segunda-feira, 1 de março de 2021

Usemos a imaginação e depois, se tivermos coragem, retomemos o conceito de justiça.

 



 O tema a ser tratado é o conceito e a prática do conceito de justiça.

 

Pretendo escrever para quem não busca a justiça em algum lugar fora do mundo humano; de um lado. E de outro lado, não escrevo para aqueles que justificarão a justiça como o cumprimento de leis naturais.

 

Vamos do simples ao complexo conforme avançamos no texto.

 

Muitos já disseram que justa é a pessoa que cumpre a lei. Aqui cabe dois questionamentos.

 

a)         Quem garante que a lei é justa? Se injusta, devemos segui-la?

b)         E se a lei não me diz respeito? Por exemplo: a lei que restringe o desmatamento na Amazônia, em relação a quem mora no Rio Grande do Sul. Para o gaúcho esta norma não seria nem justa nem injusta, pois não o atinge diretamente. Da mesma forma, aos despossuídos, a lei que rege os contratos de compra e venda de imóveis não lhes diz respeito.

 

Vamos tornar as coisas mais complexas.

 

Os romanos acreditavam que justo é aquele que tem a vontade firme e constante de dar a cada um o que é seu. Imediatamente questiono: e aquele que nada tem para dar, ou nada quer receber por nada precisar? Lembremo-nos do caso de Diógenes de Sínope. Vivia em Atenas, perambulava pelas ruas e morava em um barril.  Ele acreditava que sua maior virtude era a pobreza extrema.  Como ele daria ou receberia algo para, então, ser julgado como uma pessoa (in)justa? Este conceito se baseia no ter e, portanto, é muito limitado.

 

Nós humanos inventamos a justiça. Criamos os valores que dignificam algumas coisas, desvalorizam outras e ignoram outras tantas. Somos totalmente responsáveis pelos critérios que rotulam de injustos inúmeros irmãos humanos. Quanta responsabilidade!

 

Os grupos sociais criam regras para todos. Estes critérios, no final das contas, são originados por valores morais que os grupos querem perpetuar. Quem não os seguir será punido.

 

Em regra, são os grupos minoritários (e poderosos) que determinam os valores que devem ser perpetuados.

 

Quanto aos menos favorecidos...

 

Alguns poderão assumir o risco de seguir valores diferentes. Poderão se esconder ao praticá-los ou delinquir abertamente. Os desviantes, não podendo agir de acordo com os valores estabelecidos, assumem o risco da transgressão. Transgredir é um risco. Agir em desconformidade com o conceito de justiça é algo bem perigoso.

 

Com certeza, a maioria dos transgressores dos valores sociais, não são criminosos. Mesmo os que cometem crimes, a maioria não os cometeria em condições favoráveis ao seu desenvolvimento pessoal.

 

Avançando nas reflexões...

 

Só os sujeitos livres e conscientes de si podem ser considerados justos ou injustos. As pessoas que agem por coação ou os inconscientes, estão fora destes critérios. Os miseráveis não são livres. Obrigados à miséria não são nem justos nem injustos. Mesmo não tendo nada a perder nem nada ganhando da sociedade, são diariamente coagidos a se manterem onde estão.  Estão tão coagidos e presos à miséria, que não são livres para optar por serem justos ou injustos. Estão em estado de necessidade. Uns mais outros menos.

 

Para sermos justos temos que tratar as pessoas com igualdade. Não uma igualdade matemática, mas uma igualdade equitativa. Quero dizer que, para que a igualdade ocorra, os diferentes devem ser tratados diferentemente. Para quem tem menos dar-se-á mais. Para quem tem mais, cobrar-se-á proporcionalmente mais. Exemplificando melhor: para a mulher trabalhadora há que se proporcionar (mais) direitos que não cabem ao homem trabalhador. É o caso da licença maternidade, por exemplo.

 

Indo um pouco mais além...

