Ser diretor de escola é viver na imprevisibilidade. Um dia
nunca é igual ao outro, sempre desafios diferentes. Minha escola é considerada
a melhor da região. Escola altamente conservadora. O Ensino Médio é conhecido
como aquele que sempre aprova seus alunos nos concursos das universidades mais
concorridas. Escola cara e muito procurada. Uma beleza.
Mas onde há juventude, toda a surpresa é esperável.
Hoje o responsável pela portaria me interfonou avisando: Diretor,
os alunos da turma 301 trouxeram um mendigo para a escola. Foram direto para a
sala de aula com ele. Não houve como impedir.
Eu gelei!
Saí como um desesperado para a sala de aula. Minha gravata
voa aos ares como uma biruta de aeroporto!
O que aprontaram agora? Já espero o pior. A porta está
fechada. Abro. Sala vazia. Lembro que o professor de Filosofia costuma levar os
alunos para o grande salão para apresentarem seus trabalhos. Logo aquele
professor! A criatura é genial, mas há nele uma enorme dificuldade em ser um
professor normal. Custa? É só dar as aulas e pronto. Sem surpresas! A criatura hiperativa está sempre inovando. Na
verdade, sempre leva seus alunos a quase cruzarem os limites das regras! Quase,
quase... Um dia vai dar problemas! Será hoje?
Pensei: Agora sim, chega! Vou pô-lo na rua! Isso só pode ser coisa da
cabeça dele.
Entro pela porta dos fundos do salão. Lá fico calado e
observando. Novamente a juventude dos alunos e a coragem do professor me
surpreendem.
Lá está o mendigo, três alunos e o professor no palco. Na
plateia as turmas de Ensino Médio e seus professores. Como não me avisaram?
O senhor paupérrimo está em pé atrás do púlpito. Ali é um
local nobre onde os palestrantes se posicionam em dias especiais.
Os alunos do palco, naquele momento, estão apresentando o
senhor maltrapilho aos demais. Solenemente falam do currículo do homem. A plateia
está atenta. Um silêncio respeitoso!
Ao mendigo é oferecido água mineral. Conforme fiquei
sabendo depois, água sem gás, a gosto do convidado.
Fico perplexo. Sento lá no fundo. Ouço a apresentação do
pobre sujeito.
O nome do cidadão é Armando Genésio. Mais conhecido por O
velho louco da praça ou Tio Diógenes da praça. Seu endereço? O aluno
seriamente informa: banco central da praça central. Junto à velha e frondosa
árvore de mais de cinquenta anos. O velho louco, melhor dizendo, o
Senhor Genésio está sério, mas tranquilo. As roupas velhas, puídas, a barba
enorme, mal cuidada e os cabelos desgrenhados tornam o cenário mais incomum do
que seria esperado.
O segundo aluno, ao lado do nada ilustre convidado, continua
a expor o currículo do palestrante. É algo mais ou menos assim: Senhor Armando
Genésio, viúvo, sem família, formado, mestrado e doutorado em Filosofia. Desempregado
por prazer, morador de rua há cinco anos. É um desconhecido e antigo militante
na Filosofia.
Estava me recuperando ainda da surpresa quando vi inúmeros
alunos aplaudirem. Enigma! Como isso? O conhecem? Todos estão tão confortáveis
ali.
O terceiro aluno oferece ao convidado miserável outra água
mineral. O senhor aceita com galhardia. O professor da turma se aproxima e
aperta a mão do homem com um enorme sorriso. Agradece a presença do palestrante.
O convidado, polidamente responde: O prazer é meu. Quando precisarem de mim,
é só ir à praça e me chamarem. Não estando ocupado com minhas coisas, atendo imediatamente.
O microfone é ajustado à pequena altura da pessoa. Ele toma
um gole daquela água e começa a falar. Já foi avisando: Podem me interromper
e fazerem perguntas, assim como vocês sempre fazem lá na praça.
Como assim? Já se conhecem? Ai meu Deus! – Internamente eu estou
gritando!
Genésio esclarece quem é aos que não o conhecem. Conta que
já teve família. Morreram em um acidente. Só ele sobreviveu. Na mesma época foi
demitido. Enlouqueceu. Sofreu. Desistiu. Desistiu de que? Da hierarquia. Do
trabalho. Do tempo em minutos. Do ter. Optou pelo ser. Vive de que? Esmolas e
doações em geral. Ganha muitos livros. De quem? Dos alunos da escola e de
alguns professores. Lê Filosofia claro,
mas também história, geografia, sociologia, matemática e física. Tem muito
tempo: o tempo maravilhoso do ócio. Fez e faz amigos. De professores a alunos.
