sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Meu nome é Cepeefe

 

 

 

Para continuar anônimo, pois sou quase invisível para o mundo, vou adotar um nome fantasia, porém, muito realístico. Meu nome será, a partir destes acontecimentos abaixo narrados, Cepeefe.  Vou soletrar para quem não entendeu: CE-PE-EFE, ou CPF.

 

No correr desta narrativa, todos vão entender o porquê deste meu codinome.

 

Pois bem, vou contar minha desdita. Há seis meses fiquei desempregado. No dia fatídico, fiquei atônico com a notícia. Eu tinha minhas contas para pagar, um tratamento dentário em andamento. Nem sei o que dói mais, contas a pagar ou um tratamento de canal.

 

Tudo foi repentino. Eu estava trabalhando quando fui chamado ao RH da empresa. Coisa boa não era. Trabalhador sabe que notícia boa não vem dos “Recursos Humanos”. Se a coisa é boa, o chefe vem e conta. Se é ruim, o tenebroso RH é encarregado da missão.  Pois é, chegou a minha vez de ser chamado.

 

A gerente pediu para eu sentar à sua frente e foi contando para mim que os CNPJs, aparentemente tão fortes, são frágeis. Sucumbem facilmente às oscilações do mercado. Inúmeras vezes têm que cortar na própria pele, ou seja, mandar embora pessoas. É muito traumático, mas os CNPJs precisam sobreviver para continuarem multiplicando seu sucesso. CNPJs saudáveis produzem riquezas e empregos, fazem o país crescer. Na situação atual do país, infelizmente, era o momento de despedir pessoas para manter a saúde financeira do CNPJ meu empregador. A coisa estava feia para todos, não era maldade – conclui ela. Agora era minha vez de contribuir para o sucesso do meu empregador. Eu teria que ir embora, ficaria desempregado.

 

Fiquei chocado! Pedi para falar imediatamente com o senhor Ceenepejota, pessoa de saúde tão delicada, como me explicara tão gentilmente a gerente. Queria dizer a ele que eu precisava para sobreviver daquele emprego, que meu dente doía e o tratamento era mais caro que meu salário do mês. Sim, eu entendia que pessoas eram frágeis e precisavam de ajuda.  Eu estava adoentado na boca, pois doía meu dente. Ficaria adoentado na barriga, sem meu minguado salário para comprar comida. Com certeza o senhor Ceenepejota (que nome estranho, não?) não sabia da minha situação. Ele tinha família como eu tinha, também pagava suas contas. Ele sabia que sem fonte de renda não é possível sobreviver.

 

A gerente sorriu quase rindo ao me contar que CNPJ não é nome de gente, que quer dizer Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica. Então perguntei: Pessoa que não é pessoa? Sim, ela disse. É uma pessoa jurídica, criada por lei, inventada, mas que ao interagir com as coisas ela modifica a realidade. Disse também que eu era, além de mim mesmo, um CPF. Ou seja, eu fazia parte de um Cadastro de Pessoa Física. Era um cadastro de onze dígitos que me identificavam. Entretanto, ao contrário do CNPJ, eu era real e ele não.

 

Concluí que aquele senhor que não existe de fato pode mudar o que de fato existe. Também percebi que pode o CNPJ (inexistente) decidir a vida do CPF (que é bem vivo e existente). O inexistente modifica o existente. Pode isso?

 

Fiquei tão curioso que esqueci por momentos da minha situação. Indaguei mais sobre este senhor fantasma. Essa criatura parece mais uma assombração. Quis saber onde mora, como se sustenta, como faz para viver. A moça foi logo dizendo como quem fala para uma criança de cinco anos, que o CNPJ que me demitia mora ali mesmo na empresa. Mas, também vive em outros lugares, onde tem filiais. Ele vive do trabalho das pessoas, dos empregados. Quanto mais os empregados geram lucro, mais forte ele é. Se está forte, não manda pessoas embora.

 

Caramba! A ficha caiu! O fantasma terrível vive das pessoas! Quanto mais elas o servem, mais forte ele fica. E se não servem bem a ele, manda-as embora. Primeiro suga. Depois, acabado o suco, chuta para fora. Isso não é coisa de vampiro? Nem falei, pois vá que esse vampiro Ceenepejota ouça e me castigue! Quase rezei um Pai nosso na frente da gerente.

 

Tentei resumir para a moça do RH o que eu havia entendido. Disse mais ou menos o seguinte. Eu, Cepeefe, que vivo de verdade e que sofro com minha dor dente, devo servir sempre mais e melhor ao senhor Ceenepejota. Servir a ele, que não vive, que é inventado, que não sofre, que vive da vida dos CPFs.

 

Desta vez a moça riu do que eu falava. Acho que de nervosa. Chamou um colega para continuar a conversa comigo e se afastou.

 

O rapaz foi logo dizendo que a situação era parecida com o que eu disse, mas não era bem assim. Inclusive, aconselhou-me a não dizer as coisas daquela forma. Seria muito difícil encontrar novo emprego se eu falasse assim. Então pensei: Acho que não entendi bem o que ela disse.

 

Moço, só para eu entender melhor.  Eu devo obedecer quem vive da minha vida? Devo aceitar que quem depende dela, mande-me embora quando quiser? Eu tenho que obedecer ao senhor Ceenepejota que não existe? Não é coisa de gente besta acreditar em fantasmas? Não é coisa de gente aloucada obedecer a invencionices? Por que eu, que a partir de agora me chamo Cepeefe, tenho que continuar com minha dor de dente e correr o risco de passar fome, só para agradar a uma miragem?

