ser gestor, será o desprazer de não sê-lo e ser comandado por alguém menos preparado. E mais: “mas, em compensação, deve-se afirmar que sob o comunismo o sentimento geral da comunidade, composta de companheiros sob cujos olhos cada pessoa trabalha, seria certamente favorável ao trabalho bom e duro, e desfavorável à preguiça, ao descaso e ao desperdício” (07) Esse espaço cooperativo levará às pessoas a encontrarem a liberdade e a independência, isso de forma responsável em relação aos companheiros; sem violência ou coação. Isto é o mais perto que podemos chegar de uma justiça social.

Pessoas diferentes recebendo igual contraprestação à sua dedicação. Pessoas fracas sendo exigidas como se fossem fortes. Essas questões dadas ao bom gestor, são logo equacionadas. Caso mantenhamos nossa atual mentalidade, ou seja, sermos propensos a trabalharmos somente em proveito próprio, o ideal de uma justiça distributiva na cooperativa socialista, é inviável. Mas, nas palavras de Mill: “Estes inconvenientes pouco seriam sentidos, pelo menos durante algum tempo, em comunidades compostas de pessoas escolhidas, sinceramente desejosas do sucesso da empresa; mas planos para a regeneração da sociedade têm de considerar os seres humanos médios, e não apenas aqueles, mas o grande resíduo das pessoas muito abaixo da média em virtudes pessoais e sociais”. (08) A medida que os trabalhadores forem exercitando um alto padrão ético e intelectual, possíveis injustiças serão minimizadas. O fato de não existir uma justiça cem por cento eficaz, não inviabiliza a visão socialista. Também importa salientar, que a todos pertencem os meios de produção e a divisão do trabalho. Que o produto deste trabalho, será um ato público conforme regras anteriormente estabelecidas (e aceitas) pela comunidade. Algum desequilíbrio será resolvido ou mantido pela própria comunidade.

Mill salienta, sempre que possível, a importância da experiência de uma ética social, ou seja, dos valores sociais. A educação é um dos principais instrumentos. Mas, quem decide quais valores a serem ensinados? E os discordantes? Uma dica já foi dada no parágrafo anterior. As regras são discutias e previamente elencadas. Cada pessoa falará livremente de suas discordâncias. Portanto, cidadãos iguais discorreriam sobre seus ideais. Mesmo sendo impossível a unanimidade, o consenso (mesmo não absoluto) traria a concórdia e aceitação crítica. O diálogo livre entre iguais, convence da importância de um acordo a ser seguido. Em uma comunidade bem constituída, todos são ganhadores com o sucesso das outras pessoas; o mesmo vale para a discussão sobre a educação.

A prevalência do social sobre o individual, de fato, interfere nas vidas privadas. Então é possível dizer que o espaço individual se dissolve no coletivo? Evidentemente que não. Mill é um filósofo muito preocupado com a liberdade. A consciência individual aparece e brilha nas discussões sobre o espaço público e no espaço público. O sujeito crítico, livre, num ambiente de iguais, portanto, democrático, expõe sua visão particular e a submete às demais visões. Cada indivíduo não se deixa invadir, mas se convence do que é melhor para todos. Aceita livremente o que foi decidido, pois sabe que ninguém tem má fé e todos querem o bem da comunidade. Mill reconhece que, no socialismo ou no comunismo, não há uma concórdia celestial e plena. A realidade é sempre perturbada, pois as individualidades não se perdem. Evidentemente que estas discórdias não são as mesmas das sociedades capitalistas. Elas continuam a existir; mesmo que sejam em função da reputação, reconhecimento ou poder pessoal. Nunca deixaremos de ser humanos e, por consequência, sujeitos conflitantes. É saudável que haja posições conflitantes, pois, o conflito é da natureza da democracia, mas principalmente, da natureza humana. As pessoas nunca deixarão de pensarem por elas mesmas.



01) Capítulos sobre o socialismo. John Stuart Mill. 1ª edição, São Paulo, Editora Fundação  Abramo. 2001. Página 91
02) Idem. Página 96.
03) Idem. Página 100
04) Idem. Página 102
05) Idem. Página 103.
06) Idem. Página 96
07) Idem. Página 98.
08) Idem. Página 101

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?