Do vendedor de livros usados, que empresta livros, ao Padre que fornece uma boa
sopa quente. Junto com a sopa, vem a discussão sobre teologia e socialismo. O
Padre é gente boa! – Conclui o filósofo indigente.
Após a breve preleção, o professor de Filosofia da escola pede
ao palestrante que conte da sua relação com os alunos dos terceiros anos. O
convidado pobríssimo sorri e conta mais coisas. Relata que ele fica junto à
árvore da praça e os alunos o cercam. Então fala do cinismo, do estoicismo, do
epicurismo, de política e da ideia do ócio na Grécia clássica. Não raro faz alguns trabalhos escolares junto
com os alunos. Riu e acrescentou: Faço junto com os alunos e não no lugar
deles! Todos riem.
Novamente o professor de Filosofia intervém e pede ao
senhor Genésio que conte como são estas conversas, lembrando que ele foi
chamado justamente por que o tema da aula seria a escola peripatética.
Repentinamente uma jovem, demonstrando intimidade com Genésio,
grita em gracejo: Fala aí Tio Diógenes! Todos riram novamente!
Não entendi! Por que
chamam o senhor Genésio de Diógenes? – Interroguei-me mentalmente.
O professor que também ria explica aos alunos que não
entenderam a piada, àqueles que não têm contato com o mendigo na praça: Diógenes foi uma espécie de mendigo que vivia
nas ruas de Atenas, gente. Dizem até que sua casa era um barril. Ele entendia
que a pobreza era uma espécie de riqueza, uma riqueza moral, uma virtude para
poucos. Acreditava que é preciso ter
apenas o suficiente. Só quem tem o mínimo pode ser sujeito autônomo. Ter além
do suficiente é luxúria, preocupação e insensatez.
O orador paupérrimo também acha graça.
Atendendo a solicitação do professor, fala da sua relação
com os alunos da escola, escola tão cara e de tanto sucesso. Conta que
simplesmente anda pela praça e vários alunos o seguem. No início zombavam dele.
A cada zombaria respondia com um sorriso. Com o tempo e com a confiança,
passaram conversar. Falam sobre a beleza de não depender de um trabalho. Sobre
a liberdade de nada consumir. Discutem a liberdade de estar além (ou aquém?) da
moral tradicional. Afirma que não cobra nada de ninguém. Também ninguém cobra nada dele. Dorme até quando quer. Usa sempre as mesmas
roupas. Come quando tem fome e quando tem comida. Nunca parou de ensinar
Filosofia. Ensina na praça. Mas no seu tempo, do seu jeito. Não ganha salário,
nem dele precisa. Ganha admiração dos jovens, presentes, livros, esmolas e, não
raro, abraços. Vê a si mesmo como um
revolucionário. Não consumir e não ser consumido é um golpe fatal no
liberalismo econômico.
Ele se acha perigoso, pois ensina prostitutas, pobres,
desocupados e alunos de escolas caras. Um perigo!
Sandro, o melhor aluno da escola, levanta e conta orgulhoso
que considera o Tio Diógenes da praça um amigo. Aprende muito com
ele. Com ele não é um aluno, mas um igual que troca ideias. Dá livros novos para o Genésio, só para
trocarem informações. Tudo informal e gostoso. Mas não pensem, diz Sandro, que
o Tio da praça é uma figura fácil! Cobra fundamentos, argumentos e
lógica para evitar sofismas e xinga duramente quem é preconceituoso. O Tio Diógenes
da praça é uma espécie de Sócrates contemporâneo. Inúmeras vezes pergunta e
confunde. Outras vezes, é um Aristóteles exigente e rigoroso. Além do mais, é
um exemplo do que acredita: um misto de cínico, estoico e marxista com toques
de Heráclito. Uma figuraça! Conclui o aluno.
Polidamente o palestrante agradece. Inicia sua palestra. Explica a Grécia Clássica
e a escola peripatética. Comenta os filósofos clássicos citados. Fala de Paulo
Freire como um excelente pensador brasileiro. Audacioso, critica o professor da
escola por não falar de Freire aos alunos. Explica a diferença entre a prisão
das ideologias e as ideologias que libertam. Comenta o fenômeno político da
escola sem partido. Conclui que é, a escola sem partido, reflexo de partidos
que não frequentam as escolas.
