sábado, 23 de maio de 2015

Rerum Novarum

Encíclica Rerum Novarum

A encíclica é um documento feito pelo papa dirigido aos religiosos e aos fiéis. De maneira geral tem cunho de fé, mas também pode se referir ao mundo, aos problemas sociais e econômicos. O Papa Leão XIII utilizou-se da Rerum Novarum para orientar o mundo cristão num momento de grande sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras. O contexto era o da Revolução Industrial, do liberalismo clássico e das péssimas condições de trabalho e dos baixos salários. O pensamento de Karl Marx era já bastante conhecido pelas classes mais esclarecidas.
O Papa manifestou-se, pois, o contexto social assim o exigia. Leão XIII reconhece que as pessoas que trabalham estão numa miséria imerecida, entregues a cobiça. Entretanto, defende a propriedade privada e reage contra o comunismo. A riqueza e seu acúmulo em excesso, assim como o comunismo e o socialismo, corrompem a alma e o corpo.  O corpo é exaurido pelas horas extenuantes de trabalho, e alma corrompida pelo afrouxamento dos costumes, pelo abando das mães trabalhadoras a seus filhos. O comunismo também corrompe a alma insuflando o ódio e a inveja nos pobres, segundo o Papa.
A propriedade, segundo Leão XII, estava já prevista por Deus na Bíblia: Não cobiçarás a mulher do teu próximo. Não desejarás para ti a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo ou serva, nem seu boi, nem seu jumento, nem bem algum que pertença a teu próximo”.
Apesar dessa defesa da propriedade, a Igreja não pode deixar de ver a dolorosa realidade social.  A encíclica afirma que somente o evangelho pode suavizar o conflito. Não é possível aceitar a ideia da luta de classes, mas a concórdia entre elas.  A diferença social é natural, mas o conflito não.  Adverte a  Rerum Novarum que a desigualdade social deve ser algo que venha a favor de todos.  As classes ao unirem-se, como fazem os organismos complexos, proporcionarão o avanço social, a sinergia entre as classes. A classe trabalhadora não deve lesar o patrão e deve ser fiel a ele. Por outro lado, os patrões não podem ver o trabalhador como escravo, inumano, como coisa, como instrumento do lucro. O patrão deve cuidar do pobre para que este viva modestamente, mas com dignidade junto com sua família. Com isso o empregador ajuda ao seu subordinado cuidar das coisas da alma, pois terá o subalterno menos tempo de trabalho e o salário será o suficiente para a esposa cuidar da família.
Ser rico não é pecado, mas o cuidado com a esmola impõe-se. Jesus era o rico supremo e fez-se pobre. O rico deve controlar seus impulsos ao enriquecimento e aos prazeres. Para isso o estado é necessário. Leão XIII opõe-se ao liberalismo. Afirma que o estado tem que propiciar com suas leis a prosperidade pública e o progresso da indústria, do comércio e da agricultura.  O governo observará a sorte do operário e a proteção à sua dignidade. Pobres e ricos são cidadãos. O trabalho deve assegurar habitação, vestuário e que as pessoas possam viver através dele. A riqueza do rico vem do trabalho. O trabalho do pobre vem da riqueza.  O trabalho é a fonte da riqueza das nações. Portanto, uma classe nunca poderá oprimir outra. O estado cuidará da harmonia entre elas.  A lei estatal reprimirá os abusos preocupando-se primeiramente dos fracos.
A greve é desarmonia. A desordem impede o desenvolvimento. É preciso antecipar os motivos. Identificar a causa e saná-la com sabedoria. O papel dos sindicatos e das corporações são muito importantes, úteis e necessários. Não é possível a luta de classes. Por isso o estado deverá dar as garantias mínimas ao trabalhador.
A Rerum Novarum produziu uma corrente favorável às políticas sociais ao incentivar as organizações dos trabalhadores e ao chamar a atenção do estado sobre as condições dos trabalhadores. Aproximou a ordem econômica da moral cristã. O cristianismo reconhece a má distribuição do poder e das riquezas. Portanto, apregoa a encíclica que o salário seja digno e que todos possam encontrar trabalho. O trabalho é mais que o lucro que traz, é a dignidade do trabalhador.


quinta-feira, 21 de maio de 2015

Platão



Platão é uma das maiores figuras de todos os tempos na filosofia. A extraordinária envergadura do gênio filosófico de Platão está em ter tirado a especulação filosófica das incertezas e da ingenuidade dos inícios e, tê-la levado a uma profundidade, maturidade e amplitude assombrosos.
Ele nasceu em Atenas, 427 ªC. Seus pais foram Aristão e Perizona, ambos descendentes das mais nobres famílias da Grécia. Depois de ter recebido uma esmerada educação, seu primeiro contato com a cultura deu-se no terreno da pintura e da poesia. Mas bem depressa começou o estudo da filosofia, frequentando a escola de Crátilo, longínquo discípulo de Heráclito.
Enquanto Platão ouvia as lições de Crátilo já começara a frequentar a escola de Sócrates. Essa foi a maior influência na formação da personalidade de Platão.
Após a condenação de Sócrates, Platão, temendo represálias, deixou Atenas com destino a Mégara. De lá iniciou uma série de viagens, visitando cidades da Grécia e da Itália. Quando voltou a Atenas, fundou sua Academia. É a primeira universidade, onde estava previsto o estudo da matemática e geometria. Forneceu a Grécia uma série de grandes matemáticos e espíritos organizadores e imprimiu a matemática e à geometria um enorme desenvolvimento.

A teoria platônica das ideias:

Platão parece ter-se considerado em condições de resolver todos os problemas filosóficos. Procurava verdadeira causa de tudo. Para encontra-la julgou que devia refugiar-se nas idéias e considerar nelas a realidade das coisas existentes. Para Platão uma coisa é bela porque participa da beleza. Só é verdadeira porque participa da verdade. Esta é a causa do mundo sensível: a sua participação no mundo intelectual. Isto significa que, existindo um mundo sensível, deve existir também o mundo inteligível. Existem bancos porque existe à parte, separado, subsistente, o banco.  Só existem os homens porque existe o homem.
Vê-se assim que, segundo Platão, existem dois mundos, o inteligível e o sensível, e que o primeiro é a causa do segundo.
Para demonstrar a existência do mundo inteligível (mundo das ideias), Platão aduz três argumentos:
Argumento da reminiscência: temos a ideia de verdade, de bondade, de igualdade, a ideia universal de homem, etc. Essas idéias nós não as tiramos da experiência, logo o conhecimento atual é a recordação de uma intuição que se deu em outra vida.

