O tema religião é bem complexo. De certa forma, é mexer em
um vespeiro. Assim como quando o assunto é a política, os espíritos se inflamam.
Com certeza, aproximei intencionalmente
religião e política. Religiões e políticas se imiscuem com as paixões
humanas, suas crenças e esperanças.
Desde que a
humanidade nos seus primórdios teve consciência de si mesma, percebeu-se diferente
das demais coisas do mundo. Percebeu que a sua existência é temporária. Entendeu
a sua própria morte. A consciência destas
realidades fez nascer a espiritualidade, a esperança e as crenças.
Acredito que foi um choque quando percebemos que íamos necessariamente
morrer e que as coisas aconteciam indiferentes aos nossos desejos. A consciência humana surgiu destas
impotências: a nossa morte, nossa extrema fragilidade e insignificância. A espiritualidade
acredito que tenha surgido quando percebemos que estamos no mundo e não somos o
mundo. Não nos confundimos com a materialidade. Possuímos algo a mais. Podemos
criar, pensar, planejar e transformar o mundo. Parece tranquilo que, por
consequência, tenhamos algo que é imaterial, diferente das coisas do mundo
terreno. A espiritualidade vem do fato que podemos ver o mundo de uma distância
diferente das demais criaturas.
Se além disto vem de Deus, deuses ou Orixás deixo em
aberto.
Percebamos que sem a percepção que vamos morrer em
determinado tempo, sem que possamos idealizar nosso fim, sem que comuniquemos esta
experiência a alguém e, principalmente, se não nos percebêssemos diferentes das
demais coisas, não seria possível a espiritualidade.
Entretanto, vivemos totalmente submersos no mundo humano,
cultural e instrumental. Tudo é tornado ferramenta para obtermos algo e assim
nos comportamos como regra. São raras as exceções em que nos relacionamos sem
este aspecto instrumental. Como exemplo de exceção temos a arte. O enlevo artístico é um valor em si mesmo. Mas, somos homo faber como regra. A espiritualidade
é uma experiência que, excepcionalmente, quer transcender isso: a nossa
vocação em manipular tudo para obter algo.
A cultura, a política, a ciência e a economia são a água do
nosso aquário. No qual somos os peixinhos. A espiritualidade
(que é diferente da água) para se relacionar com os peixinhos, tem que conviver
com a água. E se molha. Não sai ilesa. Não há como pular a materialidade para
irmos diretos ao transcendental. Por
isto surgem as superstições e as religiões. Elas inexoravelmente se misturam ao
meio material, a água. Esta se interpõe e dificulta a expressão da espiritualidade.
A superstição é um subproduto dela. É crendice. Extingue a
razão. Ou uma ou outra (fé X ciência).
Então vem o medo e a ameaça. Criam-se
rituais estranhos. A superstição passa a
ser um instrumento a serviço de algo ou de alguém. Se queres uma graça faça isto ou aquilo. O supersticioso
mata a sua espiritualidade ao acreditar que seus rituais tem repercussão no
espiritual. Creem que manipulam o invisível, que terão um lugar especial em
algum lugar. A superstição se torna meio para um fim, normalmente a dominação
de grandes grupos de pessoas incautas.
A religião também é a expressão materializada da
espiritualidade. Geralmente mais complexa que a superstição, mas sofre dos
mesmos males. Tem normas de conduta específicas, rituais específicos, punições
(aqui ou lá) e hierarquia. O fiel crê no messias “X” e pronto Não raro, entre religiões,
há o ódio e a perseguição. Em cada religião há seus preconceitos, seus estigmas
e a imposição de seus dogmas. Aqui vemos, novamente, a espiritualidade rebaixada
a instrumento para algo. As religiões
são logo cooptadas por facções, políticos e empreendimentos econômicos.
A espiritualidade é livre e é comum a todos. Espiritualidade
como valorização do espirito (humano para uns, transcendental para outros)
sobre a matéria. Mas sempre passará pelas águas da materialidade. A espiritualidade
pura é uma utopia. O que há de real é as
pessoas refletindo sobre o aspecto imaterial que envolve tudo. A imaterialidade
está em todo o lugar. Nas obras de arte é a beleza. Nos comportamentos é o
respeito à dignidade humana. No sexo, o carinho, o afeto e talvez o amor. Nos
nascimentos é a experiência da maternidade. Mesmo na guerra, percebemos a
abnegação dos socorristas e daqueles que sem pensar em si salvam alguém da morte.
A espiritualidade está em tudo. Mas, ao
mesmo tempo, ao passar pelas águas do aquário existencial e material, perdem
sua visibilidade e logo tende a ser instrumentalizada.
Muitos entendem a espiritualidade como coisa divina. Outros
tantos entendem como expressão da humanidade do humano (mesmo que não acreditem
num mundo após a morte). Tanto faz. A espiritualidade existe sim. Do poeta aos
profissionais da saúde que morrem ao salvar vidas na pandemia. Está aí o
sintoma que prova a existência de algo diferente da matéria, que nos move e nos
anima.
Diferentemente, a religião e a crendice são instrumentos a
serviço de alguém ou de um grupo. Por isto aproximo a religião da política.
Todos os dias vemos exemplos no nosso país de intolerância e indução ao voto.
Vemos o pecado e o diabo exaltados como coisas cotidianas. A irracionalidade
vista como um bem valioso. A ciência vista como um mal. Vemos a extrema direita
sendo extremamente cristã. O diabo está a solta ameaçando a todos os infiéis (a
gosto de cada religião).
Percebamos que as religiões assim como as crendices não só se
imiscuíram com as águas da cultura e da política, mas nelas se afundaram.
Que a espiritualidade triunfe nos afastando da tendência de
tudo virar instrumento para um fim. Tudo, inclusive as pessoas. E qual a finalidade
universal que as elites querem nos impor? Que tudo é para o consumo, para a produção,
para a transformação da natureza e, ao final, para termos lucro. Simples assim.