Comenta orgulhoso sobre seu poder. Tem nada e por isso pode
tudo. Ele não pode ser demitido nem contratado. Ele não tem dinheiro e por isso
não paga multas. Ninguém o quer como candidato, mas ele pode votar em quem
quiser. Não tem nada, não quer nada, por isso não tem inveja nem sonhos
pomposos. Ninguém o ama, mas ama a todos que quiser amar.
Nesse momento a Cláudia, aluna da turma 302, grita rindo: Eu
te amo! Todos riem.
Continua a palestra o sorridente molambo filosofante.
Lá da praça, invisível para quase todos, posso ver de
verdade as pessoas e suas hipocrisias. Só falo para quem me percebe, pois não quero
forçar minha presença. Percebi que cada pessoa caminha de dentro de suas
gaiolas. Só as pernas saem das grades. Então, por mais que andem, estão sempre
no mesmo lugar, dentro da gaiola. Similares a tartarugas que carregam suas
carapaças internamente inalteráveis. Uma
lástima.
Tranquilamente afirma que despreza os transeuntes
apressados. São consumeristas como hábito, trabalhadores como maldição. Por outro
lado, ama os jovens alunos. Ainda tem asas. As gaiolas são ainda frágeis. É
fácil quebrá-las. Sim, orgulha-se dos dois apelidos que tem: o Velho maluco
da praça e Tio Diógenes da praça.
Disse com um ar de introspecção: Inclusive entendo como
possível a hipótese de estar sofrendo de alguma doença mental. Mas, não quero
pensar nisso. Há tantas coisas republicanas para pensar, que pensar sobre
minhas mazelas soa como egoísmo.
Maria Clara, uma menina do 2º ano, tímida e insegura,
pergunta: Por que o senhor não volta a lecionar e a ganhar dinheiro? Não seria
mais digno?
A aluna causa um certo constrangimento.
O homem impassível sequer pensou para reagir. Como Sócrates
faria, enfrentou a pergunta da menina com outras. Questionou se nós sabíamos o
conceito de dignidade. Maria não responde. Faz-se silêncio. Em socorro à aluna a
professora de literatura arrisca timidamente:
Acredito que dignidade tenha relação com respeito, valor humano,
nobreza...
Genésio agradece a resposta e redargui ainda com outra
pergunta: Cara professora e gentil Maria, qual a relação direta entre emprego,
valor humano e nobreza? Pensemos: o “não
trabalho” quando livremente escolhido é um desvalor humano e um ultraje? Ou é um
ultraje forçar as pessoas ao trabalho? Por que devemos, sob pena de morte por
fome, tornarmo-nos empregados? Lembremos que o conceito contemporâneo de
trabalho, e o amor desenfreado por ele, só nasceu a partir do fim da idade
média, início da moderna. Coisa recente. Portanto, não existiu desde sempre! Pessoas
viviam bem sem trabalharem por uma remuneração! Pensando para frente: quando a
tecnologia absorver a quase totalidade do trabalho humano, a discussão voltará
a ser o ócio criativo. Portanto, o trabalho é o passado. O ócio é o futuro.
Alguns alunos riram e gritaram: É isso aí Tio Diógenes,
incorpora Sócrates!
O professor de filosofia acrescenta: Maria Clara, nosso
convidado trabalha sim, mas não em escola nem por uma remuneração. Só se ensina em escolas? E só por dinheiro?
Não se ensina nos sindicatos, nas aulas nas comunidades, nas associações e, no
caso do Tio Diógenes, na praça? Ou tu entendes que só havendo remuneração há
trabalho?
Tio Diógenes faz mais uma pergunta: Querido professor, o que é uma escola? Se
for um lugar para ensinar e aprender, um lugar de estímulo à cultura e de
desenvolvimento cognitivo, minha praça é uma escola, uma escola pública,
realmente pública!
Eu, diretor, fico assombrado. Percebo o rebuliço que um
desempregado peripatético e cínico pode fazer.
Fico em dúvida. Demito o professor indisciplinado ou o
elogio?
Penso mais um pouco e decido manter o contrato com o
professor amalucado. Vou preparando meu espírito para as famílias conservadoras
e moralmente retilíneas. Elas vão ligar para mim pedindo explicações. Creio que
vou responder simples e direto para explicar aquelas falas: Contra fatos não
há argumentos.