Reminiscência: Segundo Platão, lembrança do que a alma contemplou em uma vida anterior, quando, ao lado dos deuses, tinha a visão direta das idéias; anamnese. 

Argumento do verdadeiro conhecimento: Não existe ciência a não ser do verdadeiro; ora, a verdade exige correspondência entre o conhecimento e a realidade, mas o único conhecimento humano que merece o nome de ciência é o que diz respeito aos conceitos universais. Logo, deve existir um mundo inteligível, universal.
Argumento da contingência: deve existir a ideia necessária e estática para que se explique o nascer e o parecer das coisas: uma coisa é bela não por certa combinação de cores, mas porque é uma aparição terrena do Belo em si; o dois é dois não pela adição de duas unidades, mas pela participação na Dualidade.

As idéias são sempre descritas como realidades simples, incorpóreas, imateriais, não sensíveis, incorruptíveis, eternas, divinas, imutáveis, auto-suficientes, transcendentes. Uma questão de difícil solução para os estudiosos de Platão, é o lugar de Deus no mundo inteligível. Platão acredita nos deuses, mas também na existência de um Ser supremo (Demiurgo), criador e pai do universo, artífice de todas a sorte de objetos. Para o filósofo das idéias, Deus é uma das idéias soberanas.  Para Platão Deus constitui um grande mistério. Ele diz que é difícil encontrar o Autor e Pai do Universo, e, uma vez encontrado, é muito difícil falar nele.
Platão afirma que no princípio existiam, além das idéias (os modelos a reproduzir), o caos (uma matéria informe a plasmar) e o Demiurgo (o artífice soberano). O Demiurgo, observando as idéias, plasma a matéria informe e assim produz o mundo material. Terminada a tarefa, o Demiurgo infunde no mundo material uma alma universal, a fim de conservar a vida do mundo, sem uma contínua intervenção do Demiurgo.

O pensamento político de Platão: [1]

No livro VII de A República, Platão ilustra o seu pensamento como o famoso muito da caverna.   Vamos observar a questão política. As questões que então aparecem são as seguintes: como influenciar os homens que não vêem? Cabe ao sábio ensinar e dirigir. Trata-se da necessidade da ação política, da transformação dos homens e da sociedade, desde que essa ação seja dirigida pelo modelo ideal contemplado.
Platão imagina uma cidade, Callipolis (cidade bela). É uma cidade utópica. É uma cidade que não existe, mas que deve ser modelo.
Partindo do princípio que as pessoas são diferentes e por isso devem ocupar lugares e funções diferentes na sociedade, Platão diz que o Estado, e não a família, deve se ocupar da educação das crianças. Aqui quer uma forma de comunismo em que são eliminadas a propriedade e a família, a fim de evitar a cobiça e os interesses decorrentes dos laços afetivos, além da degenerescência das ligações inadequadas.  O Estado orientaria as formas de eugenia (ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento genético da espécie humana), criaria creches para a educação coletiva das crianças.
A educação estatal deve ser igual para todos até os 20 anos, quando dar-se-ia o primeiro corte identificando as pessoas que, por possuírem alma de bronze, têm a sensibilidade grosseira e por isso devem se dedicar à agricultura, ao artesanato e ao comércio. Dedicariam-se a subsistência da cidade.
Os outros continuariam os estudos por mais 10 anos, até o segundo corte. Aí seriam identificadas as almas de prata, que teriam a virtude da coragem essencial aos guerreiros.  Constituiriam a guarda do estado, seriam os soldados.
Os mais notáveis, que sobrariam desses cortes, teriam a alma de ouro. Seriam instruídos na arte de pensar a dois, ou seja, na arte de dialogar. Estudariam filosofia, que eleva a alma a ter o conhecimento mais puro.
Aos 50 anos, aqueles que passassem com sucesso pela série de provas estariam aptos a serem admitidos no corpo supremo dos magistrados. Estes governariam a cidade, exerceriam o poder, pois apenas eles teriam a ciência da política.  Por serem os mais sábios, também seriam os mais justos, uma vez que justo é aquele que conhece a justiça. E esta é a principal virtude, condição das demais. Só poderá ser chefe quem conhece a ciência política. Por isso a democracia é inadequada, pois desconhece que a igualdade deve se dar apenas na repartição dos bens, mas nunca no igual direito ao poder.  É preciso que os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos.

A ética platônica:

Toda a filosofia de Platão tem uma orientação ética. Ela ensina o homem a desprezar os prazeres, as riquezas e as honras, a renunciar aos bens do corpo e deste mundo e a praticar a virtude. Afinal, no mundo sensível a alma é prisioneira do corpo, é peregrina à procura de um bem superior que perdeu. O homem está na terra de passagem. A alma será julgada de acordo como justiça e a injustiça que cometeu, será julgada em função da temperança e da intemperança, da virtude e do vício. Para ser feliz é necessário dedicar-se a prática da virtude. A virtude consiste no conhecimento, ao passo que o mal consiste na ignorância. A virtude é uma só: o conhecimento da verdade.
Então a realização da natureza humana [2] não consiste em uma disciplina racional da sensibilidade. Mas na supressão da sensibilidade, na separação da alma do corpo. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir racionalmente é filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos sentidos, ao corpo, ao mundo, viver para o espírito, o inteligível, a ideia. Visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste mundo, unida ao corpo e aos sentidos, deve principiar a sua vida moral sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja obstáculo para o segundo. Para que se realize a sabedoria, a contemplação, a filosofia, é necessário que a alma racional domine, daí a virtude da temperança (moderação).


O mito da caverna:


Um grupo de pessoas vive acorrentado numa caverna desde que nasceu, de costas para a entrada. Elas vêem refletida na parede da caverna as sombras do mundo real. Elas acham que as sombras são tudo o que existe. Um dos habitantes se livra das amarras. Fora da caverna, primeiro ele se acostuma com a luz, depois vê a beleza e a vastidão do mundo, com suas cores e contornos. Ao voltar para a caverna para libertar seus companheiros, acaba sendo assassinado, pois não acreditam nele.
O mito da caverna [3] é uma alegoria a respeito das duas principais formas de conhecimento: o mundo sensível, dos fenômenos e o mundo inteligível, das idéias.    Se escapasse da caverna [4] e alcançasse o mundo luminoso da realidade, ficaria livre da ilusão. Mas, estando acostumado às sombras, às ilusões, teria de habituar os olhos à visão do real: primeiro olharia as estrelas da noite, depois as imagens das coisas refletidas nas águas tranquilas, até que pudesse encarar diretamente o sol e enxergar a fonte de toda a luminosidade.





