quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A hipocrisia é democrática. Feliz 2020!








         
Como é comum em filmes, já vou avisando: este texto é baseado em fatos reais. Ou seja, tem bastante “inventação” e alguns traços de realidade.



Vivenciei o seguinte caso. Joãozinho (nome fictício, lógico!), horas antes dos festejos familiares pelo ano novo, percebe que seu carro tem problemas mecânicos. Não tem como ir aos festejos. Em pleno dia 31 de dezembro, evidentemente, não encontraria um mecânico facilmente.



Sua família é extremamente burguesa, de valores tradicionais. Do tipo família acima de tudo. Pátria: ame-a ou deixe-a. Adeptos da boa fé cristã, cultuam o amor ao próximo (restritamente aos próximos, bem próximos). Realizam todos os rituais de final de ano: dos abraços, dos desejos de felicidades aos brindes com espumantes. Uma beleza.



Joãozinho manda a mensagem pelo whatsApp: “Pessoal, não poderei ir. Meu carro pifou”.

Resposta: “Mecânico?”

Joãozinho: “Impossível em plena noite do dia 31 de dezembro”.

Resposta: “Ô Mano, dá um jeito aí! O pessoal não quer te buscar porque não poderão beber, né. Direção e bebida não dá certo!”.

Joãozinho: “Então tá, deixar passar. Nos vemos amanhã ou quando o carro estiver pronto.”

Resposta: “Não vem chorar depois”

Joãozinho: “Fazer o quê? O carro pifou!”

Resposta: “Tu quem sabe. Feliz ano novo!”



Estou escrevendo e rindo sozinho. Vejam a situação: os amorosos familiares, todos providos de veículos automotores disponíveis e funcionais. Todos com habilitação para dirigir. Todos saudáveis e alegres. Todos amorosos, cristãos e conscientes dos seus deveres com os rituais de final de ano! Entretanto, foi para eles fácil decidir entre beber ou buscar o familiar impossibilitado. O desejo de excitar a consciência pelo álcool foi muito mais importante que os laços familiares.



Os abraços, os beijos e as libações etílicas foram reservados aos que puderam chegar às festividades. Algo como a meritocracia. Se o carro de Joãozinho  pifou, a culpa é dele. Não fez a manutenção por que não quis. A culpa ou demérito por parte do Joãozinho, dispensa todos os familiares de ir buscar o náufrago. Ora, ele mesmo buscou o naufrágio por sua incúria! Que se afogue! Está por conta própria.



Os que festejavam não se sentiam culpados. Não foram responsáveis pela desídia de quem não fez a manutenção no seu próprio carro. A família burguesa é assim, implacável com os incautos.



O amor fraterno é lindo, não?



O conceito tradicional de família é tão cuidadoso em delimitar o certo e o errado nas relações amorosas! Os corações burgueses são muito protecionistas dos valores cristãos a ponto de lançarem pedras aos ímpios! Entretanto, não conseguiu abranger a situação do Joãozinho.  A ele foi negado o acesso aos festejos amorosos e fraternos de ano novo.



É provável que Joãozinho, sozinho com seu espumante, perceba que a hipocrisia é democrática, não perdoa ninguém.



Feliz 2020!

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Cavalão X Profeta Gentileza (Comentário ao artigo do Prof. Valdo Barcelos - Jornal Diário de Santa Maria 24/12/2019)




Quem lembra do Profeta gentileza? O nome dele era José Datrino (1917 – 1996). Ele pregava pelas ruas do Rio de Janeiro. Sua crença? A gentileza. Sempre com palavras doces e cheias de amor nos lábios; nas mãos, flores. Em função de acontecimentos traumáticos em sua vida, passou a propagar ideias sobre amor ao próximo. Dizia: “Gentileza gera gentileza”. Simples assim. Alguns achavam que era um louco qualquer, outros, acreditavam ser um poeta das ruas.

Há muito, muito poucos profetas desta ordem. Creio que há mais (falsos) profetas falando de ódios, infernos, perseguições e grosserias. Entre vendilhões do templo e grosseiros profissionais, temos uma sociedade adoentada e violenta. Para reverter este quadro, quantos “Gentilezas” precisaremos?

A gentileza é um comportamento que vem pela aprendizagem. Notadamente pelo exemplo. A amabilidade, a nobreza, a urbanidade é um princípio civilizatório a muito custo adquirido. Basta pensar que este princípio se contrapõe ao caminho mais fácil, que é o da descortesia, da grosseria e da estupidez.  É mais fácil ser antissocial que gentil, é mais fácil agredir que ser empático. O Profeta Gentileza sabia disso e se dedicou ao magistério da amabilidade. Escolheu, portanto, o caminho mais difícil. E tanto o era, que foi taxado de louco. Mais razoável é ser estúpido que gentil – todos acreditam. Cabe apontar que os menos inteligentes na nossa espécie, adoram os caminhos mais fáceis. São como água que escorre por declives mais favoráveis, sempre.

Optar pela gentileza e civilidade é bem complexo. Exige esforço, hábito e empatia. É quase como fazer as águas subirem um morro. Dá trabalho, mas é possível. Entretanto, poucos sabem realizar esta obra de engenharia hidráulica.

O presidente Bolsonaro não conhece o Profeta Gentileza. Afinal, vive de impropérios, exala grosserias e mau humor. Sua estupidez flui pelos declives do poder, do puxa-saquismo e do servilismo. É grosseiro porque pode sê-lo e quer sê-lo. No ambiente melífluo e tóxico do poder, este senhor grosseiro prospera. Em seu entorno, o presidente ogro plantou seus iguais e vive na sombra destes.  Não há inteligência emocional neste governo agressivo e mal-educado.

Vou abrir meu voto para a eleição presidencial seguinte: votarei no Profeta Gentileza.  Bem, como não será possível, ao menos ficarei atento a quem for gentil, amoroso e fraterno. A barbárie só se mantém enquanto existirem bárbaros pra mantê-la.






Quêm lê muito não faz nada. Verdade?