terça-feira, 20 de março de 2018

A Vida Ética segundo Peter Singer




Como havemos de viver?

Peter Singer

Universidade de Princeton



Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que valha a pena dedicarmo-nos, além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa família? Falar de "algo pelo qual viver" tem um certo travo vagamente religioso, mas muitas pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma sensação incomoda de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que conferiria às suas vidas uma importância que de momento lhes falta. E estas pessoas também não têm qualquer compromisso profundo com uma cor política. Ao longo do último século, a luta política ocupou frequentemente o lugar consagrado à religião noutros tempos e culturas. Ninguém que reflita acerca da nossa história recente pode agora acreditar que a política, por si só, bastará para resolver todos os nossos problemas. Mas para que outra coisa poderemos viver? Neste texto, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia, mas tão necessária nas circunstâncias atuais como sempre foi. A resposta é que podemos viver uma vida ética. Ao fazê-lo, passaremos a integrar uma vasta tradição que atravessa culturas. Além disso, descobriremos que viver uma vida ética não constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.

Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há tanto que precisa de ser feito. Quando este livro estava prestes a concluir-se, as tropas das Nações Unidas entraram na Somália numa tentativa de assegurar que os alimentos chegavam às populações famintas. Apesar de esta tentativa ter corrido muito mal, constituiu, pelo menos, um sinal positivo de que as nações ricas estavam preparadas para fazer alguma coisa acerca da fome e do sofrimento em áreas distantes. Podemos tirar as devidas lições deste episódio, de modo a que as tentativas futuras sejam mais bem sucedidas. Talvez estejamos no início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar sentados à frente dos nossos televisores a ver crianças morrer e depois continuar a viver as nossas vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência. Mas não são apenas as grandes crises dramáticas e com honras de noticiário que requerem a nossa atenção: há inúmeras situações, numa escala mais reduzida, que são tão horríveis e evitáveis como as maiores. Por imensa que esta tarefa se nos afigure, trata-se apenas de uma das muitas causas igualmente urgentes às quais se podem dedicar as pessoas que buscam um objetivo digno.

O problema é que a maior parte das pessoas tem somente uma ideia vaguíssima do que poderá ser viver uma vida ética. Compreendem a ética como um sistema de regras que nos proíbem de fazer coisas. Não a entendem como base para pensar acerca do modo como havemos de viver. Essas pessoas levam vidas eminentemente centradas nos seus interesses, não por terem nascido egoístas, mas porque as alternativas parecem inaptas, embaraçosas ou simplesmente inúteis. Não conseguem descortinar um modo de provocar impacto no mundo, e mesmo que conseguissem, para que se incomodariam? Não encarando uma conversão religiosa, não veem nada por que viver que não seja os seus próprios interesses materiais. Mas a possibilidade de viver uma vida ética fornece-nos uma saída para este impasse. Essa possibilidade é o objeto da presente reflexão. Aflorar meramente esta possibilidade será suficiente para desencadear acusações de extrema ingenuidade. Alguns dirão que as pessoas são naturalmente incapazes de ser outra coisa que não egoístas. Os capítulos 4, 5, 6 e 7 abordam esta convicção, de várias formas. Outros afirmarão que, seja qual for a verdade acerca da natureza humana, a sociedade moderna ocidental há muito deixou para trás o ponto em que a argumentação racional ou ética conseguiria alcançar fosse o que fosse. A vida atual pode parecer tão louca que é possível perder a esperança de a melhorar. Um editor que leu o manuscrito deste livro indicou com um gesto a rua de Nova Iorque que se avistava da janela e disse-me que, ali em baixo, os condutores tinham começado a ignorar os semáforos vermelhos só porque sim. Como, dizia-me ele, pode esperar que o seu livro faça qualquer diferença, num mundo cheio de pessoas assim? Na verdade, se o mundo estivesse mesmo cheio de pessoas que cuidassem tão pouco da sua vida - quanto mais das vidas dos outros - nada haveria que se pudesse fazer e provavelmente a nossa espécie não andaria por cá muito mais tempo. Mas a ordem natural da evolução tende a eliminar os que são assim loucos. Pode haver uns quantos em determinada altura e não há dúvida de que as grandes cidades americanas albergam mais do que a sua quota-parte destes indivíduos. Mas o que é verdadeiramente desproporcionado é o destaque que este comportamento tem nos meios de comunicação social e na mente pública. É a velha história daquilo que faz a notícia. Um milhão de pessoas a fazer todos os dias alguma coisa que revele preocupação pelas outras não é notícia; um atirador furtivo num telhado, é. Este livro não ignora a existência de pessoas malévolas, violentas e irracionais, mas foi escrito na convicção de que as restantes não deverão viver as suas vidas como se todos as outras fossem sempre inerentemente, com toda a probabilidade, malévolas, violentas e irracionais.