[1] Aranha, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo. Editora Moderna. 1993.


[2] Padovani, Humberto. História da Filosofia. 7a edição. São Paulo, Edições melhoramentos. 1967.
[3] Aranha, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia.. 2a edição. São Paulo. Editora Moderna, 1993.
[4] Cotrin, Gilberto. Fundamentos da Filosofia: ser, saber e fazer. São Paulo. Editora Saraiva. 1997.

Sócrates

SÓCRATES

 
Para os Cristãos, Cristo é um divisor de águas. Existe a história antes de Cristo e a depois de Cristo. Para a filosofia ocidental, temos os pré-socráticos e os pós-socráticos.
             Também Sócrates é um divisor nas águas revoltas da história da filosofia.  Com esse            pensador a preocupação grega passa a ser a ética e a política e não mais a natureza, como nos pré-  socráticos.
Sócrates argumentava de maneira forte contra os que acreditavam saber algo. Acaba confrontando com o Estado, pois sua ironia colidia contra as práticas dos políticos da época. Acaba por ser condenado à morte. A acusação: desrespeitar os deuses e corromper a juventude. Na verdade o que havia contra Sócrates era seu cruel questionamento dos valores da época. Manda-lo à morte foi imortaliza-lo, pois seu desaparecimento naquelas circunstâncias marcou seus contemporâneos. Quando estava em frente aos 501 cidadãos do júri, ironiza os acusadores e pouco se defende. O júri então o condena a morrer bebendo cicuta.
Esse brilhante pensador optou por manter diálogos com as pessoas. Dialogava com qualquer um em qualquer lugar. O ponto alto desses diálogos era a refutação. As afirmações dos interlocutores eram desqualificadas por Sócrates. O Filósofo levava as pessoas a se contradizerem. A dificuldade está em que Sócrates não escreveu tais diálogos. Ele valorizava mais a fala viva do que a letra morta.  Seu principal discípulo, Platão, registrou seus ensinamentos. Isso trará outro problema: estamos estudando Sócrates ou Platão?
Platão nos mostra Sócrates nas praças de Atenas ironizando e questionando as pessoas. Esse questionamento era cruel, muitas vezes acontecia de forma grosseira.  Iniciava suas questões muitas vezes pela definição: “O que é isso que falas?” As idéias e as virtudes deveriam ser definidas com exatidão. Descobriu Sócrates que as pessoas não sabiam do que falavam! Ele faz uma espécie de análise de conceitos em seus diálogos.


Os sofistas também agiam semelhantemente ao Sócrates, porém, intencionavam diretamente preparar uma elite, futuros governantes. Para isso ensinavam de maneira enciclopédica e com ênfase na eloquência.



Polemarco e Sócrates discutem a justiça. A República


-                 Ora muito bem: para proveito e obtenção de que dirás que é útil a justiça em tempo de paz?
-                 Para os contratos, Sócrates!
-                 Por contrato entendes sociedades, ou que outra coisa?
-                 Sociedades, precisamente.
-                 Quem é o melhor parceiro num jogo de damas: o homem justo ou o bom jogador? E para a colocação de tijolos e pedras, o homem justo será melhor sócio do que o pedreiro?
-                 Bem ao contrário.
-                 Então em que espécie de sociedade o homem justo é melhor sócio do que o citarista, uma vez que para tocar cítara este é melhor sócio que o homem justo?
-                 Creio que em assuntos de dinheiro.
-                 Com exceção, talvez, ó Polemarco, do uso do dinheiro quando se trata de comprar ou vender um cavalo, pois nesse caso penso que será preferível um homem entendido em cavalos. Não é assim?
-                 Sim, parece.
-                 E quando queres comprar um navio, o armador ou o piloto será melhor?
-                 É verdade.
-                 Então, qual é o uso em comum da prata ou do ouro em que o homem justo deve ser preferido?
-                 Quando se quer que um depósito seja bem guardado.
-                 Queres dizer: quando não precisamos do dinheiro e convém deixa-lo quieto?
-                 Precisamente.
-                 Portanto, a justiça é útil quando o dinheiro é inútil?
-                 É o que se conclui.

Sócrates nas suas indagações quer se afastar do senso comum e aproximar-se dos conceitos mais precisos e ricos. Podemos dizer que ele parte do que já sabemos (senso comum) para um conhecimento mais elaborado. Essa busca pelo conhecimento mais elaborado é pessoal, ninguém pode fazer pela pessoa. Por isso esse filósofo perguntava sempre, nunca respondia. A pessoa, através da própria reflexão, devia achar as respostas. Ele motivava o aprendiz com seus diálogos em praça pública.
Sócrates nasceu em 470 ou 469 ªC, em Atenas, filho de Sofrônico, escultor e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa nenhuma, não obstante sua pobreza. Formou sua instrução, sobretudo através de reflexão pessoal, na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles. Casou-se com Xantipa, que não foi a esposa ideal. Mas também ele não se preocupava com as questões domésticas.
A introspecção é característica da filosofia socrática. Exprime-se no famoso lema conhece-te a ti mesmo. – isto é, torna-te consciente da tua ignorância.
Sócrates não gostava que o chamassem de sofista. Mas é fato que tinha uma vida semelhante a eles. Não recebia dinheiro por seus ensinamentos, mas semelhantemente aos sofistas, falava nas praças públicas. Os jovens adoravam ouvi-lo. Ele queria falar sobre coisas práticas, não sobre metafísica. Assim falava sobre autoconhecimento (um dos pontos fundamentais da sua filosofia), política e ética.
Interessou-se sobre o conhecimento de si e dos homens.  Refletia sobre esse tema em público, isso fez com que surgissem muitos curiosos a sua volta, que acabaram tornando-se seus discípulos.  Acreditava que o conhecimento vem da discussão, ou seja, da partilha entre as pessoas que querem aprender e ensinar. O saber é construído em conjunto.
Sócrates interrogava as pessoas sobre o que elas acreditavam saber. O resultado era interessante. As pessoas desconheciam o que falavam! Então Sócrates percebe que a sabedoria começa pelo reconhecimento da própria ignorância.  Mesmo sendo esse processo muito doloroso. Quanto mais orgulhosa e preconceituosa for a pessoa, tanto mais difícil será a superação da ignorância. Para estas ele reservava a ironia e a refutação.  A ironia e a refutação levavam as pessoas a aceitarem e confessarem suas próprias contradições e ignorâncias. Só assim estavam livres para descobrirem coisas novas. Ajudava seus discípulos a conceberem suas próprias ideias.  A educação vem de dentro para fora da pessoa. É uma autoeducação que leva ao conhecimento de si mesmo através das discussões (diálogos). 
Não podemos confundir os diálogos com o cultivo da eloquência. Sócrates não queria levar as pessoas a se convencerem através de palavras bonitas, sonoras e atraentes. Utilizava-se da dialética. Buscava através de perguntas e respostas o esclarecimento do que é a vida virtuosa na polis. Ele queria eliminar a ignorância das almas não confundi-las com sofismas.