 

Uma sociedade que exige justiça de seus membros, há que ser justa sob o ponto de vista da equitatividade. Há que proteger mais os mais vulneráveis. Não poderá fortalecer o forte e enfraquecer o fraco. A injustiça, se for a essência de uma sociedade, impossibilitará a existência fraterna e cooperativa. Até o ponto em que os laços se rompem.

 

Violência ou aquiescência? A violência surge como alternativa viável àqueles que são diariamente injustiçados.

 

A justiça só existe e só faz sentido entre as pessoas que convivem e que se comparam. As pessoas, após avaliarem as relações sociais e suas diferenças, podem entender como vantagem permanecer em sociedade. É esta percepção que faz com que respeitem as normas que distribuem as benesses sociais. Caso contrário, desejariam romper o contrato social. É uma questão de pensar o custo/benefício de se manter em sociedade.

 

A coisa fica feia quando inúmeras pessoas sentem como prejuízo viver dentro das regras (injustas).

 

É o sentimento de justiça que mantém os grupos humanos coesos. Ao revés, a percepção da injustiça divide, faz desconfiar e os liames sociais afrouxam.  

 

Logo, o pensar egocentrado (ou egoístico) abala a coesão social.

 

Há quem possa afirmar que, se os liames se afrouxam, tudo se ajusta quando o Estado forte, armado, disciplinador e ávido por encarceramentos, é chamado a intervir. Então, as discrepâncias desaparecem com o desaparecimento dos discrepantes.  Ora, é justo eliminar os destoantes para que a coesão anômala se perpetue? Então, justo é a justiça do mais forte. Será?

 

Neste texto não me atrevo a definir o que é a justiça. Entretanto, quero defender quem não está sob seu manto protetor. É o Estado quem administra a aplicação do conceito de justiça.

 

Quero chamar a atenção sobre os desprotegidos do Estado, e que dele não podem se afastar. Não podem voltar a um tempo mítico em que viviam na natureza, por sua conta e risco. Para os descontentes mantidos em sociedade, o Estado é um mau gestor das benesses sociais. É um ente estranho e cruel. Criatura ficta que não libera os humildes de suas obrigações, mas exige deles disciplina, silêncio e invisibilidade.

 

Partindo agora para o delírio...

 

Para as mentes liberais que defendem a justiça do mérito (a meritocracia), eu contraponho o valor da necessidade justa de vida digna para todos os cidadãos.  Para as mentes liberais ao extremo, eu contraponho o desafio: deem liberdade aos humildes para romperem com os laços sociais injustos. Que sejam livres das normas sociais que inviabilizam suas vidas. Que possam adotar outras normas de convivência. Normas mais justas, solidárias, socialistas e cooperativas. Para os humildes, é “caro” demais viver sob os rigores da justiça dos cidadãos de bem. Que fiquem livres. Que possam sair do Estado e do seu jugo!

 

Que as elites vivam sozinhas violentando-se entre si, autofágicas.

 

Opa! Sei que delirei. Esta liberdade não existe, é fato. Os humildes estão presos e não podem se livrar da vida em sociedade. Apesar desta impossibilidade, nada impede que imaginemos outra sociedade: justa, equitativa e que dê mais a quem tem menos.

 

Usemos a imaginação. Depois, se tivermos coragem, retomemos a discussão sobre a manutenção do conceito de justiça elaborada pelas elites e pelos cidadãos de bem.

 

Fica a derradeira questão:

 

Qual o preço a pagar por manter o conceito de justiça da atual sociedade? Responde e justifica.

 

 

 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Filosofando sobre o cárcere e o desejo de punição máxima no cumprimento de qualquer pena.