De qualquer modo, e mesmo que esteja errado e as pessoas loucas sejam muito mais comuns do que creio, que alternativa nos resta? A demanda convencional do interesse próprio é, por razões que aduzirei num capítulo posterior, individual e coletivamente prejudicial. A vida ética constitui a alternativa mais fundamental à demanda convencional do interesse próprio. Decidir viver eticamente é simultaneamente mais ambicioso e mais poderoso do que um compromisso político do tipo tradicional. Viver uma vida eticamente refletida não é uma questão de observar estritamente um conjunto de regras que determinam o que devemos e não devemos fazer. Viver eticamente é refletir de uma forma particular sobre o modo como vivemos e tentar agir de acordo com as conclusões dessa reflexão. Se o argumento deste livro é sólido, não podemos viver uma vida não ética e permanecer indiferentes à quantidade imensa de sofrimento desnecessário que existe no mundo atual. Pode ser ingênuo esperar que um número relativamente pequeno de pessoas que vivem de uma forma refletida, ética, possa revelar-se uma massa crítica capaz de alterar o clima de opinião acerca da natureza do interesse próprio e da sua relação com a ética; mas quando olhamos para o mundo e vemos a confusão que nele grassa, parece valer a pena conceder a essa esperança otimista a melhor hipótese possível de sucesso.

Todos os livros refletem uma experiência pessoal, independentemente do número de camadas de ilustração que a filtram. O meu interesse pelo tema deste livro começou quando era estudante de pós-graduação na Universidade de Melbourne. O tema da minha tese de Mestrado foi "Por que devo ser moral?" A tese analisava esta questão e examinava as respostas a ela dadas pelos filósofos nos últimos dois mil e quinhentos anos. Concluí relutantemente que nenhuma das respostas era completamente satisfatória. Depois, passei vinte e cinco anos a estudar e a ensinar ética e filosofia social em universidades inglesas, norte-americanas e australianas. No início desse período, participei na oposição à guerra no Vietname. Isto forneceu o contexto ao meu primeiro livro: Democracy and Disobedience, acerca da questão ética da desobediência a leis injustas. O meu segundo livro, Libertação Animal, defendia que o tratamento que dispensamos aos animais é eticamente indefensável. Esse livro teve importância no nascimento e crescimento daquele que agora é um movimento mundial. Trabalhei nesse movimento não apenas como filósofo, mas também como membro ativo de grupos empenhados na mudança. Estive envolvido, novamente tanto como filósofo acadêmico como de formas mais quotidianas, numa variedade de causas com uma forte base ética: ajuda aos países em vias de desenvolvimento, apoio a refugiados, legalização da eutanásia voluntária, preservação dos espaços selvagens e problemas ambientais mais gerais. Tudo isto me possibilitou conhecer pessoas que doam o seu tempo, o seu dinheiro e por vezes grande parte das suas vidas privadas a uma causa de base ética; e deu-me um sentido mais profundo daquilo que é tentar viver uma vida ética.

Desde a redação da minha tese de Mestrado, escrevi sobre a questão "Por que agir eticamente?" no capítulo final de Ética Prática e aflorei o tema da ética e do egoísmo em The Expanding Circle. Ao debruçar-me novamente sobre a relação entre ética e interesse próprio, posso agora recorrer a um passado sólido de experiência prática, assim como à investigação e a obras de outros estudiosos. Se me perguntarem por que devemos agir moralmente ou eticamente, poderei dar uma resposta mais ousada e positiva do que aquela que dei na minha tese anterior. Poderei apontar pessoas que escolheram levar uma vida ética e conseguiram ter impacto no mundo. Ao fazê-lo, investiram as suas vidas de um significado que muitas pessoas não creem alguma vez conseguir alcançar. Como resultado, aquelas pessoas consideram que as suas vidas são mais ricas, mais satisfatórias, e mesmo mais empolgantes do que eram antes de elas terem decidido dessa forma.