O mundo humano

A filosofia de Sócrates volta-se para o mundo humano, psicológico, com finalidades práticas, morais. É cético com relação a metafísica. A única ciência possível e útil é a ciência da prática. Vale dizer, o agir humano – bem como o conhecer humano – se baseia em normas objetivas e transcendentes à experiência.
A gnosiologia de Sócrates baseia-se nesses pontos fundamentais: ironia, refutação, introspecção, ignorância, indução, definição. Antes de tudo, temos que desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões; é este o momento da ironia, isto é, da crítica. A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro (a ciência) mediante a razão.  O mestre deve tirar a instrução da mente do discípulo. O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do particular ao universal, da opinião a ciência, da experiência ao conceito.

A ironia, a refutação e a maiêutica

Entre os gregos a ironia era considerada uma atitude do espírito detestável. Segundo Aristóteles, o irônico peca contra a veracidade porque, em seus discursos, se recusa a revelar as suas qualidades, oculta seu saber sob a capa de uma ignorância fingida e se protege atrás de um comportamento negativo. Os contemporâneos de Sócrates o condenaram por ela. A ironia e a refutação acabam, nas mãos de Sócrates, se tornando uma atitude pedagógica e filosófica.  Essa atitude tem a finalidade de pôr a descoberto a vaidade, de desmascarar a impostura e de seguir a verdade. Ao desprezar o que a sociedade preza, ameaça as opiniões correntes e os valores consagrados. Era, dessa forma, um cidadão crítico ao questionar o que se tinha como verdade.
Com suas perguntas Sócrates deixava embaraçado e perplexo aquele que está seguro de si mesmo. Conceitos até então estáveis são vistos como problemas. Atiçava a curiosidade e a reflexão. A sua arte educativa pode ser comparada com a de sua mãe, porque ele é como o médico que ajuda nos partos do espírito. Por causa deste aspecto o método de Sócrates é chamado de maiêutica.
Por razões de método (e não por incapacidade), seus diálogos levantavam uma questão, mas não davam a solução. Servem para pôr o interrogado no caminho da solução e para que ele mesmo a encontre.

Ensinamentos filosóficos:

 Sócrates não se interessa pelos princípios supremos do universo, mas pelo valor do conhecimento humano. Não questiona o cosmos, antes de tudo examinava se os homens haviam aprofundado suficientemente os conhecimentos humanos, para se ocuparem de tais assuntos.
Na psicologia, a doutrina socrática gira em torno da imortalidade da alma. Para ele a alma é superior ao corpo e encontra-se nele como numa prisão. A morte libera a alma desta prisão e lhe abre a porta de uma vida melhor. Deve-se cuidar da alma e não temer a morte.
Quanto ao conhecimento, faz uma distinção entre opinião e verdade. O conhecimento sensível por si só não pode fazer-nos conhecer a verdade, mas somente opiniões mais sólidas. O homem é dotado só de conhecimento sensitivo. Mas, além disso, existe outro conhecimento, o intelectual. Este vai além das aparências sensíveis, porque extrai das coisas a sua verdadeira natureza, formando na mente uma noção, um conceito, de valor universal.
Sócrates foi o primeiro filósofo que procurou determinar a natureza do conceito universal e que mostrou que ele é muito diferente da opinião. A opinião varia de individuo para individuo, ao passo que o conceito universal é necessariamente o mesmo para todos.
O procedimento para chegar a aquisição do conceito universal é o indutivo.

Indução: Raciocínio cujas premissas têm caráter menos geral que a conclusão.
        
Das definições de valor limitado passa-se para definições menos imprecisas até chegar-se à definição adequada. Quando Sócrates quer definir a justiça, por exemplo, pede aos interlocutores uma definição e demonstra que ela é insuficiente. Pede outra definição e faz o mesmo... até chegar a uma definição mais satisfatória.

Para Sócrates a moralidade identifica-se com o conhecimento: a sabedoria é virtude e a virtude identifica-se com a sabedoria. Se o homem peca, é por ignorância, porque não é admissível que, conhecendo o bem o mal, escolha o mal e não o bem. Os homens que fazem o mal ignoram o bem ou não sabem que o que escolheram é mau. Ele incita seus ouvintes a procurarem a verdade e a sabedoria, porque somente a verdade e a sabedoria tornam o homem livre e virtuoso.

terça-feira, 10 de março de 2015

Homens bomba. Terrorismo brasileiro.

