Hobbes, o
renomado contratualista, criou a figura do Leviatã. Já que os homens são
egoístas e sedentos por prazeres, tendentes à guerra, faz-se necessário o
surgimento por contrato da sociedade civil. Segundo este filósofo, a sociedade será
regulada por um Estado absoluto. Entendendo que o homem é naturalmente cruel,
somente o medo da morte o contém em seus instintos. O “deus mortal” Estado, seria conduzido por
um rei com poderes absolutos, acima da lei.
Evidentemente, nesse contexto, que a discussão da justiça não era
relevante para o monarca, muito menos o princípio da inocência. Para evitar um
mal maior (dissolução da sociedade civil), o monarca poderia fazer o que
quisesse (pois está acima da lei). Então, para manter o contrato social, tudo seria
justo. Hoje, alegam, em nome de um mal maior – a corrupção – os togados estão
cima da Constituição Federal. Uma espécie de reis hobbesianos. O judiciário
seria um Leviatã acima da constituição e dos homens.
Diversamente do
ideal de Hobbes, hoje há princípios e garantias constitucionais. Uma proteção
da “natural” inocência do cidadão. As pessoas nascem inocentes (sem crime
algum) e, inercialmente, deveriam assim permanecer. Assim como não há um pecado
original (nasceríamos já pecadores), não há pessoa culpada a priori. Os
juristas chamam isso de princípio da inocência. Em consequência, para alguém
ser considerado culpado é garantido um julgamento justo, imparcial, com ampla
defesa e contraditório. Claro que isso dá trabalho. É demorado e custoso. Não é
fácil provar que alguém cometeu um crime de maneira consciente e livre. Há
sempre o risco de o estado tentar apressar as coisas. A celeridade a cima de
tudo!
A história é
farta em exemplos de atuações do Estado em que o sujeito era culpado até provar
o contrário. Vimos torturas, bruxas queimadas e pelotões de fuzilamento. No Brasil tivemos mais de vinte anos de
ditadura. A constituição de 1988 foi uma resposta ao excessivo arbítrio do Estado.
Especificamente encontramos nela o inciso LVII do art. 5º da Constituição
Federal de 1988: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória". O que não foi uma inovação em termos
históricos. Afinal já tínhamos a
Declaração dos Direitos do Homem (1789) e a Declaração Universal dos direitos
Humanos (1948), entre outros pactos e acordos internacionais. Hobbes, portanto,
perde de dez (ou mais) a zero. Hobbes
perdeu, mas não morreu. Veremos.
Conforme o CPP
no Art. 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de
sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do
processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. O que se
harmoniza com o art. 5º da CF/88, art. LVII (já citado). Parece muito claro.
Mas a claridade ofusca. Somente os condenados em sentença transitada em
julgado, poderão perder a liberdade. Límpido. Mas a questão é profunda. Quando
há o trânsito em julgado? Enquanto as provas são possíveis de serem
questionadas ou quando a questão é o mérito? Aqui se vê algo que não é apenas aspecto
jurídico, mas outra coisa (acima da lei). Afinal, quem decide essa questão? Os
aspectos filosóficos? (O que é justo?) Ou os aspectos políticos? (O que valerá
para o momento?) Ao decidir-se acima da lei, tornam-se os decisores togados uma
espécie de poder constituinte. (ao gosto do Hobbes).
Ao mudar o
entendimento sobre a prisão em segunda instância (agora sendo esta possível), o
artigo 283 do CPP é (ou era) a melancia que não se ajustava ao andar da carroça
do STF. Ora, então mudou-se a carroça!
Ou seja, o STF acatou a votação em que se mantinha o artigo 283 do CPP, mas com
nova (carroça) interpretação. Agora ele (o artigo) cabia na carroça. No meu
entendimento, não se respeitou o garantismo explicitado por toda a Constituição
Federal de 1988. Esse garantismo impede o início da execução da pena antes de
esgotados todos os recursos possíveis. Lembremos estes dois artigos da CF/88
(um já citado):
“LVII — Ninguém será
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”; e o
“LXI — Ninguém será preso senão
em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime
propriamente militar, definidos em lei.”
Discutir se o trânsito em julgado ocorre na segunda
instância ou no STF, não faz sentido. A resposta já está estabelecida na magna
carta! Onde nela? Em todo seu artigo 5º e em vários outros momentos. O
“espírito constitucional” aliado às convenções internacionais ratificadas pelo
Brasil, indicam que a inocência permanece até o fim de toda a persecução penal.
Portanto, apesar dos adeptos saudosos do Hobbes, somente após esgotadas todas
as instâncias, a ultima ratio se
estabelece. Lembrando que a expressão corriqueira no direito, ultima ratio, se refere a proteção do
direito penal ao que é essencial à vida. Sendo, portanto, a última opção aquela
que restringe o bem mais relevante para a vida humana. Nesse caso, a liberdade.