Peter Singer

Tradução de Tradução de Fátima St. Aubyn

Prefácio de Como Havemos de Viver?, de Peter Singer (Dinalivro, 2005).


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A liberdade de expressão e a "mão invisível" do mercado


Sob o ponto de vista do liberalismo, a liberdade é a ausência de contenção, é o livre fluir
do mercado. A história econômica nos apresenta a expressão Laissez-faire, que simboliza principalmente o ideal da liberdade econômica. No liberalismo, se há algum limite às liberdades, este só é tolerável se vier a favor da manutenção da propriedade privada.

Lendo Stuart Mill encontramos a ideia da “mão invisível do mercado”.

Sob o ponto de vista do capitalismo concorrencial, a "mão invisível do mercado" dá os limites ao próprio mercado, sem impedir a liberdade dos indivíduos. Isso por que no mercado quando todos podem tudo, tendo um poder absoluto, acabam os agentes por se (auto)limitarem. Stuart Mill oferece um exemplo para o entendimento da mão invisível. Imaginemos que queremos comer pão no café da manhã. Para nos satisfazer, o padeiro pode fazer o pão do jeito que quiser e pôr o preço que quiser, pois é livre. O outro padeiro do bairro, também faz do jeito que quer seu pão, e livremente impõe seu preço. Entretanto, o segundo padeiro pode fazê-lo melhor e por um preço menor. Então, um padeiro será limitado pelo outro. Afinal, escolheríamos o pão de melhor qualidade pelo menor preço, ignorando a opção desvantajosa. A lei que rege essa situação é onipresente, implacável e invisível. Simplesmente essa lei existe e se impõe;

Queremos sempre o que é melhor e mais vantajoso e rejeitamos o contrário disso.

No contexto do (neo)liberalismo, como fica a liberdade de expressão? Estaria sujeita também a “mão invisível” da concorrência, os sujeitos que querem livremente se expressar?

Percebamos as seguintes questões sob o ponto de vista da “mão invisível”:

Cada cidadão pode livremente se expressar, sendo limitado apenas pela igual liberdade do outro? Numa sociedade ideal, onde cem por cento das pessoas são cem por cento livres para dizerem o que querem dizer; as pessoas poderiam escolher os melhores argumentos negando os piores? E isso da mesma forma como escolhemos os pães melhores e ignoramos os piores? Podemos discernir os argumentos bons e baratos dos ruins e caros? Seria possível, nessa sociedade ideal, “arruinar” (por não ter consumidores) os produtores de maus argumentos? Sempre a mesma resposta: não!

Numa sociedade utópica de pessoas cem por cento livres para se expressar, haverá o risco dos sujeitos escolherem os “melhores” argumentos somente segundo seus gostos pessoais. Pães e escolhas a gosto do freguês. Então, critérios como coerência, verossimilhança e cientificidade correriam o sério risco de serem preteridos. É um perigo sério. É bem mais fácil o gosto do dia a dia do que o gosto mais refinado. O refinamento exige reflexão, esforço, custo pessoal e intencionalidade clara.

Num mundo de liberdade de expressão absoluta, o alto preço para a qualidade dos argumentos é a reflexão e o cuidado no consumo das verdades ditas.

Na nossa sociedade que assiste o Big Brother e o discute com afinco; é possível a liberdade com qualidade para decidir/escolher as melhores opiniões? Não. A liberdade está viciada. Como o discurso apurado e denso não é palatável de imediato, provavelmente será preterido por discursos mais rasos e fáceis. Só é verdadeiramente livre a pessoa acostumada à reflexão profunda sobre temas complexos. 

Há o risco de acreditar que ser livre para se expressar, é uma espécie de banalização do relativismo niilista.

Num ambiente hipotético de liberdade extrema, as pessoas tenderão (não é uma fatalidade, mas é tendência!) a aceitar as falas desairosas sobre seus desafetos e a rejeitá-las se forem sobre seus amores. Acrescente-se que corriqueiramente as pessoas escolhem o que já conhecem, saborearam e o que já gostam. Saborear gostos diferentes não é fácil. Experimentar sabores indigestos, pior ainda! É preciso esforço.