Prof. Amilcar Bernardi



O que é a política? Há milhões de significados possíveis. Mas estes significados têm algo em comum: entendimento, diálogo. Claro, não podemos esquecer que a razão faz parte. Só há diálogo quando há a razão. A racionalidade e o diálogo são inseparáveis. Caso contrário, serão duas pessoas falando para as paredes, uma não entendendo (ou não querendo entender) a outra.
Lembrei-me agora das crianças que estão aprendendo a falar e já estão na pré-escola. Elas brigam muito. Afinal, querem os mesmos brinquedos e ainda não sabem negociar. E porque não sabem? Por que são aprendizes do diálogo. Elas não sabem ainda que apenas expressar seu querer não interfere no direito de querer do outro. Então, os quereres colidem e pimba! Um empurra o outro. Não é fácil ser criança entre outras crianças. Ninguém negocia nada, todos querem tudo. Faz parte do aprender a ser gente. Se os adultos se comportam como crianças é muito complicado. Não temos professores para adultos aprenderem a falar e a negociarem seus quereres. Só na pré-escola temos tais professores, mestres da negociação infantil.
O que é a política? Não é coisa para crianças, aprendizes do falar e do negociar. Não é coisa de quem prefere empurrar o outro sem conversa, embriagado por si mesmo, por seus desejos irracionais. Não é coisa para surdos e mudos espirituais. Enquanto os espíritos estiverem presos em seus corpos, entrincheirados sem quererem falar e ouvir, é guerra certa. Tenho medo desses surdos e mudos que não entendem o outro, mas querem ser por eles entendidos. São terroristas na política. Explodem tudo, fazem terra arrasada.
Estamos hoje cercados de terroristas, homens-bomba unilaterais. Se estão de um lado, explodem o outro. Pronto, sem explicações. Para estas caricaturas de politizados, alguém sempre está do lado contrário ao seu. Portanto, a política é uma guerra santa. Eles têm que explodir os infiéis que não aceitam seu deus ideológico. Estou aterrorizado. Tenho dificuldade de afirmar meu posicionamento. Quem estará ao meu lado? Será um terrorista? E se minha afirmação for pública, com certeza sempre haverá um homem-bomba cheio de ódio. Ele vai explodir-me ou a alguém que eu ame. Vai vasculhar minha vida para achar alguma falha, alguma forma de atingir-me.
Ouvi na televisão um especialista na contratação de empregados de uma grande empresa brasileira. Ele disse o seguinte: cuidado com o Face book. As informações que o cidadão postar lá podem ser usadas contra ele na hora de contratá-lo. Entendi bem a mensagem. Se o empregador ou o selecionador for um terrorista, ele vai explodir o candidato antes de conhece-lo. Um total fanatismo! Basta ler para explodir a pessoa. O terrorista pensa que não é nada pessoal, é apenas uma faxina ideológica.
O que é a política? Não sei bem. Mas posso afirmar que não é fanatismo nem ódio.

A elite brasileira está produzindo terroristas políticos. E estes estão proliferando mais que vírus. A elite ainda não sabe. Alguns seres microscópicos criados pelo homem, matam seu hospedeiro. Ou seja, o próprio homem. 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Democracia semidireta

Prof. Amilcar Campos Bernardi

A democracia semidireta, como diz o nome, é um regime democrático de governo. O que o faz semidireto é que se mantêm as formas indiretas de decisões junto com as formas diretas, ou seja, com
consulta popular pelo voto.  Esse sistema tem a vantagem de valorizar a soberania popular. Isso repercute na forma de educar o povo, que terá que lidar com a possibilidade da alienação, o que prejudicaria as tomadas de decisões onde pesem a vontade popular. Também é relevante a extensão do país, pois quanto menor melhor será a eficácia desse sistema. Podemos resumir dessa forma a democracia semidireta: é uma forma de gestão governamental onde se admite a utilização esporádica da intervenção direta dos governados em determinadas deliberações.
A Suíça é um bom exemplo desse sistema. Na Suíça há uma clara intenção de que toda a população possa participar de forma direta nas decisões. Para isso, há frequentes plebiscitos, nacionais e regionais. Sendo o país pequeno, se comparado ao Brasil, é possível esse trato direto com os populares. Na Suíça, por exemplo, se um “Cantão” não aceitar o que os demais votaram a favor, fica desobrigado a seguir o que foi decidido. A frequência com que a população é consultada é muito alta se comparada com a do nosso país. Pelo menos quatro vezes por ano, os cidadãos suíços recebem envelope com documentação fornecida pela Confederação, pelo cantão ou pela comuna, em que se lhes solicita opinião sobre um ou mais assuntos. Evidentemente que não podemos comparar essas realidades com as nossas, pois nossa extensão territorial é enorme, além de termos um contingente populacional muito grande.
A democracia semidireta se materializa através dos seguintes instrumentos de participação popular:

- O Referendo: No Brasil podemos chamar essa consulta de referendum ante legem, pois a participação é anterior a promulgação da lei. Aqui pretende-se conhecer a vontade dos cidadãos antes de promulgar alguma lei. A diferença entre este e o plebiscito é a questão da anterioridade da sua propositura.

- O Plebiscito: O Plebiscito é um pronunciamento popular direto, sem intervenções estatais, é uma questão apenas de aprovação ou rejeição. Distingue-se do referendo porque seu “tempo” é posterior à criação do ato legislativo; ou seja, é convocado posteriormente. Ao povo caberá ratificar ou rejeitar.

- A iniciativa popular é o direito que os cidadãos brasileiros têm de apresentarem projetos de lei para serem votados e eventualmente aprovados pelo Congresso nacional. Para os cidadãos apresentarem um projeto de lei é necessário a assinatura de 1% dos eleitores do país (cerca de 1,2 milhão), distribuídos em pelo menos cinco Estados brasileiros. Pode parecer um número muito alto, mas não é impossível obtê-los. A iniciativa popular é a capacidade da população propor formalmente um projeto de lei que seja do seu interesse, afinal, o plebiscito e o referendo, nesses termos, são muito limitados.

- O Recall: É um instituto inexistente no Brasil, porém, bastante conhecido nos Estados Unidos. Por ser algo novo, há ainda divergências sobre seu conceito e abrangência, porém, podemos dizer que é a participação popular que controla os mandatos eletivos. Se o mandato contraria o desejo dos cidadãos, estes podem intervir nesse mandato extinguindo-o. O recall é uma forma de participação semidireta onde determinado número de eleitores manifestam sua insatisfação com seu representante. Este será “convidado” a demitir-se ou poderá ser afastado do cargo definitivamente. Na América latina acontece sob o nome de referendo revocatório, o recall esta previsto na Venezuela.

- Veto popular: é mais um instrumento popular para administrar o poder dado aos eleitos. A população tem a faculdade de manifestar-se contra uma medida ou lei juridicamente perfeitas. Para isso um número de pessoas solicita que a lei já publicada seja submetida ao “julgamento” popular, podendo ser rejeitada. Podemos perceber aqui a força deste instrumento, pois algo juridicamente perfeito, poderá ser rejeitado. Resumindo podemos dizer que é um instrumento da democracia semidireta por meio do qual o povo pode vetar uma lei já aprovada ou revogar uma decisão jurídica do legislativo. Não existe no Brasil, sendo utilizado em alguns estados norte-americanos.


