sexta-feira, 9 de maio de 2025

Triste Narciso, incansável buscador da atenção alheia.

 

                                                       Prof. Amilcar Bernardi

 



                      A coisa não está fácil para ninguém. Mas, difícil mesmo está para os narcisos. Acreditem.

 

O mito grego de Narciso nos conta que um jovem se achava tão bonito, mas tão bonito, que se apaixonou por si mesmo. Melhor dizendo, por sua imagem refletida nas águas de um lago. A superfície fazia às vezes de espelho.  Dizem as más línguas que ele morreu afogado, jogando-se nos braços da sua imagem refletida no lago!

 

As pessoas são o lago onde o moço Narciso se vê. Ele precisa de público na medida em que este o aplaude. Ele é o show (perfeito, claro!)

 

Evidentemente que esse mito fala da tragédia que é Narciso amar a si mesmo, tendo como medida o amor das outras pessoas pela imagem dele. Se formos como Narciso, só haverá garantia de que somos belos, se a outra pessoa afirmar que somos. Podemos até imaginar que o moço Narciso só poderia se relacionar com quem dissesse o que ele queria ouvir (como num eco).  Portanto, era extremamente seletivo, relacionando-se somente com quem o refletisse sem distorções (discordâncias). Se formos Narcisos, seremos também seletivos em busca de bons refletores de nós mesmos. Maus refletores de nada servem!

 

O jovem Narciso até a década de 1980 para ser feliz, precisaria de relativamente poucas pessoas. A família e mais alguns amigos. Cercando-se destas pessoas conseguiria convencê-las de sua beleza, podendo, portanto, ver-se refletido nos elogios proferidos por elas.  Falo em beleza, mas poderíamos imaginar que ele se acha inteligente ao extremo ou corajoso acima da média. Poderíamos elencar muitas qualidades  sugeridas por ele para si mesmo. Qualidades para serem confirmadas pelos outros (refletidas).  Estas poucas pessoas poderiam deixar o rapaz Narciso feliz. Seriam poucos espelhos para procurar seu reflexo. Portanto, mais fácil do que se fossem muitas pessoas!

 

Seus esforços para convencer os outros a refletirem/ratificarem suas qualidades, denuncia a dependência que o Narciso tem. Tanto maior o esforço, tanto maior a dependência: o tamanho do esforço é do tamanho da dependência! Ele, em relação a sua autonomia, está fatalmente ferido. O que ele faz tem que ser reluzente para o outro ver. Tem que ser interessante para o outro se interessar. O que o gentil Narciso faz genuinamente para si mesmo? Nada!  Em um primeiro momento, parece que tudo que ele faz é para seu próprio prazer vaidoso. Mas, percebamos, o que ele sempre faz, faz sempre para as outras pessoas. Apenas as sobras dos olhos alheios, alguns reflexos tão desejados, o satisfazem. Pobre criatura, pobre Narciso tão dependente e frágil! Ele precisa viver na luz (sem sombras) para ser mais visto, mais percebido e, por consequência, mais bem refletido, da forma mais nítida que for possível. Uma maldição!

 

E agora, no século XXI, o que pode nosso espetaculoso Narciso? Assim como na obra Ensaio sobre a Cegueira do José Saramago, já há tantos flashs que as luzes mais cegam que permitem reflexos em espelhos. A competição narcísica está terrível. É muita gente com seus celulares aparecendo, buscando reflexos/likes. A coisa é bem complexa. São inúmeras redes sociais e poucas pessoas físicas, palpáveis, para convencer/refletir. Quero dizer que não vemos quem está do outro lado do celular. São criaturas fantasmais, onipresentes, insaciáveis de novidades. O retorno vem em likes e em visualizações. Na verdade, o que percebemos são números. O sucesso é numérico. O espelho ou o lago onde deve se refletir o esperançoso Narciso, são multiplicados por milhares de celulares. Então, a missão de chamar a atenção e receber elogios, é quase impossível. Trágico Narciso que vive para se ver no outro, sem sequer saber quem é esse outro. Esse outro é invisível, é distante, é fantasmagórico e extremamente infiel. Convencer a tantas pessoas virtuais, parece ser um caso para Sísifo, eternamente condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma colina, sem poder impedir que ela role de volta. É uma missão impossível buscar reflexos em tanta gente!




 Penso que melhor é deixar de ter aspirações Narcísicas. Pelo fato de que são irrealizáveis. Viver para os outros é deixar na penumbra o que (já) somos, ou o que de fato queremos ser. Não podemos nos isolar, claro. Sempre fazemos as coisas levando em consideração a opinião alheia. Afinal, não vivemos numa ilha! Entretanto, vivermos na dependência dos reflexos alheios é cruel demais. Vivermos na exposição extrema é deixar de ter vida interna, (auto)reflexiva, autônoma e centrada.

 

Pobre Narciso contemporâneo, está condenado a viver na esperança de ver em plenitude seu próprio reflexo. Vã esperança, nunca verá a si mesmo, sempre verá apenas o outro.