Portanto, a liberdade total de expressão é um paradoxo num ambiente de livre concorrência das falas.

Há muita oferta de expressões livres nas democracias. A oferta de ideias é tanta que não é possível aferir a qualidade. Se fosse possível, as melhores seriam preferidas e as demais, preteridas. Como não é possível, não funciona a “mão invisível do mercado”. É preciso algo “acima” dessa “mão”.

Podemos ainda imaginar a dificuldade de um consenso mínimo sobre o que é uma expressão de qualidade (boa/má). Sem consensos, escolhas pessoais sempre permanecessem. Sucesso do relativismo, fracasso nas escolhas.

No mundo real do neoliberalismo econômico, as sabotagens na livre concorrência são um fato. Não apenas um risco, mas uma realidade. Fraudes, ilegalidades de toda ordem, monopólios, oligopólios e manipulações fiscais. A concorrência sempre nasce viciada. O desejo de lucro e vantagens são irrefreáveis, de tal forma que invalidam a concorrência leal. Como estamos fazendo um paralelo entre a liberdade concorrencial no âmbito econômico e a "liberdade concorrencial" no direito de expressão, pode-se imaginar que os vícios em ambas as esferas são similares. As pessoas se expressam querendo sempre ganhar o jogo dos argumentos livres. Querem sobrepujar os demais, fazendo prevalecer (por qualquer meio) o que expressam sobre as demais expressões livres. 

Então, é de suma importância a educação, o estímulo à reflexão democrática e a vivência da partilha fraterna. Estes elementos estão hierarquicamente acima do jogo da livre concorrência. Eles têm outra dimensão. São elementos de cunho ético; orientadores, portanto.

Posso afirmar que liberdade extrema sem orientação ética é cativeiro: ficamos presos em nós mesmos. A livre expressão sem contenções éticas, é uma forma de impedir a liberdade para se expressar. A liberdade pura, sem intenção fraterna, sem intenção de partilha, é egoística, é imperialista e é enganosa.

Liberdade de expressão, comunidade e fraternidade são elementos inseparáveis. Este tripé é em tudo diferente do liberalismo clássico e do neoliberalismo. Quanto mais ética é a comunidade que quer se comunicar, mais verdadeiramente livre é. Simples assim.

A livre concorrência absoluta, em qualquer âmbito, impede as liberdades! Paradoxal: são principalmente as limitações éticas que fomentam a fraternidade que possibilita a expressão na forma de diálogo. Por consequência, permitem que sejamos cada vez mais livres, mesmo que nunca em cem por cento.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

O Assédio Moral no Trabalho

                                    


      O atualmente chamado Assédio Moral no trabalho está, aos poucos, sendo discutido não só nos tribunais, mas pela sociedade. Cumpre dizer que é um fenômeno antigo. Surgiu com o advento das fábricas e da figura do assalariado. Tornou-se possível o assédio moral, quando se tornou também possível uma pessoa se sentir superior a outra na luta pela sobrevivência. Superioridade artificial, consentida e autorizada pela sociedade e pelo Direito. Inúmeras vezes, a própria vítima acredita ser natural os maus-tratos e excessos sofridos na empresa.  Mas a sociedade e o Direito evoluem.
    
      O assédio no ambiente laboral se configura por ações ou omissões, intencionais ou não, que causem sofrimento físico ou psicológico ao trabalhador. Para se configurar, é preciso que haja alguma constância (regularidade) nessa prática hostil. O assediado sente o ambiente de trabalho como um espaço que o intimida. Por não poder evitar, acaba por sofrer danos morais, psicológicos ou de saúde. Um exemplo de intimidação não intencional ocorre quando as pessoas trabalham com vendas. Elas podem ser assediadas para que vendam mais. Este assédio não quer o sofrimento pessoal de um trabalhador específico. Quer apenas o atingimento de metas. Apesar de ser um “assédio impessoal”, merece igual repressão.
                             
      Hoje, como um mantra, todos exaltamos repetidamente a importância do respeito à dignidade humana. Esta exaltação é oriunda de um pensamento “politicamente correto”, no sentido de um modismo. Digo modismo porque “falar é fácil, fazer é difícil”. E acrescento: no ambiente competitivo laboral é mais difícil ainda!
    