Referências
Bonavides, Paulo. Ciência Política, 14ª edição. Malheiros editores; 2007.
Boletim jurídico (Consultado em 15/05/2014) http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1964

RESENHA DO LIVRO CIDADANIA NO BRASIL: O LONGO CAMINHO. JOSÉ MURILLO DE CARVALHO

Prof. Amilcar Bernardi


Para entendermos a gênese da “cidadania” no Brasil, é necessário fazermos uma viagem no tempo.
Precisamos voltar a nossa “infância“ enquanto país que foi “descoberto” e colonizado. Desde o ano de 1500, Portugal extraia matérias primas do Brasil. Seu principal interesse era econômico. Mesmo não sendo a principal intenção, criou uma cultura que se expressava numa linguagem própria (mistura do português com as línguas nativas e sofrendo também a influência das linguagens dos escravos) e na religiosidade (novamente uma mistura das religiões indígenas, africanas e com o catolicismo Europeu). As elites sofriam maior influência da metrópole, tanto no português lusitano quanto na visão de mundo. Mesmo no início do século XVII, ainda não havia se consolidado no Brasil o sentimento popular de uma unidade numa nação. As populações eram analfabetas num contexto de escravidão e de afastamento da vida política. O interesse pelo mando nesse período estava nas classes proprietárias de terras ou nas mãos dos grandes mineradores. O poder público incipiente era exercido de maneira privada. Não havendo um sentimento de igualdade perante a lei, não podemos ainda falar de uma cidadania.
A independência em 1822 não trouxe significativa mudança nesse quadro.  Ela foi uma independência negociada entre as elites (elites brasileiras, portuguesas e inglesas). Houve pouco envolvimento popular e, portanto, poucos conflitos armados. As grandes capitais da época manifestavam mais uma revolta ao jugo português que um desejo de independência. O que ratificou a independência foi a intenção das Cortes Portuguesas retomarem ideais coloniais num Brasil já com bons níveis de autonomia comercial. Quanto ao interior do país, só meses depois souberam que o Brasil tornara-se independente de Portugal.
O Brasil independente continuava uma monarquia escravagista. A Constituição outorgada (1824), inspirada pelas ideias do liberalismo francês, teve poucos avanços nos direitos políticos, mas mantinha limites às liberdades civis. Mesmo ainda com ranços absolutistas (exemplo: Criou o Poder Moderador) era bastante liberal para a época. O direito ao voto era bastante amplo, mesmo que esse direito estivesse vinculado a renda dos votantes e fossem excluídas as mulheres e, obviamente, os escravos. Também é importante lembrar a grande frequência com que aconteciam eleições, pois os mandatos dos juízes de Paz e vereadores eram de dois anos. Quando um deputado morria era votado outro além de a Câmara dos deputados ser dissolvida com freqüência. Mas isso fazia das pessoas cidadãs? Não, pois, como já foi dito, a grande maioria da população era analfabeta. Nas grandes áreas rurais, as pessoas eram controladas ou influenciadas pelos grandes proprietários. Por sua vez nas cidades, os funcionários públicos eram influenciados pelo governo. Além disso, nos grandes centros urbanos, a violência na captação de votos, a corrupção na apuração aliada a espontânea venda do voto eram atitudes corriqueiras. A ideia de pertencer a uma pátria soberana passava longe da maioria absoluta das cabeças dessa época.
Em 1881 foi instituído o voto direto com uma exigência de renda de 200 mil réis. A renda não era o maior empecilho a cidadania. O problema era a proibição do voto ao analfabeto. Ora essa proibição acontecia num Brasil onde no máximo 15% por cento da população era alfabetizada Em 1886 foi excluído 80% do eleitorado.  A proclamação da República (1889) não trouxe alterações significativas. A principal mudança no voto era a revogação da exigência da renda, mas mantinha-se a exclusão do analfabeto. Além disso, mulheres, mendigos, soldados e religiosos não votavam também. De 1889 a 1930 (Primeira República) não houve grandes mudanças. Foi adotado o Estado Federativo, onde cada Estado passa a ter seu Presidente. A descentralização aproximou o governo da população, mas abriu espaço para os “coronéis”. Eles se aliavam aos presidentes em nome das oligarquias. As fraudes nas eleições mantinham-se como algo comum. Veja que além das limitações ao voto, as fraudes ainda orientavam os resultados! A grande verdade era que o povo sabia manifestar-se de maneira “não-formal”, em movimentos mais ou menos violentos. A formalidade e o conceito do voto eram impedidos de se desenvolverem. Mas, quando a população sentia-se invadida nos seus interesses mais próximos do dia a dia, nos seus valores morais ou religiosos, as pessoas se manifestavam. As pessoas livres (os não escravos) com direitos civis limitados e direitos sociais precários, como desenvolveriam uma sensibilidade política? Só o tempo e as lutas produzem cidadania. Outro elemento cultural importante é a escravidão. Homens escravos cruzavam as ruas naturalmente, amamentavam as crianças, iam às compras para as senhoras e as escravas dormiam com seus donos. Como desenvolver um sentimento de cidadania? Mesmo o positivismo já fundamentado na Europa, não chegava ao Brasil que é tão grande: encalhava nas elites e não podia espraiar-se numa população sem escola e com uma imprensa limitada em recursos. Além disso, num país com um forte espírito religioso, até os padres possuíam cativos.
No século XIX e início do século XX, as populações eram predominantemente rurais. Viviam ou dependiam dos latifundiários. Nessas grandes extensões de terras a lei era o dono, o coronel. O Estado lá não chegava. O privado e o público se misturavam porque os agentes da justiça e da lei eram patrocinados pelos grandes senhores de terras. Estava acima do Estado. Ao povo cumpria servir ao aos Coronéis. Os direitos políticos eram extremamente limitados por esse ambiente e pela ignorância popular desses direitos. Exigir que as pessoas fossem conscientes no seu ato de votar, que fossem lúcidas nas suas concepções da lei e da ordem, era exigir demais nesse contexto. Mesmo as cidades não viviam ambiente propício ao exercido da cidadania. Os operários trabalhavam em longas jornadas de trabalho num ambiente de repressão. Inclusive o Governo entendia como questão de polícia as greves. Havia grupos mais independentes que aceitavam o diálogo com patrões e governo. Outros, influenciados pelos imigrantes, eram mais radicais embasados nas teorias anarquistas. Também surgiu o Partido Comunista do Brasil com outras diretrizes. Ao mesmo tempo em que essas divisões enfraqueciam os operários, ajudou num avanço sob o ponto de vista da cidadania. Lutavam por melhores condições de trabalho, maior liberdade e por uma legislação trabalhista.  Os avanços para uma consciência política foi mínimo. Os interesses que predominaram nas classes operárias foram a parceria com o Estado para uma melhoria de salários, condições de trabalho e mais liberdade, inclusive com o reconhecimento dos sindicatos. Não podemos deixar de levar em consideração que em 1920, só 24% da população sabiam ler e escrever. Ainda o voto era impedido aos analfabetos. Claro que, como já disse isso, fora da legalidade/formalidade o povo se manifestava. Por exemplo, entre outras revoltas, a de 1922 (o movimento dos oficiais do Exército). Essas rebeliões que vem desde o século XIX, não eram realizadas por simples bandidos ou loucos. A rebeldia, geralmente violenta, era a resposta do povo – mesmo que imediatista - ao andar da política quando ela os atingia. Talvez aí esteja a gênese da consciência popular de que somos sujeitos de direitos além dos deveres.
