Como é comum em filmes, já vou avisando: este texto é baseado em fatos reais. Ou seja, tem bastante “inventação” e alguns traços de realidade.
Vivenciei o seguinte caso. Joãozinho (nome fictício, lógico!),
horas antes dos festejos familiares pelo ano novo, percebe que seu carro tem
problemas mecânicos. Não tem como ir aos festejos. Em pleno dia 31 de dezembro,
evidentemente, não encontraria um mecânico facilmente.
Sua família é extremamente burguesa, de valores tradicionais.
Do tipo família acima de tudo. Pátria: ame-a ou deixe-a. Adeptos da boa fé
cristã, cultuam o amor ao próximo (restritamente aos próximos, bem próximos). Realizam
todos os rituais de final de ano: dos abraços, dos desejos de felicidades aos
brindes com espumantes. Uma beleza.
Joãozinho manda a mensagem pelo whatsApp: “Pessoal, não
poderei ir. Meu carro pifou”.
Resposta: “Mecânico?”
Joãozinho: “Impossível em plena noite do dia 31 de
dezembro”.
Resposta: “Ô Mano, dá um jeito aí! O pessoal não quer te
buscar porque não poderão beber, né. Direção e bebida não dá certo!”.
Joãozinho: “Então tá, deixar passar. Nos vemos amanhã ou
quando o carro estiver pronto.”
Resposta: “Não vem chorar depois”
Joãozinho: “Fazer o quê? O carro pifou!”
Resposta: “Tu quem sabe. Feliz ano novo!”
Estou escrevendo e rindo sozinho. Vejam a situação: os
amorosos familiares, todos providos de veículos automotores disponíveis e
funcionais. Todos com habilitação para dirigir. Todos saudáveis e alegres. Todos
amorosos, cristãos e conscientes dos seus deveres com os rituais de final de
ano! Entretanto, foi para eles fácil decidir entre beber ou buscar o familiar
impossibilitado. O desejo de excitar a consciência pelo álcool foi muito mais
importante que os laços familiares.
Os abraços, os beijos e as libações etílicas foram reservados
aos que puderam chegar às festividades. Algo como a meritocracia. Se o carro de
Joãozinho pifou, a culpa é dele. Não fez
a manutenção por que não quis. A culpa ou demérito por parte do Joãozinho,
dispensa todos os familiares de ir buscar o náufrago. Ora, ele mesmo buscou o
naufrágio por sua incúria! Que se afogue! Está por conta própria.
Os que festejavam não se sentiam culpados. Não foram
responsáveis pela desídia de quem não fez a manutenção no seu próprio carro. A
família burguesa é assim, implacável com os incautos.
O amor fraterno é lindo, não?
O conceito tradicional de família é tão cuidadoso em
delimitar o certo e o errado nas relações amorosas! Os corações burgueses são muito
protecionistas dos valores cristãos a ponto de lançarem pedras aos ímpios! Entretanto,
não conseguiu abranger a situação do Joãozinho. A ele foi negado o acesso aos festejos
amorosos e fraternos de ano novo.
É provável que Joãozinho, sozinho com seu espumante, perceba
que a hipocrisia é democrática, não perdoa ninguém.
Feliz 2020!
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