 



 

A questão do cumprimento da pena e seu porquê atravessa os séculos.  Falo em séculos por que na idade antiga (de 4000 a.C. a 3500 a.C.) as pessoas já eram encarceradas. Entretanto, o cárcere era apenas o lugar onde a pessoa era custodiada. O cárcere era a antessala do cumprimento da pena.  Neste período histórico, a pergunta pelo objetivo do cárcere tinha uma resposta simples: objetivava guardar o sujeito que provavelmente delinquiu, assegurando o cumprimento da futura pena.

 

A prisão e a pena eram coisas distintas, friso.

 

Na idade moderna (séculos XV e XVIII) a justificativa para o cárcere mudou. A prisão passa a ser a própria pena. Então, a pergunta pelo porquê do encarceramento se complexificou. A sociedade pretende, a partir modernidade, prevenir o crime e a sua reincidência. Há que se cuidar do cidadão antes que delinqua. Também há que se (bem) cuidar dos encarcerados.

 

Se o Estado encarcerou muitos, então falhou na prevenção ao crime. Se muitos reincidem no crime, o Estado passa a responder pela qualidade da política de ressocialização. Por consequência, encarcerar passou a exigir muito do Estado.

 

Como assim? – Pergunta o encarcerador. O criminoso merece cuidados? O bandido não deve sofrer (muito) por seus crimes?

 

Para reduzir a taxa de reincidência é preciso tratar bem as pessoas apenadas. Independentemente do crime. Só o fato de ter a liberdade cerceada, já é uma brutal punição. Não há que acrescentar mais nada. Nem trabalhos forçados, nem tortura, nem maus-tratos.  Ao contrário, a prisão tem que respeitar a dignidade da pessoa encarcerada.

 

O encarcerador pergunta. Então, encarcerar para quê?

 

A pena reprova o mal que o condenado praticou, não a pessoa. Portanto, a sociedade através da pena estatal, terá que humanizar, educar e demonstrar ao criminoso que ele não é um inimigo. Que a sociedade o quer de volta. Para isso, basta a ele retomar o cumprimento das regras sociais. O apenado terá que aprender a confiar que o Estado e a sociedade não são entes que o perseguem, que o querem torturar ou eliminar.

 

Caso o desviante se sinta um inimigo a ser caçado após delinquir, aprenderá a reagir como o inimigo reage na batalha fatal: sem regras, sem moralidade, sempre agressivo. Sem nada a perder, será matar ou morrer.

 

Então, por que ainda prendemos pessoas assumindo o risco de piorá-las?

 

A prisão é a tentativa de aplicar penas adequadas, e que não afetem a dignidade do encarcerado. Somente as penas necessárias e suficientes. Suficientes para que o apenado entenda a reprovação que a sociedade impõe ao delito cometido, e não a pessoa que o cometeu.

 

O encarcerado ao compreender esta reprovação, e percebendo como suportável a pena (se não puder entendê-la como justa), retornará a sociedade sem odiá-la. Caso contrário, se sentirá aviltado, vilipendiado por todos. Reagirá de acordo com estes sentimentos.

 

O crime original do desviante não explica totalmente o que a pessoa se tornou, após todo o desenrolar da aplicação do Direito Penal. Um dia todo o apenado retornará à sociedade, é fato. Ele será o resultado do que a sociedade fez dele antes da pena e depois dela.

 

A sociedade cria a norma a ser cumprida e cria a pena. É legisladora e juíza da sua própria legislação. Também criará o tipo de egresso que formará em suas penitenciárias. Não há um terceiro para culpar!

 

A lei de execução penal, no seu artigo 10, nos informa que o Estado deverá prestar assistência ao sujeito que cumpre pena.  A assistência quer prevenir o crime, e orientar o retorno à convivência em sociedade.

 

Lá no artigo 17 da mesma lei, esta assistência se amplia para a garantia da instrução escolar e para a formação profissional do apenado. No artigo 21-A cobra-se do Estado a existência de bibliotecas, e a obrigação de fornece-las com o acervo em boas condições.

 

Opa! Então a pena não quer somente “penalizar”? Não! Respondo.