No ano de 1930 desencadeou-se notável avanço político. Os avanços sociais tiveram melhoria materializada nas leis que passaram a reger o trabalho.  A CLT demonstra a luta na área política para que fosse possível a qualificação das relações trabalhistas.  Ditaduras e regimes democráticos alternavam-se.  De 1937 a 1945 Getúlio Vargas manteve uma ditadura populista. Nessa fase os direitos civis estavam fragilizados e os sindicatos estavam atrelados ao Estado. Caindo Vargas, retoma-se a democracia. O voto popular teve peso e as fraudes diminuíram.
A partir de 1930 crescia o nacionalismo e o monopólio do petróleo tornava-se uma bandeira forte de luta de grande parte dos intelectuais e de amplos setores da população. As oligarquias regionais sofrem com esse novo contexto. Surge aos poucos uma identidade nacional aliada a fatores externos como a grande guerra e as dificuldades oriundas da quebra da Bolsa de Valores de Nova York. O governo central se fortalecia deixando as Oligarquias com menos poder. Os intelectuais reformistas acreditavam que o federalismo alimentava as oligarquias e vice-versa. Era então preciso fortalecer o poder central.
Desde 1920 quando era oposição a Júlio Prestes, Getúlio Vargas já falava em voto secreto, representação proporcional e combate às fraudes. Mesmo com essas bandeiras o povo estava apenas aprendendo a politizar-se. As elites oligárquicas ainda davam as cartas. Nas diversas revoltas até a queda da Primeira República, os civis participaram nos levantes de forma crescente. No Rio Grande do Sul houve um acalorado debate e um entusiasmo cívico relevante. Podemos dizer que as populações não foram apenas observadoras, mas também não tiveram influência sempre decisiva nos acontecimentos nacionais. O exército nunca esteve a favor das oligarquias. De certa forma ele agia num contexto de debates civis. Os oficiais não tinham origem nobre ou de grandes recursos. Os militares disputavam poder com as oligarquias. Orientados pelo pensamento positivismo, os oficiais pensavam em fortalecer o Estado para que a “ordem e o progresso” fossem possíveis.
As revoltas civis e militares de 1930 a 1937 demonstram que a organização dos movimentos políticos e a participação política da população estavam bem desenvolvidas. Havia muitos sindicatos e inúmeros partidos políticos. Nas eleições de 1933 houve grande progresso nas leis eleitorais.  O voto foi secreto, as mulheres votaram e criou-se uma justiça eleitoral. As oligarquias estaduais tiveram sua influência diminuída. Getúlio Vargas foi confirmado pela constituinte como presidente. Vargas optou por uma constituição de cunho mais liberal. A luta política recrudesceu. Dois grandes partidos políticos surgiram.  A Aliança Nacional Libertadora e a Ação Integralista Brasileira. Ambas mobilizavam as massas, queriam fortalecer o governo central, eram contra o liberalismo e queriam reformas econômicas e sociais. As classes médias foram chamadas a luta política. A tensão chegou a tal ponto que em 1937 veio o Golpe. O povo assustado com o “perigo comunista” e as propostas varguistas de desenvolvimento econômico acalmaram o povo que não se opôs de maneira significativa ao golpe. Os avanços democráticos desenvolvidos até 37 eram ainda frágeis. Não conseguiu resistir ao regime ditatorial que permaneceu até 1945. As manifestações políticas foram suprimidas e a censura controlava a imprensa. O Estado Novo não queria o povo nas ruas.  Vargas promoveu enormes avanços sociais. Mas as tensões da sua ditadura o derrubaram em 1945.
A constituição de 1946 além de manter as conquistas sociais garantiu os direitos políticos. A constituição permitiu eleições regulares e a organização dos partidos políticos até 1964. Só o Partido Comunista permaneceu na ilegalidade. Também o direito a greve era severamente restrito. Vargas retoma pelo voto o governo em 1950. Retoma seu estilo populista e nacionalista.  Encontrou apoio dos sindicatos, dos trabalhadores, dos intelectuais e dos setores nacionalistas do Exército. A questão da Petrobrás mexeu com o povo.  Em nome dela reuniram-se amplos setores da sociedade civil, como universitários e líderes sindicais. A sociedade estava dividida. Estaria Vargas aliado aos comunistas? O exército também estava dividido.  Os setores ligados ao liberalismo e ao investimento externo no Brasil cerravam fileiras. Essas forças contrárias entre si cada vez mais se acirravam. Vargas acaba cometendo suicídio. Os impactos de suas idéias e de sua morte culminam num novo golpe, o de 1964. Novamente o medo do comunismo é usado como motivo para os militares assumirem o poder. Os avanços democráticos e a qualificação da cidadania sofrem forte abalo. São dez anos de lutas políticas e de perseguição implacável. Importante salientar que no momento do golpe, os trabalhadores rurais, posseiros e pequenos proprietários estavam politizados e organizados em ligas camponesas ou sindicatos. Era o campo entrando em contato com a cidadania. Era, portanto, mais uma ameaça ao status quo político.  As reformas de base eram assunto do dia num ambiente onde os analfabetos e os soldados não votavam. Os sindicatos propunham greves junto com UNE.  Mas outro movimento das classes médias surgia. O movimento pela família em nome de Deus. Não havia consenso. Sob o ponto de vista da cidadania, podemos dizer que a participação aumentava significativamente sendo bloqueada pelos militares em 1964. Para as elites era muito difícil aceitar a participação popular.