      O assédio moral é perverso, pois está justificado no contexto da crença nacional na meritocracia. A tese é: os melhores se esforçam (sempre) mais. Entretanto, a exigência anormal de esforços, ou apenas a prática de fazer com o que o outro sofra e perca a competição por postos na hierarquia; é um mal terrível. Seja o assédio horizontal (entre iguais), seja vertical (entre superior e subordinado), é sempre abominável.
    
      Hoje não é mais possível ignorar que todo o ser humano é um ser especial, único, com sua dignidade inviolável. Como consequência, quem pratica o assédio conscientemente, fará em surdina, de maneira maliciosa. Reside aqui a dificuldade de fazer provas.
    
      A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) no artigo XXII nos ensina que: Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Ensina também que todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
    
      É a história tentando justificar a necessidade de uma mudança real de conduta nos ambientes de trabalho.
    
      Mais que o ensinamento da DUDH, atualmente temos como obrigação constitucional o respeito e o cuidado com a dignidade humana e os valores sociais do trabalho (CF, art. 1°, III e IV). Podemos acrescentar o art. 6º da nossa magna carta, quando enfatiza como direitos sociais o trabalho e a segurança. E ainda, no seu artigo 7º - XXVI diz:  seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.
    
      Os maus-tratos é, por similitude, equiparado ao acidente de trabalho e, portanto, deve ser de igual forma evitado. Convém ainda lembrar que o Decreto nº 1.254 de 29 de setembro de 1994, que promulga a Convenção nº 155, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho, afirma no art. 3º na alínea e:  o termo "saúde", com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecção ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho. Cabe ainda o Art. 5º da nossa Constituição, que afirma no inciso V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.
    
      A forma de tratar e entender a relação empregador/empregado, após a Revolução Industrial, mudou tanto que não pode mais ser encarada como sendo a mesma. Embora a realidade desta mudança, é possível encontrar amiúde, empregadores e chefias que tentam continuar no século XVIII e XIX. Daí vem o Assédio Moral.
    
      Contra esse pensamento antiquado, as leis vêm alertando para os inúmeros cuidados com o trabalhador. Nesse sentido, podemos elencar ainda a Consolidação das Leis do Trabalho no artigo art.483:
      O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:
      a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;
      b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo;
      (...)
    
      Impossível não citar os seguintes artigos do CC:
      Artigo 186.  Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
      Art. 187.Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
      Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
    
      O dano a ser “reparado” é, na maioria das vezes, moral. Portanto, imaterial. A reparação em pecúnia tem a pretensão de atenuar, minorar as consequências da lesão espiritual sofrida (quando não ocorrer lesão física, claro). Não há como antecipadamente prever o valor em pecúnia, pois, como já foi dito, o dano, geralmente, ocorre à honra, à intimidade, à imagem, à saúde, à própria dignidade da pessoa humana ou a sua moral. Os valores da reparação não visam apenas a atender às necessidades da vítima. Visam também educar “pelo bolso” os assediadores.
    
      Para não perdemos o sentido histórico que aqui damos, convém lembrar que o fundamento legal que sustenta o direito à dignidade no trabalho, também se fundamenta na Bill of rights de 1689, na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na incisiva Encíclica Rerun Novarum de 1891, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (já citada) e na Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969.
    
      Apesar de todo o atual conhecimento sobre o tema, e dos esclarecimentos históricos sobre o respeito à dignidade do homem laborativo, ainda há inúmeras ocorrências deste tipo de violência.
    
      O terror psicológico imposto ao trabalhador, no contexto atual de escassez de empregos, é insuportável a ele. A vida dele realmente depende do seu trabalho. Aos olhos do Direito do Trabalho, tais excessos são intoleráveis. Entretanto, o assédio no ambiente laboral está longe de desaparecer. Perversamente, quanto mais o trabalho é necessário à sobrevivência e quanto mais é escasso, muito mais o terrorismo psicológico prospera. É a lei da oferta e da procura. Quanto maior a oferta de trabalhadores, maior as exigências para eles se manterem na atividade remunerada.
    
      Se no Romantismo o mal do século era o pessimismo suicida, apatia moral e melancolia difusa; talvez o assédio moral seja o mal du siècle contemporâneo.