 

O rapaz explicou que eu não podia me chamar de Cepeefe. Que existem incontáveis CPFs. Eu era apenas mais um entre tantos que estavam neste cadastro! Eu era insignificante. O que valia mesmo eram os CNPJs. Eles mandam no mundo.

 

Entendi que faço parte da família Cepeefe. Que somos muitos. Que apesar de sermos muitos, valemos quase nada.

 

Comparados a nós Cepeefes, a família Ceenepejota é muito pequena. São criaturas que, mesmo imaginárias, se alimentam da maioria. Talvez por isso minha mente continuava a questionar: Por que obedecemos? A minha família é maior e sustenta esta outra família, a dos Ceenepejota!

 

O moço de terno e gravata ficou um tanto nervoso ao me ouvir. Perguntou se eu agora era um revolucionário. Respondi imediatamente que não!

 

Resmunguei baixinho para ele não ouvir: Não há como brigar com o que não existe. Talvez numa sessão espírita e só nela! Para resolver a pendenga, é só não acreditar mais nessa invenção. Sem brigas.

 

Em voz alta apenas disse que eu tinha dor de dente e medo de não ter o que comer.

 

O rapaz olhou para mim de uma forma estranha. Como se devesse decidir se eu estava sendo sincero ou não.

 

Suspirou e trouxe um papel. Nem pensei duas vezes para assinar, pois não gosto de brigas. Fui logo escrevendo no lugar do meu nome: Cepeefe.

 

O moço quase surtou. Ficou uma fera. Ofendeu-me até. Disse que eu era um bobalhão malandro.

 

Eu calmamente fiz então minha última pergunta: Moço, tu és de qual família? Ele, furioso gritou outra pergunta: Que família seu abobado?

 

Humildemente insisti: O senhor é da família Ceenepejota ou da família Cepeefe? Se for da Cepeefe, o senhor é meu irmão ou parente. Parentes se ajudam, não é? Um dia vai chegar a sua vez, não é?

 

Ele ficou calado e saiu da sala. Eu sorri como se tivesse ganho uma batalha.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Coletes contra-argumentativos

 

 


A argumentação é dependente do poder de abstração do ser humano. Também depende do vocabulário e da habilidade de saber trabalhar com a lógica.   

Argumentar torna relativo até o que meus olhos veem, o que minha pele sente. Sob este aspecto, prepondera quem argumenta mais eficazmente. Portanto, ficam em segundo plano os cinco sentidos e todas as testemunhas oculares.

A argumentação é como uma máscara bonita onde o que mais vale é a aparência e a coerência, vale mais que o rosto escondido.

Uma pessoa de má fé, porém boa argumentadora, pode fazer prevalecer sua ideia como se fosse a melhor possibilidade. Assim como uma boa ideia de um bom sujeito, pode ser preterida porque seus argumentos não foram convincentes. Eis a luta!

Nossa sociedade (mediatizada pelas informações contraditórias entre si) é baseada em argumentos.

Entendo aqui argumentar no sentido lato, ou seja, o desenvolvimento de uma discussão baseada em argumentos e contrapontos.

Os milhares de anos necessários para que nos tornássemos civilizados, teve como efeito colateral a criação de armaduras espirituais, verdadeiros coletes contra-argumentativos à prova de balas verbais. É difícil deixar-se penetrar pelas ideias alheias.

Tendemos a argumentar como quem vai esgrimir a espada, e a ouvir os argumentos do oponente como um hoplita pesado.

Qual o contexto desta situação? Detalhemos a seguir.

As informações nas mídias sociais são um carnaval de fantasias feitas de ditos e contraditos! Ainda há loucos que, após o invento da verbosfera virtual, aparecem nus de argumentos.

Nenhum cibernauta de sucesso aparecerá despido de silogismos e desarmado de premissas potentes! Infelizmente, até falácias são usadas como aríetes!.

Quando o sol está muito forte, as roupas e todos os artifícios para o embelezamento perdem sentido e são jogados fora.  O calor insuportável faz com que apareçamos como realmente somos, as maquiagens borram, as roupas caem, pois se tornaram insuportáveis.

Os armaduras contra-argumentativas são como são os cosméticos.

Quando o calor da discussão atinge magnitude, aparece de maneira bem crua o que de fato queremos, pensamos e acreditamos.  Inúmeras vezes, sem as armaduras luzentes e bonitas dos argumentos, delas nos desfazemos e transparecemos. Quantos ogros vemos por aí tentando devorar os incautos virtuais!

É o calor interno que pode prejudicar nossa carapaça verbal.

Admiro os hábeis argumentadores. Gladiadores das discussões. Armados com dardos gramaticais, tendo como lanças a lógica e como flechas o vocabulário.

Vencerá o guerreiro argumentativo mais leve e mais habilidoso.

No mundo civilizado, mundo das informações abstratas e on-line, melhor guerreiro será aquele que esgrimir melhor os argumentos. O homem nu de argumentos é um guerreiro desarmado.

Pobre criatura fadada à morte sem defesa alguma.

“Vontade de mat@r alguém todo mundo já teve”

          Ao ouvir esta afirmação malévola, quase gritei:  Eu nunca quis matar ninguém! Ao ouvir esta infâmia, esta ofensa à humanidade do...