 

Quer dizer que não haverá maus-tratos na penitenciária? Quer dizer que o bandido terá assistência médica, odontológica e psicológica? Em tese sim.

 

Caramba!- insiste o extremista. O apenado tem direito a mordomia? Não!

 

O tratamento dispensado ao sujeito desviante, está intimamente relacionado com a necessidade da sua ressocialização. Como a sociedade é quem encarcera as pessoas através do poder do Estado, ela tem que ressocializar também. Terá que arcar com este ônus. Uma coisa é indissociável da outra.

 

A Constituição Federal no seu artigo 5º, inciso XLIX, estabelece que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. O extremista fica irritado com esta limitação.

 

O extremista pergunta atônito: Então, se o sujeito não pode sofrer na cela, prender o meliante para quê? E o castigo disciplinador? E o sofrimento, justamente devido, ao delinquente que tanta dor provocou? Então quer dizer que é melhor a vida dentro da prisão do que fora?  Lá dentro tem tudo de bom. Não há por que o bandido querer sair de lá para ir trabalhar!

 

 

Pois é senhor extremista, são sempre estas as questões que se ouve por aí.

 

O extremista entende que o medo/terror da prisão é melhor que a cuidadosa prevenção!  Ensina que as prisões não ressocializam ninguém, pois são dóceis demais. Afirmam que lá dentro a vida é mansa e ociosa. Que são uma escola do crime.

 

Só não explicam que a matrícula nesta “escola” e o seu currículo não são opcionais. O “aluno” nem pode questionar o que lá está. É jogado nesta realidade e pronto.

 

Os extremistas querem desacreditar o sistema penitenciário. Entretanto, também propõem o aprisionamento em massa.  Dizem, ao mesmo tempo, que as penitenciárias são inúteis e extremamente necessárias.  Um contrassenso entre tantos!

 

Se as prisões não ressocializam, são inúteis. Se inúteis, é um desperdício mantê-las. Poderíamos transformar seus prédios em hospitais ou em escolas de verdade.

 

Se são escolas do crime, não “matriculemos” mais alunos!

 

Se lá a vida é mansa e ociosa, então providenciemos a liberdade e o emprego digno para todos!

 

Se os extremistas concluem que a prisão de nada adianta, adiantará continuar prendendo pessoas?

 

A sociedade faliu ao valorar as prisões, ao invés de apostar no Estado de bem-estar social?

 

Se o Estado de bem-estar social falhou, serão as penitenciárias a solução para se redimir desta falha?

 

As perguntas talvez sejam sempre melhores que as respostas. As respostas passam, as perguntas ficam!

 

Como minha formação original é em filosofia, acredito que só o fato de mantermos as perguntas vivas, já é um bom avanço civilizatório. As certezas tem caráter conservador.

 

A sociedade é a mãe que dá à luz a seus próprios desviantes. Ela cria estes filhos mantendo o neoliberalismo competitivo. Não dá a eles as possibilidades de uma vida digna a todos e por igual. Ora, se deu à luz a bandidos por desídia, que bem cuide deles agora que são adultos!

 

Não é possível renega-los como se fossem filhos de outra pessoa.

 

A sociedade é uma fábrica de desviantes. Então, alguma coisa não está bem com ela.

 

A questão encarcerar para quê, poderia ser substituída por: criamos tantos bandidos por quê?

 

Desconfiemos da pretensão dos extremistas a um Estado altamente punitivista. Passemos a refletir cada vez mais sobre a desigualdade social e a fábrica social de criminosos. Reflitamos sobre as punições inócuas.

 

O Estado mais pune o desviante comum. Mas é justamente o desviante pobre e da periferia, quem discorda da ordem estabelecida de forma militante. Discorda do nosso apego a um projeto econômico que exclui cada vez mais pessoas. E cada vez mais pessoas são presas.

 

Fica a dica.


 

Pauta dos costumes. Vamos falar sobre ela?