sábado, 16 de setembro de 2023

Declaração de amor e saudades antecipadas

 


É uma relação de longa data. Sinto especial angústia porque não durará muito tempo. Já há consenso que esta relação está fadada ao desaparecimento, apesar de ser uma relação já longeva. A tecnologia digital está tornando obsoleto o papel para impressão de notícias.

 Quando leio o jornal impresso, uma eletricidade quase sensual percorre meus dedos. Talvez porque quando eu era adolescente, quase criança ainda, adorava ler a biografia dos grandes poetas brasileiros, os clássicos, como Castro Alves, Fagundes Varela, Cruz e Souza. Percebi que na época desses poetas, os jornais alimentavam a vida deles. Os impressos davam vida pública aos escritos deles. Eu então, inspirado por tais biografias, sonhava em ser como eles. Para isso desejava escrever para jornais, ter uma coluna opinativa.

Pois é, meu primeiro emprego foi num jornal de Santa Maria! Estudante ainda, eu era humilde vigia nesse jornal. Não estudava jornalismo, mas sim Filosofia. Meu lugar de trabalho era bem longe da redação! Mas logo comecei a escrever, por gentileza do jornalista responsável, pequenos artigos nos espaços destinados ao leitor. Como eu disse, é uma relação antiga.

Sinto um chamado forte para a escrita. Como os antigos adolescentes com seus diários. Sinto que tenho que escrever. Inúmeras vezes nem sei o que escrever, mas o chamado é o mesmo: forte, profundo, obscuro, visceral.  Invejo os escritos nas colunas opinativas dos jornais (ainda) impressos.

Infelizmente a qualidade está sofrível!

Assim como um maestro conduz os violinistas da orquestra, observado em êxtase pela plateia; ao ler o jornal imagino-me escrevendo, regendo palavras para o deleite intelectual dos leitores. Acredito que o enlevo provocado seria o mesmo, o provocado pelo maestro e o provocado pelo escritor que imagino ser.

Sei que minha visão é romântica. Mas se não houvesse um romance nessa relação, ela não seria encantadora e, portanto, não seria merecedora das palavras que estou amorosamente materializando aqui.

Amo as folhas grandes do jornal. Amo seu cheiro específico. Amo seus acertos e deslizes. A história moderna só foi possível pelos jornais, pelos jornalistas e pelos escritores, que despejaram tantas ideias nas pessoas através desse encantador meio de comunicação social. Tenho uma relação poética com o jornal. Entendo-o como algo além de um informativo: é uma manifestação artística.

Escrevo agora na certeza de que logo a tecnologia digital substituirá totalmente o jornal de papel. Talvez amanhã. Então, já declaro meu amor e saudades antecipadas.

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Terraplanistas imutáveis, a veracidade do verdadeiro e as cadeias.

 


Eu fico sempre impressionado com a capacidade que os terraplanistas (e assemelhados) têm de serem irredutíveis. Nada os demove de suas crenças. Alicerçados em opiniões, fortificados pela repetição das mesmas ideias, são imbatíveis na categoria imovíveis.

 

Além de imbroxáveis, são imutáveis.

 

Para manterem a imobilidade, desenvolveram a capacidade de manterem-se nivelados aos sentidos corpóreos: sentem o ambiente exterior, mas se recusam a (re)pensar o que sentem. Quase sem linguagem, sentem, mas não querem simbolizar, idealizar, criticar.  Por isso a terra é plana, pois assim os sentidos diretamente afirmam.  Os imobilistas são juízes implacáveis, condenadores cruéis de quem é diferente. São juízes sem juízos, sem reflexão, sem vocabulário rico. 

 

Muitos tem condições materiais para se desenvolverem, pois estudaram em escolas particulares, são oriundos da classe média. Outros tantos tem curso superior. Não é, portanto, uma relação direta com a escolaridade. Mas com escolhas.

 

Por isso afirmo, escolheram livremente serem limitados. Para isso se esforçam. Precisam esconder que leem quase nada e que não gostam de quem lê. Brigam muito e se ofendem facilmente. Vivem emburrados. Afinal, inteligentados seria impossível!  Odeiam muito e muito são odiados. Apesar destes incômodos, escolheram este jeito de ser no mundo. Eles gostam de serem assim. Até sentem orgulho de serem rudimentares.

 

Para compensar a rudeza de uma vida sem argumentos, violenta, acrítica e gritada, ruidosa e feita de agressões, optam por uma economia mental: conduzem-se sempre pelo que é intelectualmente mais fácil. Ora, agir como seus iguais é mais fácil que inovar. Dizer o já dito é bem mais tranquilo que dizer o novo. Sentir-se parte de um grupo homogêneo é bem mais fácil do que conviver com os grupos diversos, argumentadores e sem medo de não pertencer à massa.

 

Todos sabemos que intelectualmente não é fácil viver entre as diversidades empoderadas. Quando os argumentos valem mais que a força, ou quando não se sustentam na mera repetição, a inteligência e a perspicácia é que fazem a diferença. Lembremos, entre os diferentes, fazer a diferença é coisa muito especial. Não é para qualquer um.

 

Precisamos lembrar que vivemos no século vinte e um. Ora, neste tempo, tudo é múltiplo, relativo e temporário.  Visões que querem ser únicas, monocromáticas e lineares morrem rapidamente, pois a complexidade é a norma da atualidade.  A estabilidade está somente na segurança da liberdade de estarmos abertos ao novo, ao estudo e à leitura. O que não pode mudar é a segurança. 

 

Neste século, século das mudanças tecnológicas e científicas, é o argumento que tem grande valor, portanto, o vocabulário, as figuras de linguagem, a lógica e a capacidade de leitura (de livros e de mundo) são um grande (e vital) capital social. Cada vez mais raro. Veja que este capital exige tempo, preparação, esforço e também escolhas.

 

Somos livres para sermos “imbroxáveis” ou abertos à reflexão e às mudanças. Somos tanto livres quanto responsáveis por nossas escolhas.

 

Nosso mundo humano hoje é complexo. Portanto, exige pensamento complexo e dialético. O pensar deve refletir sobre o que vem pronto pelos sentidos. O que vem materialmente “pronto”, intelectualmente sempre tem múltiplos aspectos. O que eu vejo, o que eu ouço, o que eu experiencio, necessariamente tem nuanças congnoscitivas. Podem ser ilusão ou mentira. Podem ser ciência ou especulação. Podem ser mito ou algo racionalmente defensável.

 

Hoje tudo é fato + versão. A veracidade do verdadeiro está nas sutilezas, na sofisticação dos argumentos e nas inter-relações.

 

Eu diria que a veracidade do verdadeiro é elegante, delicada, intrincada e também forte. Já não basta ser verdadeiro, é preciso demonstrar isso publicamente. Hoje, ser e parecer ser são convergentes.

 

A veracidade da verdade está na ágora e em disputa.

 

Claro que não se disputa que dois mais dois são quatro ou que a terra não é plana (acreditem, ela não é plana). A veracidade destas verdades está nas consequências das relações políticas e éticas que virão delas.

 

Das verdades, a mais verdadeira é aquela que mais contribui para o bem das pessoas.

 

A importância da liberdade de escolha é um fato democrático. Mas o que fazemos com esta liberdade é assunto de todos... e não é tão livre assim! Afinal, é limitada pela imperiosidade do bem comum.

 

Escolher ser imbroxável e imutável tem consequências. Afinal, tudo muda e pode “broxar”, como comprova os arrependidos, os violentados e os que vão em direção às cadeias.

 

O mundo é redondo e gira. Acreditem, ele dá voltas.

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?