É interessante perguntar o que nos chama atenção quando andamos por aí. Uma moça bonita passa e eu olho. Olho porque a beleza não está totalmente na pessoa, mas muito mais em mim que a identifiquei na moça que passava. Da mesma forma, quando rejeito o tema da conversa que ouço sem querer no transporte coletivo, a rejeição está em mim e não entre as pessoas que dialogam ao meu lado.
Até mesmo a linguagem corporal sofre este efeito: eu a decodifico em função do que está em mim.
Percebo aquele cidadão como uma pessoa arrogante. Assim me informa a sua postura. Está empertigado, ereto e com o peito levemente arqueado para trás. Leio aquele corpo e rotulo a pessoa. Nem percebo que ela está indo a uma farmácia para comprar um remédio para dores nas costas. A dor, não percebida por mim (externa à minha consciência) e que retesa a musculatura do indivíduo, fez-me ler a postura como a de um sujeito arrogante. Projetei minha percepção sem sequer perceber que o fiz
Quando vejo naquele livro um título interessante e vou comprá-lo, nem percebo que o interesse (que faz o título ser “interessante”) é meu, é interior e derivado das minhas vivências sociais, escolhas e cultura. Pouco a ver com o livro (que nem li ainda).
E por falar em cultura, ela sou eu e também é “nós”. Entretanto de todas as experiências culturais das quais faço parte, algumas eu me incluo mais, outras menos, outras tantas apenas tenho conhecimento delas. Aproximo-me daquelas que mais me identifico.
Voltando a moça bonita do primeiro parágrafo. A beleza que eu depositei nela e que fez dela objeto da minha atenção, é oriunda dos meus desejos internos (a maioria inconscientes). Na medida de como me construí (dentro da dialética do “me construí” e “fui construído”) vou vê-la como apenas bonita ou até sexy.
Eu projeto para além de mim o que sou.
Poderíamos chamar este fenômeno de projeção. Este mecanismo ocorre quando percebo como existente “fora” o que está “dentro” de mim. Minhas representações internas encontram um hóspede na vida real.
A emoção, o desejo e o valor que estão em mim, passo a vê-los a minha frente. Geralmente, e é a regra, a projeção é um mecanismo de defesa. “Empurro” para o outro o que não quero ver em mim. Exemplo: o vendedor de carros usados que sempre parte do princípio que será enganado ao comprar estes veículos. É possível que a má-fé que ele vê no cliente esteja mais em si mesmo do que no outro. Ou ainda aquele sujeito que vê corrupção em todo e qualquer ato político. Talvez a corrupção (ou o desejo de usufruir dela) esteja no rol dos seus desejos (que precisa negar). Perceba que no imaginário desta pessoa, quanto mais ela esbraveja contra a corrupção, mais ela imagina que está a salvo de ser corrupta (ou que percebam seu desejo de corrupção).
Outra justificativa para projetar meu interior para fora, é a projeção narcísica. É neste tipo de projeção que este artigo quer focar.
Vejo pessoas bonitas porque são parecidas comigo ou tem a aparência que eu queria ter. Apoio o modo de vida voltado para o consumismo, pois faço o mesmo ou queria poder fazê-lo. O mesmo ocorre com o trabalhador que apoia a redução dos direitos trabalhistas. Ele admira o empregador porque admira o modo de vida dele, e um dia sonha ser empresário também. O conceito da meritocracia cai bem neste último exemplo.
A projeção narcísica, ou seja, quando tenho simpatia pela outra pessoa porque ela é similar a mim, tem efeitos interessantes na política.
Aos narcisos na política, proponho as questões abaixo.
Por que admiro um corrupto? E admiro tanto a ponto de negar a evidência da sua corrupção. Por que apoio tanto quem fala de morte e violência? O que acontece comigo quando brigo com meus familiares para continuar fiel a um sujeito racista? Por que defendo tanto quem eu mesmo não encontro argumentos viáveis para defender? Então brigo, ofendo, agrido por não ter o que dizer. O que esta pessoa nefasta tem que faz com que eu sofra tanto e tantas amizades perca?
Uma boa hipótese é o mecanismo de projeção narcísica. Tudo o que esta pessoa tem de ruim eu admiro. Admiro porque eu sou assim ou por que eu quero ser assim. É por isto que ofender esta pessoa me ofende tanto. Neste caso ou me educo para a política ou procuro terapia.
Caso a hipótese de projeção narcísica seja verdadeira para o meu proceder, a conclusão será obvia: ao ofender o sujeito, ofende a mim mesmo. Afinal, psicologicamente, estamos unidos pelos mesmos valores e aspirações.
Na medida em que a realidade mostra que aquele sujeito (que é meu ideal de conduta) se mostra um monstro, na mesma medida em que eu continuo a defende-lo mesmo assim, tanto mais a hipótese vai se tornando um diagnóstico perfeito.