As elites oriundas das camadas civis e políticos que apoiaram o golpe ficaram surpresas.  Os militares não se contentaram em possibilitar o golpe, mas exigiram o comando, assumiriam o poder. A presença dos militares não é novidade na república brasileira.   A radicalização dos militares teve como importante componente, mas não único, a divisão que sofriam desde a época varguista.  A divisão ideológica ameaçava a corporação, a hierarquia.  O exercício do poder pleno poderia reunificar a corporação.  A capacidade de mobilização popular e a visão mais politizada já estavam bastante desenvolvidas em 1964.  Por essa razão, os direitos civis e políticos foram logo restringidos ao máximo. Os Atos Institucionais foram os instrumentos legais para a repressão. Do primeiro ao último ato institucional, a repressão foi sendo ampliada na medida da necessidade percebida o pelos agentes militares.  O primeiro AI cassou políticos, líderes sindicais, intelectuais e muitos militares. Os sindicatos mais ativos sofreram intervenções. Foram fechados a CUT e a UNE. Inúmeros Inquéritos Policiais Militares (IPMs) foram usados para perseguições a opositores do regime. Ainda era utilizado o medo do comunismo para justificar o golpe e as medidas repressores decorrentes.
Apesar de toda a repressão, na eleição estadual de 1966, o governo foi derrotado em cinco Estados. Este fato detonou o AI n0 2. A eleição direta para Presidente da República foi abolida e os partidos políticos foram dissolvidos. Criou-se o bipartidarismo. O direto de opinião foi duramente restringido. Dois anos depois, em respostam a greves e a manifestações populares contra a falta de direitos civis, foi decretado o AI n0 5. O congresso foi fechado estabelecendo-se a ditadura de maneira evidente. O habeas corpus foi suspenso para crimes que atingisse a segurança nacional. Com o General Médici foi implantada a pena de morte e a censura prévia. Grupos de esquerda tolhidos legalmente optaram pela clandestinidade adotando a guerrilha urbana e rural. Foram combatidos e derrotados. A máquina de repressão cresceu enormemente. Não era permitida a greve nem a liberdade de reunião. Partidos e sindicatos eram controlados pelo governo. Os militares contrários ao golpe foram expulsos das forças armadas. O domínio amplo.
A Igreja Católica por seu poder e prestígio foi muito importante na oposição aos militares. Grupos de jovens e setores católicos aproximados do marxismo lutavam criando consciência política nas camadas populares. A OAB e a ABIN são exemplos de organizações que também se opuseram ao governo. A oposição política mantinha-se no congresso que, na grande maioria das vezes, estava em funcionamento “normal”. A oposição havia sido abrandada, pois os opositores mais fortes haviam sido banidos da vida política. A ARENA por diversos ardis sempre se mantinha majoritária em detrimento do MDB. Este último mantinha-se em dilema: autodissolver-se (pois era apenas uma oposição obrigada a ser de fachada) ou continuar fazendo uma oposição abrandada, mas atuante. O MDB acaba fazendo oposição alertando sempre para os excessos do regime militar. Muitos deputados desse partido perderam seus mandatos.
O número de eleitores aumentou muito. Mas o direito político do voto não mudava a situação, por quê?
As classes médias estavam anestesiadas por um excelente crescimento econômico. Era a época do milagre econômico. Enquanto o crescimento estava em bons patamares, valia “a pena” trocar os direitos civis e políticos pelas vantagens econômicas. Para as classes mais simples houve a copa do México e a taxa de empregos em alta. As mulheres estavam atuantes no mercado de trabalho aumentando a renda das famílias. O comunismo era sempre lembrado como um fator que poderia “roubar” as vantagens econômicas. Claro que o problema das desigualdades sociais se ampliava, mas ainda não era evidente naquele contexto histórico. Os governos militares foram hábeis em mascarar a situação política. Qualificaram os direitos sociais. Criou-se o INPS onde o trabalhador passava a ter a aposentadoria, pensão e assistência médica garantidos. Surgiu também o Fundo de Assistência Rural (FUNRURAL) incluindo os trabalhadores rurais na previdência social. Compensando o fim da estabilidade no emprego foi criado o FGTS e para incentivar a compra da casa própria aparece o BNH. Mas com isso pretendia lesar o fortalecimento da cidadania, pois tentava a afastar a população das discussões sobre a política.
O milagre econômico não durou tanto tempo assim. Com a crise do petróleo o crescimento estava seriamente comprometido. Aliado a esse fator, com a eleição do General Geisel, subiu ao poder o setor dos militares que não tinha interesse em manter indefinidamente as forças armadas no poder. Esse grupo era liberal, não eram a favor da ditadura nem de uma democracia. Esse grupo entendia que o momento da redemocratização era agora, pois a situação econômica ia piorar muito. Também perceberam que os militares estavam fora de suas funções genuínas e estavam voltados para as questões do poder. Também os órgãos de repressão estavam fora de controle. A conjuntura desaconselhava a manutenção do poder nas mãos deles por mais tempo. Em 1978 o congresso findou com o AI número 5 e o fim da censura prévia. Na gestão do General Figueiredo foi votada a lei da anistia. No ano seguinte cai o bipartidarismo. Em 1980 é criado o Partido dos Trabalhadores. A partir daí os movimentos civis redobram forças. A teologia da libertação cresce nos movimentos religiosos de base. Inúmeros partidos são criados.  Os sindicatos têm liberdade e se articulam. Desde 1977 as greves acontecem onde o sindicalista Luis Inácio da Silva surge no cenário político. Em 1984 explode o movimento pelas “Diretas já”. Esse movimento foi uma mobilização política popular inédita no país. Foi aprendizado que ajudou na do Presidente Collor.

No Brasil, aconteceram primeiro as leis que contemplavam os direitos sociais. Somente após, surgiu a preocupação com a efetivação dos direitos políticos. Com isso a concepção de cidadania foi prejudicada. Num contexto de um Estado paternalista, a busca por um novo messias na política enfraqueceu as consciências, evitando uma luta eficaz pela consolidação de direitos. A população prefere apostar num executivo garantidor de alguns direitos para alguns. O legislativo e o judiciário aparecem no imaginário popular como figuras subalternas.  A figura do político profissional é desprestigiada como agente transformador da realidade. O político é visto como um mediador de favores junto ao executivo. Uma espécie de mal necessário. A cultura criada onde a busca de direitos excluem deveres, onde a falta de conhecimento aliou-se ao imediatismo, só o tempo poderá mudar. Será necessário o investimento forte na escolarização de fato, ou seja, realmente jovens e crianças aprendendo nas salas de aulas. 

Livro Planeta dos macacos de 1963